Certa noite, já bem tarde, Lev Lvovitch disse: “Há alguém que gostaria que você conhecesse. Venha comigo.” Ele não deu nenhuma explicação exceto ao dizer que a pessoa que estávamos indo conhecer era ‘de um tipo raríssimo no mundo’. Ele também pediu por sigilo absoluto a respeito de nossa visita, pois o homem em questão estava num esconderijo; o motivo ele não explicou.
Ele conduziu até uma casa no final de uma pequena rua não muito longe da estação Nicolas. Numa porta em uma larga escada, o que sugeria uma moradia ligeiramente burguesa, ele tocou a campainha. Entramos num apartamento bem amplo. Lev Lvovitch cumprimentou a mulher que abriu a porta para nós, mas não me apresentou. Ele andou direto para uma passagem na sala e abriu uma porta no final. Havia um toque oriental marcado nas suas decorações. As paredes do hall eram adornadas com carpetes, lâmpadas de ferro forjado com vidros coloridos pendurados no teto. Evidentemente sentindo-se totalmente em casa, Lev Lvovitch espreitou-se por uma das salas sinalizando para que eu o seguisse.
A sala bem grande era coberta com cortinas e coisas penduradas com luminárias para combinar. Em um canto havia um divã cheio de almofadas coloridas; nele estavam dois homens sentados de pernas cruzadas jogando xadrez num tabuleiro com peças ornamentadas. Numa mesa octogonal ao lado deles havia café e xícaras. Considerando suas aparências nenhum deles parecia europeu. Um usava uma vestimenta de seda e um turbante, era atarracado e de pele escura e usava uma barba negra curta. O outro usava um terno confortável com um lenço no lugar do colarinho e da gravata tinha uma cor bronzeada, os ossos das bochechas elevados, olhos enviesados e uma barba de bode. Exceto por um aceno rápido nenhum deles prestou a menor atenção quando chegamos. Eles seguiram jogando seu jogo, trocando comentários numa língua que eu não compreendia.
“Café?”, perguntou Lev Lvovitch me indicando um banco para sentar. Ele serviu a bebida e olhou para o jogo. Logo terminou numa discussão presumidamente sobre o que o perdedor deveria ter feito num momento crítico. Aparentemente o homem de turbante tinha vencido. Ele virou-se e me vendo disse, como se eu estivesse lá a noite toda: “você joga?” Ele falava russo um sotaque bem acentuado. “Não muito bem, mas eu gosto.” Respondi. Como resposta ele fez um gesto convidando-me para assumir o posto de seu oponente anterior e começou a falar com Lev Lvovitch.
“Tire seus sapatos para ficar mais confortável” disse meu anfitrião. E eu tirei, ficando envergonhado ao descobrir que minha meia estava furada. Tentei esconder, mas para meu constrangimento ele apontou para o furo, sorriu e disse: “Você acredita em ventilação! Que bom, nada como ar fresco! ... Pretas ou brancas?” e segurou fechados em suas mãos dois peões. Quando escolhi o branco notei que na outra mão havia um outro peão branco também.
Agora que estava sentado de frente para ele vi que seus olhos escuros, perfurantes em seu brilho, eram ao mesmo tempo cheios de amabilidade e humor. Eu estava nervoso e não era de maneira nenhuma um adversário à altura para ele, que ganhou facilmente. “Nichervo – Não importa.” Ele disse. “Espero que você tenha muitas oportunidades de ter a sua revanche.” Ele curvou-se ligeiramente fazendo com suas mãos um gesto indicando que eu era bem-vindo.
Uma longa conversa iniciou-se entre os três homens. Através de seus gestos eu percebia que Lev Lvovitch estava contando para eles sobre meus experimentos de cura usando a oração do Pai Nosso. Durante o verão anterior eu frequentemente visitava uma pequena vila próxima à casa de um dono de terras de cujo filho eu era professor particular. Um dia um ancião da vila implorou que eu ajudasse sua esposa que estava acamada há três semanas com uma febre alta. Senti-me totalmente perdido uma vez que nenhum de nós tinha dinheiro para pagar um médico. Finalmente concordando com suas súplicas, fui com ele para sua casa. Colocando-me de frente à mulher seriamente doente e tudo o que pude pensar foi em rezar em voz alta pela recuperação dela; recitando o Pai Nosso repetidamente em inglês, uma das únicas orações que eu podia lembrar. Fiquei surpreso e intrigado quando inexplicavelmente a febre dela abaixou. A notícia desse evento espalhou-se pelo vilarejo e as pessoas começaram a implorar para que eu rezasse dessa maneira cada vez que algum deles ficava doente. O que estava acontecendo? Meus pacientes melhoravam. Eu estava assustado e curioso a respeito dessas ‘curas’ misteriosas. Logicamente eu estava contente que os meus esforços ajudavam as pessoas da vila, mas senti-me aliviado quando o verão finalmente terminou e com ele o meu papel como curandeiro.
Lev Lvovitch virou-se para mim depois de um tempo e pediu que eu repetisse para o meu anfitrião as frases do Pai Nosso da mesma maneira que eu fazia para meus pacientes. Eu o fiz bastante conscientemente.
“Você é Inglês?” Ele perguntou, falando em Inglês. “Sim”, respondi. “Reze o seu Pai Nosso novamente, por favor.” Ele falava inglês melhor do que russo, muito corretamente e com menos sotaque. Eu repeti o ‘encanto’. “Muito, muito interessante,” ele disse, olhando para mim tão atentamente que desviei o olhar. Captei no olhar de Lev conforme ele sentava-se para jogar com o homem dos olhos enviesados, ele sinalizou indicando que eu deveria prestar atenção particularmente a qualquer coisa que meu anfitrião dissesse.
Continuamos a falar em inglês e a conversa, que tenho bons motivos para me lembrar, seguiu mais ou menos como contarei. Reconstruí a conversa da melhor maneira que pude a partir de anotações que fiz na época.
“Quem lhe ensinou a rezar o Pai Nosso dessa maneira?” “Ninguém, a ideia veio à minha mente.” “Diga a oração inteira da mesma forma.” Eu fiz isso com uma ou duas hesitações. “Você interrompeu a oração. Você disse as duas primeiras frases sem parar, mas então tomou uma respiração. Isso está errado. É assim que o Pai Nosso foi feito para ser entoado. Ouça e observe.” Ele apoiou as mãos em seu colo, fixou seu olhar em mim e começou a inspirar lenta e profundamente, segurando a respiração alguns momentos, sentado imóvel. Estava muito silenciosa a sala. Lev Lvovitch e o outro homem estavam ocupados com o jogo. Eles já pareciam pertencer a outro mundo. Senti que eu estava entrando em um mundo novo.
Uma nota grave, rica e musical começou a soar na sala. As palavras saiam lenta e suavemente, as sílabas fluindo de maneira equânime e equidistante na corrente de uma mesma nota. As consoantes eram suficientes para articular as palavras. Do começo ao fim não houve parada, nenhuma hesitação ou pausa para respiração, nem aumento ou diminuição do tom, era um som único, integral e contido, dando para a oração um significado muito mais profundo do que as próprias palavras. O “Amém”, pronunciado, é claro, “ah-mim” prosseguiu até ficar inaudível de uma maneira que fundiu-se lentamente com o silêncio do recinto. Recitado lentamente numa única respiração ele parecia durar um longo tempo.
Fiquei enfeitiçado e sentei esperando com expectativa. O som da nota recitada tinha um efeito penetrante muito singular. Senti como se ele tivesse entrado bem dentro de mim. Depois de um pouco ele disse: “Você vê, embora as palavras tenham um significado profundo elas não são o mais importante. É até questionável se as palavras foram transmitidas para nós de maneira exata. Versões diferem e nuances são introduzidos pelas traduções. O mais importante sobre a oração é que ela é uma medida conveniente de uma única respiração treinada.”
Fiquei perplexo. “O que tem a respiração a ver com isso?” Ele deu uma resposta longa, que consigo transmitir de maneira imperfeita apenas. O Pai Nosso, ele disse, sempre se referindo a ele como ‘o seu Pai Nosso’, foi criado como ‘um exercício devocional de respiração para ser proferido em uma única respiração.” O mesmo é verdadeiro no que se refere a outras orações antigas compostas no oriente num passado distante. Vantagens sutis de valor de longo alcance são obtidas das vibrações causadas pelo encantamento correto, polarizado mentalmente pelas palavras das orações. Para entoá-las como pretendia-se que elas fossem entoadas, deve-se devotar igual atenção para três elementos – a respiração, o som e as palavras. Na religião moderna do ocidente, a qual degenerou num formalismo institucional sem solução, as palavras são erroneamente tomadas como a coisa toda. “Estive em inúmeras igrejas na Inglaterra e na América,” Disse meu misterioso anfitrião, “e sempre escutei a congregação murmurando o pai Nosso todos juntos num grunhido misturado como se a mera repetição murmurada da fórmula fosse tudo o que é requerido. Você leu suas Escrituras?” Contei-lhe que a bíblia me foi enfiada goela abaixo quando criança e que consequentemente por vezes estive à beira de odiá-la. “É melhor odiar do que ser indiferente”, ele respondeu, “significa que você pode vir a amá-la quando você compreendê-la corretamente.” “Meu pai era um pastor,” expliquei. “Ah, você teve um começo ruim. Não esperamos que padres entendam o Evangelho. Eles se atêm ao texto. Você vai descobrir que embora Jesus tenha ditado abertamente as palavras da sua oração modelo, quando ele quis mostrar como as palavras deveriam ser proferidas, a parte mais importante da questão, ele selecionou alguns discípulos e levou-os para um lugar deserto e deu-lhes instruções especiais. Isso jamais foi registrado.”
“Por que não?”
“Isso não pode ser registrado. É uma questão individual. Não importa o quanto parecidos em aparência, somos todos construídos de forma diferente uns dos outros. Isso está estreitamente ligado a como a pessoa respira e duas pessoas jamais respiram exatamente igual. Cada discípulo teve que ser ensinado primeiramente a como respirar e então a encontrar a nota e o tom peculiar a si no qual entoar da melhor maneira.”
“Mas a natureza não nos ensina como respirar?” Eu argumentei. Ele respondeu dizendo que a natureza, logicamente, nos compele a respirar; é a respiração que nos faz viver, mas habitualmente desempenhamos essa função de uma maneira limitada, sem estuda-la, suficientemente apenas para manter o corpo e a alma unidos. Até mesmo atletas e cantores desenvolvem a respiração apenas para servir à sua atividade particular. Também nos arrastamos por todos os lados, fazemos barulho e realizamos muitas ações sem instrução especial. Mas para andar, falar, cantar nós temos de aprender. Ainda assim ninguém pensa em ensinar as crianças como respirar – ninguém, isto é, fora de determinados círculos. Uma técnica é necessária a tudo antes que isso possa ser feito da melhor forma e isso é especialmente verdadeiro no que diz respeito ao alento vital, embora poucas pessoas parecem dar-se conta disso.
Eu ainda argumentei que a respiração era uma função natural como a digestão e a circulação e quanto mais deixamos essas coisas acontecerem por si mesmas é melhor.
“Além disso, a oração não é algo físico e sim espiritual.” Onde fica a divisão?” Ele indagou. “Se a oração não tem nada a ver com as funções físicas por que todas as religiões, incluindo aquelas fundadas de acordo com sua Bíblia, haveriam de insistir na associação da oração com o jejum?”
Calei-me diante daquilo.
“Portanto, a oração, por fim, em sua forma mais elevada teria algo a ver com a digestão e até com a qualidade da circulação do sangue.”
Esse pensamento revolucionário em si precisava de alguma digestão. Eu mudei imediatamente o assunto. “Por que a oração precisava ser entoada, por que não podia simplesmente ser recitada?” Para responder ele estufou o peito e pegando minha mão disse: “coloque seu dedo aqui.” Colocando as pontas dos meus dedos como ele indicou na base de seu peito. Ele tomou uma respiração profunda e começou a entoar a mesma nota de antes. Senti todo o seu torso vibrando e a vibração era comunicada a mim parecido com uma leve corrente elétrica. Tirei meus dedos e depois de um intervalo eu disse: “Você não canta palavras. Contou o som de um ‘O’ e seguiu para um ‘M’.” “Nada lhe escapa.” Ele balançou a cabeça de maneira encorajadora. “Esse é um exercício com o qual começar. Você gostaria de tentar?” Cante a palavra ‘home’.” Coloquei as pontas dos dedos por dentro de minha camisa apoiando-os sobre o osso externo e comecei a cantar. Mas o quão diferente do dele foi o efeito! Pude sentir apenas uma fraca vibração enquanto minha entoação parecia um resmungo quebrado.
“Não faz mal.” Disse gentilmente. “Vou lhe mostrar como praticar e em alguns anos se você for diligente você obterá resultados.”
“Anos?” exclamei desanimado. “Bem, quantos anos leva para tornar-se profissional em música? A oração é uma arte como a música ou a pintura ou a interpretação ou escultura e pelo menos tão difícil quanto. Alguns passam a vida toda para desenvolvê-la.”
“A vida toda! Qual é a utilidade dela no fim de uma vida?”
“Rapaz”, disse gravemente, “muito do que estou lhe falando agora você entenderá apenas depois. Lembre-se disso – orar é uma arte e na arte não existo objetivo final. Há sempre mais para conquistar. É uma jornada de descobertas intermináveis e de mesmo modo que em tais jornadas o que é conseguido no percurso frequentemente é tão valioso quanto o que se encontra no destino.”
Os dois homens jogando xadrez ao fundo tinha terminado uma partida. Lev Lvovitch virou-se para seu parceiro e iniciou uma nova partida.
“Por favor, diga o Pai Nosso outra vez,” eu pedi. Uma vez mais meu anfitrião juntou as mãos , ergueu-se, inspirou lenta e profundamente. E novamente a nota profunda saiu sustentando as palavras conhecidas em seu curso como uma maré levando os barcos lentamente para o porto.
“Posso tentar?” Eu me aventurei. “Claro, você deve aprender.” Mas novamente minha voz em comparação com a dele pareceu fina e vacilante, o tom oscilante e quebradiço. Ao tentar pronunciar as palavras tão lentamente quanto ele tinha feito, já estava sem ar na metade do caminho. “Não importa,” ele disse novamente. “Volta numa outra noite e lhe mostrarei como começar.” “Eu também terei de jejuar?” Perguntei. Ele olhou para mim por um momento e caiu na gargalhada. “Sim. Você terá. Mas não agora!” Ele bateu palma e um criado entrou, ele deu-lhe uma ordem e o criado trouxe uma bandeja com uma variedade de zakuki e bebidas. Ele encheu dois copos, “experimente minha confecção”, disse, “é bem melhor que whisque. Esta é à nós.”
Ele esvaziou o copo à moda russa e para não deixa-lo só o acompanhei. Foi bom que eu estava treinado, pois a coisa era potente. Ele apontou para os outros dois velhacos estão empacados no seu jogo. Vamos tomar outra.” Após o segundo copo ele chamou os dois homens e eles interromperam sua partida para se juntarem a nós. A conversa inevitavelmente foi mudada visto que o outro homem falava pouco russo e nada de inglês, portanto eu não podia falar com ele de maneira nenhuma e os três falavam entre sim em sua própria língua. Comigo Lev falava em russo, enquanto que meu anfitrião preferia o inglês. Historias irreverentes compunham parte de sua conversa, algumas das quais meu anfitrião traduzia para mim com muito gosto. Eu conhecia uma ou duas que ele traduziu para os outros com grande aprovação.
Depois do jantar, Lev e seu amigo retornaram para seu jogo e meu anfitrião disse: “vou cantar para você algumas canções orientais. Ele bateu palmas e seu criado lhe trouxe uma espécie de violão onde ele tocou músicas tipicamente orientais, por vezes murmurando, outras vezes cantando suavemente num rico tom barítono. “Em que língua você está cantando?” Perguntei. “A língua das regiões rochosas e das montanhas inacessíveis.”
Eventualmente os outros dois terminaram sua partida e depois de mais alguns goles Lev disse que era hora de ir.
“Você vai voltar?” disse meu anfitrião. “Gostaria muito mesmo. “ “Lev Levovitch lhe trará“ ele disse e levantou do divã para nos conduzir até a saída. Pude então ver que ele tinha estatura média e forma robusta. O aperto de sua mão ao se despedir era forte e poderoso.
Partimos assim como chegamos pela rua estreita, A cidade estava adormecida. Nossas pegadas eram amaciadas pela fina camada de neve. Pequenos flocos caiam silenciosamente.
“E aí, gostou do Príncipe?”, inqueriu Lev. ”O Príncipe?” ”Nós chamamo-nos de príncipe. ”Príncipe o que?” ”Ele é um príncipe?” Ele hesitou e disse, ”chame-o de príncipe Ozay. Mas o nome dele não importa. Você gostou dele?” Eu não podia encontrar palavras para descrever o que eu senti e enchi meu amigo de perguntas sobre ele. Mas ele não disse mais nada, apenas que deveríamos voltar em alguns dias.
Fomos várias vezes. No início eu estava muito intrigado com a identidade do ”Príncipe Ozay” bem como pelas palavras e ações dele. Uma curiosidade natural de um jovem. Quem era ele? Por que o sigilo? Eu ainda não havia escapado das inibições de uma sociedade cética que demanda qualificações convencionais para assegurar a autoridade. Mas já havia visto em Lev Levovitch que as qualificações convencionais importavam muito pouco. Desde então tenho notado que geralmente elas são bem enganosas. Existem muitos idiotas com graduações acadêmicas. Eu tinha motivos para pensar que meu estranho anfitrião era nominalmente um muçulmano ou seguidor de Zoroastro. Ele sempre falava da bíblia como ‘suas’ escrituras, mas se ele era Turco, Tártaro, Teutão ou Tibetano, não. Se era um pensador, um marceneiro, um soldado, um marujo ou um desocupado, também não. Nem deva para saber se sua reclusão era voluntária, forçada ou devida a motivos políticos, sociais ou religiosos. Mas nada disso importava receber dele algo que eu precisava e que ele estava disposto a dar? Ele era um homem muito culto e viajado, com um conhecimento profundo da religião e filosofia comparadas, da filosofia da vida não apenas da filosofia da universidade. E falava sobre isso de maneira tão não convencional que seria difícil descrever, tão misturado com comentários correntes sobre eventos e anedotas de um tipo ou de outro. Eu achava difícil tomar nota de mais de uma fração do que ele dizia. No que diz respeito à profissão formal dele, pelo que eu sabia ele era um mercador ou um líder de uma tribo rebelde ou um jornalista ou, como eu cheguei a suspeitar, estava visitando a capital de Rússia em alguma missão religiosa. Nunca descobri e como não era da minha conta parei de me incomodar com isso. Lev sempre falava dele com o mais profundo respeito. Ele me acompanhou em cada visita. Nós éramos recebidos sempre da mesma maneira misteriosa e ficávamos até as três da madrugada. O homem dos olhos enviesados e barba de bode foi a única pessoa que encontrei lá, a não ser pelo serviçal, um mulato, que trazia bebidas e comidas.
Ozay amava música e se interessava por mim não somente por meus experimentos com cura mas também por eu ter vindo de Londres para estudar no conservatório Russo. Era o lado musical do que ele tinha a dizer (de entoar numa única respiração) que mais me interessava, embora eu tenha logo aprendido que isso estava intrinsecamente ligado com todas as outras coisas – a psique, a filosofia a parte física. Mas não era sempre fácil captar. Como regra ele era provocativamente evasivo até que eu produzisse algum comentário incomum ou desafiador. Por exemplo, visualize-me de pernas cruzadas de frente para ele, como um discípulo aos pés do guru (isso para aqueles para os quais os termo professor e aluno não são o bastante); e meu guru é certamente divino no melhor sentido da palavra que significa totalmente humano, e a primeira pergunta dele pra mim não é a respeito da minha alma mas sobre as minhas meias. Mas dessa vez eu tinha certeza que minhas meias eram novas. “Nenhum buraco de ventilação? Que ruim! Isso me lembra de um homem que...” e ele vai de uma anedota para outra. Eu tento extrair alguma coisa sobre os assuntos que tanto me interessam, mas ele quer jogar xadrez. Mais tarde tento de novo, mas ele insiste em testar uma nova bebida que ele preparou, mais potente do que aquela da primeira visita. Por volta de duas da manhã eu murmuro, “com licença, Príncipe, mas...” Sem sucesso. Chegam mais refrescos. Mas eu não posso ser ludibriado, Espero minha chance profiro abruptamente, “Príncipe, se o Pai Nosso é ligado com o jejum, por que ele diz ‘o pão nosso de cada dia nos dai hoje’?” Esse é o tipo de comentário que o moveria.
“Você entendeu errado. Não é com o Pai Nosso que o jejum está atrelado, mas com a descoberta da nota em que tal oração deveria ser entoada. Sem jejum você não pode descobrir o Nome.” “Que nome?” Disse eu. “Bem, quando você diz ‘santificado seja o Vosso Nome’, o que você quer dizer?” Tive que confessar que nunca havia pensado sobre isso. “Na sua igreja ninguém pensa sobre isso. Eles tomam a liberdade de dizer que é o nome de ‘Deus’ e deixam isso assim. No entanto a chave está nas suas escrituras, ‘No princípio era o Nome e o Nome estava com o Senhor e o Nome era o Senhor’.” “No princípio era a Palavra, não o Nome”, eu corrigi.” “Logos, se você quer disputar”, ele retrucou. “O ponto é que quando não havia ainda nenhum linguagem não pode ter havido nenhuma palavra e não pode ter havido nenhum nome no sentido ordinário. Então, o que era o Logos? Um som. O primeiro som. O som mais profundo. Que você pode chamar de a nota tônica.”
“Um som que podemos ouvir”, perguntei. “Sentir. Não ouvir no sentido ordinário. O som mais penetrante é inaudível, assim como a luz mais penetrante é invisível. Porém através de treino você pode produzir um eco audível do som, pois cada oitava é uma réplica em um nível diferente de cada outra oitava, como todos sabem. A função da oração não é suplicar ou exaltar, mas sim de afinar.” “Afinar o que?” Perguntei. “O corpo. Ou a alma se você preferir essa metáfora. Você é um instrumento musical, como um piano e você precisa ser mantido afinado. É nesse ponto que o jejum e outros exercícios entram; você não pode refletir vibrações mais sutis quando seu corpo (sua alma se você preferir) está carregado com um monte de comida gorgolejando no estomago, ou enquanto o sangue faz uma perseguição barulhenta nas veias e artérias.” “O sangue! Fazendo um barulho?” exclamei. Como uma cascata. Você não pode ouvi-lo uma vez que você está sempre escutando para fora. Você tem de escutar para dentro e isso por si só é uma arte. Enquanto suas vias estão barulhentas com tráfego, como pode você escutar?” “Então, por que estamos comendo agora?” Eu disse com um desanimo genuíno, largando meu garfo e faca.
Meu gesto foi sincero e o fez cair na gargalhada. Ele parou para contar para Lev Levovitch e o outro homem o que eu tinha dito. Depois disse, “Ouça jovem, Quantas matérias você estuda no conservatório?” Eu as enumerei – piano, harmonia, contraponto, orquestração, condução, história da música, estética, etc.
“Ainda assim eles não formam um todo? Ele continuou. “Bem, é exatamente assim na arte da oração. O amador pensa que ele pode fazê-lo assim como um amador faz música, por alguma forma de ‘instinto’, ou como sua ‘alma’ direciona, ou alguma outra bobagem, quando na verdade é a ‘alma’ que precisa de direção. ‘Alma’ ou ‘sentimento’, como deve ser chamado, não entra na música, mas entretanto os especialistas sabem disso, para ser perfeita a música mais emocionante requer técnica treinada.”
“O jejum é um ramo da arte da oração.” Continuou, “mas é também uma arte em si e precisa ser estudado sistematicamente, não de maneira amadora ou casual. A respiração era uma outra arte e também o sexo. Ninguém jamais pode afina-se perfeitamente se tem a parte sexual fraca, subdesenvolvida, anormal ou desequilibrada.”
“E quanto ao celibato?” Perguntei. Em fases do treinamento o celibato temporário é essencial, assim como o jejum, mas seria estupidez fazer do asceticismo um fim em si mesmo. O fanático que se torna um celibato permanente é como um músico que passa a vida inteira fazendo apenas um exercício.”
Em outra ocasião eu o gravei dizendo, “Deus é alcançado não através de atividade, mas cessação de atividade. Cessação até o último limite da dieta, respiração e sexo. Esses são os três pilares sobre os quais a oração é construída. Cada um deve ser treinado e disciplinado através de restrição – não há outra maneira porque eles são todos cavalos fugitivos. Apenas quando o terreno é limpo pode a construção verdadeira começar. Apenas a partir desse ponto você pode começar a agir conscientemente. Dizer que a oração é ‘mental’ ou ‘espiritual’ é presumir a questão. A oração é fisiológica. Suas próprias Escrituras sugerem isso, mas o formalismo ensurdeceu a maioria dos padres de modo eu eles não podem entender e cegou não os deixando perceber,”
Muito do que ele disse naquele período estava além da minha compreensão. Fui entender certas coisas somente depois. Ele deve ter visto o olhar de desânimo que as vezes me assolava, pois ele repetiu mais de uma vez, “Jovem, lembre-se de que o que disse disso sendo uma viagem de descoberta. Há tanto para ser descoberto durante o percurso quanto há no final e dar alguns passos é melhor que não dar nenhum, mesmo se você tropeçar.”
As interpretações de Ozay abriram perspectivas inimagináveis e infindas. O ponto de primeira importância para mim era que os Evangelhos eram para ser estudados de uma maneira totalmente diferente da que me tinha sido passada na infância. Haviam significados que deveriam ser descobertos apenas através de uma busca diligente, era para ser conservado na memória pois a chave para sua aplicação residia nas coisas simples e práticas do dia a dia, começando primeiro de tudo com o treinamento do corpo físico para se tornar um templo adequado para o espírito. Visto não como um livro aberto mas um que era necessário achar uma chave, o evangelho tornou-se intensamente pessoal, livre de qualquer tipo de dogma, uma mensagem livre, com o Pai Nosso sendo seu emblema, as parábolas suas ilustrações. “Busques e encontrarás” soava como um trombeta vinda das profundezas, um desafio ao cometimento e à aventura, um chamado para fazer e ousar, primeiramente a respeito de si mesmo.
Ozay me encorajou a tentar compor minhas próprias orações de uma única respiração com exercícios, tomando o Pai Nosso como um padrão de duração, para serem entoadas da mesma maneira, na nota mais profunda possível, cada vez em uma única respiração constante. Eu compus uma série de orações desse tipo das quais a seguinte foi a que ele ficou muito satisfeito, foi a primeira:
‘Senhor da Vida, cujo poder supremo habita até cada célula do corpo, manifesta a Tua glória nesse lugar em plena perfeição. Que as forças radiantes que permeiam Teu universo me purifique e me elevem. Através da observação diligente da Tua lei que eu possa adquirir força divina e saúde, para que com isso possa consagrar-me em Teu serviço todo o resto dos meus dias’
A entoação de orações dessa maneira especial, disse Ozay, era praticada pela Igreja Cristã antiga, a qual herdou isso do Egito antigo, Caldeus, Brâmanes e outros no oriente, onde ela é conhecida como a ciência do Mantra. Esse lado esotérico do cristianismo foi perdido na Igreja Ocidental séculos atrás, A estandardização dos credos e dogmas tendeu a reprimir isso e o uso dos órgãos em igrejas acelerou o declínio do canto dos mântrico. Um eco do vestígio que prova sua prévia existência, permanece no costume de entoar as orações numa única nota. Mas a arte da respiração que apropriadamente as controlava foi perdida por completo. Não restou nada além daquele zumbido sóbrio e depressivo que torna cada oração uma lamentação. A maioria dos padres da igreja católica romana ou anglicana ficariam muito surpresos, para não dizer chocados, ao ouvirem que a pratica que eles realizam é uma degradação grosseira do que era pretendido que fosse, um exercício físico devocional de alto valor espiritual, projetado para treinar a respiração vital através da qual vivemos e ser executada com essa intenção em certas posturas claramente definidas bem diferentes da atitude estreita que é o costume adulterado de hoje. Uma parte muito maior da arte mântrica sobreviveu na Igreja Ortodoxa Grega, especialmente em seu braço russo, por conta de sua devoção à canção pura sem interferência de instrumentos. A Igreja Ortodoxa nunca permitiu que seu canto fosse aleijado ou rebaixado pelo acompanhamento do órgão e, de fato, não permite que órgãos sejam colocados nas Igrejas.
Mas a própria Igreja Ortodoxa foi contaminada por associação política e subserviência ao poder secular e o conhecimento uma vez preservado por trás de sua faixada dogmática foi grandemente perdido. É verdade que seus padres ainda são treinados como cantores e isso envolve produção de voz e algum controle da respiração, mas a concepção original de uma conexão essencial e inseparável entre o espiritual e o fisiológico há tempos foi perdida.
Não obstante, Ozay disse uma noite quando ele falou sobre esse assunto: “você gostaria de escutar um eco do som que tenho lhe falado a respeito?” Não havia na verdade nada que eu desejasse mais. “Então vá esta semana no serviço da abadia Alexander Nevsky.” Ele disse, “e observe particularmente tudo o que você ouvir.”
Era o início da semana santa e os grandes serviços de pré-Pascoa estavam acontecendo diariamente em todas as igrejas do país. Deixei tudo de lado para ir à Abadia cedo na manhã seguinte.
O vasto interior da Abadia era escuro. Apenas algumas velas cintilavam aqui e ali na frente dos ícones de bronze. Ao longe o canto monotônicos flutua de detrás do altar. Os devotos começam a chegar, curvando-se e fazendo o sinal da cruz conforme entram, colocando velam em seus ícones favoritos. O canto distante e lamurioso segue sem parar, destruindo todo o sentido de tempo e materialidade.
A igreja estava enchendo agora, o canto chega ao fim. O serviço está para começar. Há uma pausa e repentinamente o coral irrompe em um canto magnífico e angelical. Aquela Abadia era renomada pela beleza superlativa do seu canto mesmo entre uma galáxia de catedrais. Enquanto tensão divina ressoa pela Abadia, os grandes portões da Iconóstase são abertos e os arquimandritas com vários padres assistentes, ministrados e vestidos com robes lindos avançaram com turíbulos para borrifar na congregação com incenso. Música, cor, perfume – sábios eram aqueles que idealizaram esse pano de fundo para o exercício religioso!
O ofício elaborado segue seu curso. O barítono profundo de um padre após o outro desenvolvem as invocações, o coral responde e ressoa. Por fim chega o momento da leitura das escrituras. Um jovem padre, era difícil de dizer sua idade devido as sua longa barba e cabelo, provavelmente na casa dos 30, sobe no átrio ele arruma suas vestes, curva-se perante o altar, faz o sinal da cruz e prepara-se para ler. “Ler?” a primeira indicação de que ele está lendo é a reverberação da vastidão silenciosa da igreja com um som grave, uniforme e prolongado. Com cada longa expiração ele canta uma única frase, muito lentamente e com a articulação uniforme das sílabas . A voz era um barítono riquíssimo, com o tom similar ao dos seus colegas, porém mais polido, mais vibrante. Ele começou com uma nota e a cada frase ia subindo um semitom ao mesmo tempo aumentando o volume. Sua voz tomou e ressoou em ondas poderosas os arcos e abóbodas. Quando finalmente, na oitava ele atingiu o clímax da “leitura” a nota é como um último trunfo – triunfante, majestosa, exaltante e avassaladora.
A princípio fui cativado apenas pela riqueza da voz, a qual poderia ter dado fama mundial a seu dono se ele tivesse ingressado no mundo da ópera. Aquilo por si, entretanto, não era nada de excepcional da igreja Russa. Chaliapin não era o único grande cantor que começou sua carreira no coro de seu vilarejo. Nem era o jeito da leitura incomum. Era uma forma estabelecida, naquela altura as escrituras eram lidas da mesma forma em todas as igrejas do país. Ainda assim a voz desse jovem sacerdote era diferente de todas as outras. Quando ele atingiu determinada nota notei algo muito extraordinário acontecer na sua voz. Ele parecia estar dirigindo-a de certa maneira. Ele segurou o atril com ambas as mãos e postou-se bem ereto, elevou ligeiramente sua cabeça e pareceu estar projetando os sons que produzia na direção de algum ponto no vasto espaço acima. Eu não escutava o efeito, eu sentia. Era perfurante, quase como uma dor, análogo à dor eu sentimos quando movemos o olhar abruptamente da escuridão para a luz. Ele atingia esse estranho efeito somente em algumas vogais e nesses momentos eu sentia o som como se estivesse sendo produzido na minha própria cabeça e pelo todo meu corpo. Eu parecia estar identificado com ele e seu efeito fazia tudo ao meu redor parecer flutuar e por um momento parecer irreal e etéreo. Fiquei com medo de cambalear e cair e tinha que me recompor com esforço. Foi uma experiência desconcertante. Quando ele atingiu sua nota final exultante senti o senso de si ser levado embora de maneira quase insustentável, embora eu não pudesse ter feito nada para deter ou escapar disso. Mas experimentei um sentimento quase de alívio quando o coral voltou a cantar. Logo recuperei-me e olhei ao redor para ver se as outras pessoas tinham sido afetadas igualmente. Se alguém tinha sentido os mesmos sons que eu não era possível dizer, mas que toda a congregação havia sido profundamente impressionada estava fora de questão. A maioria estava de joelhos e chorando.
Ele desceu do tablado e a missa prosseguiu. Saí de lá sabendo que tinha escutado o que Ozay queria que eu ouvisse e estava ansioso em manter as lembranças frescas em minha mente. Fui mais duas ou três vezes durante a semana e tive a mesma experiência.
Contei primeiro a Lev Levovitch a respeito. “Você deve contar ao príncipe.” Ele disse.
O mero fato de Ozay conhecer o sacerdote fez com que inevitavelmente eu estabelecesse uma conexão entre os dois um minha mente.
“Aquele jovem sacerdote é um pupilo de Ozay?” Perguntei inquisitivamente para Lev, mas não recebi nenhum encorajamento em bisbilhotar naquilo que não é da minha conta.
Ele me levou a Ozay e uma das primeiras perguntas que fiz foi se as outras pessoas da congregação podiam te tido a mesma experiência que a minha. Ele respondeu que era improvável, embora qualquer pessoa sensível seria tocada pela qualidade incomum da voz. “Você deve tomar a sua experiência como algo encorajador. O que significa que mesmo a partir dos poucos exercícios que você fez, seu corpo, (ou sua alma se você preferir) começou a ficar receptivo ao Nome ou à Palavra. Em alguns anos se você for persistente, você notará os resultados.”
“Entretanto, não posso dizer que tenha sido exatamente prazeroso.” Comentei. “Jovem, você pode condenar o sol por ele te cegar se você olhar para ele, ou o fogo te queimar se você tocar nele, ou os músculos se eles doem com esforço? A verdade deve ser sempre revelada em pequenas doses, de maneira bem diluída. E o som também, deve ser racionado, especialmente o Nome que está acima de todos os nomes, como dizem as suas Escrituras. É por isso que o Nome deve ser santificado. Uma overdose poderia facilmente mata-lo antes de você estar trainado para isso” “Poderia ter me matado na catedral?” Perguntei admirado. “Sim, se tivesse sido mais concentrado, da mesma maneira que a corda de um violino pode estourar se for puxada muito forte ou uma nota musical de uma certa qualidade pode quebrar objetos à distância.”
Comecei a pensar que eu tinha me livrado. Meu rosto deve ter mostrado meu pensamento, pois vi a expressão dele mudar. “Rapaz, eu poderia mata-lo em um instante sentado aqui sem que nenhum de nós movêssemos nenhum músculo.” Olhei para ele com admiração, desacreditando por um instante, mas havia algo no tom e no jeito dele que trazia convicção. Sentei-me embaraçado e desconcertado.
“Você tem medo de riscos? Entenda isto claramente -ninguém pode atingir esse tipo de conhecimento sem o risco de morte. Deus, empregado erroneamente, é o Diabo. Existe apenas uma força na criação. Deus e o Diabo jazem meramente em sua aplicação.”
Um comentário:
Saudações !
Que bom que esteja de volta.
Um caloroso abraço.
Graça
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