quarta-feira, 20 de abril de 2011

Philokalia - São Gregório Pálamas - A Ciência Natural e Teológica (parte 2)

A língua inspirada e universal do teólogo divino, São João de Damasco, diz no segundo de seus capítulos teológicos: “Um homem que deseja falar ou ouvir qualquer coisa a respeito de Deus deveria saber com toda clareza que no que diz respeito à teologia e à economia divina nem todas as coisas são inexprimíveis e nem todas são capazes de expressão, e que nem todas as coisas são incognoscíveis nem são todas conhecíveis”. Sabemos que essas realidades divinas das quais desejamos falar transcendem a fala, uma vez que tais realidades existem de acordo com um princípio que é transcendente. Elas não estão fora do reino da fala por causa de alguma deficiência, mas estão além do poder conceitual inato dentro de nós ao qual damos expressão quando falamos com os outros. Pois nem nossa fala pode explicar essas realidades através de interpretação, nem nosso poder conceitual inato tem a capacidade de alcançá-las por si próprio através de investigação. Portanto, não deveríamos nos permitir dizer nada concernente a Deus, e sim recorrer àqueles que em Espírito falam das coisas do Espírito, e isso mesmo quando as pessoas requererem alguma afirmação nossa.

É dito que nos portais da academia de Platão estavam inscritas as palavras: “Que não entre nenhum homem que seja ignorante em geometria.” Uma pessoa incapaz de conceber e discursar sobre as coisas inseparáveis como separadas é, de todo modo, ignorante em geometria. Pois não pode haver um limite sem algo limitado. Mas a geometria é quase que totalmente uma ciência de limites e ela até mesmo define e estende limites por eles mesmos, abstraídos daquilo que eles limitam, porque o intelecto separa o inseparável. Como pode, então, uma pessoa que nunca aprendeu a separar em seu intelecto um objeto físico de seus atributos, estar apta a conceber a natureza em si mesma? Pois a natureza não é meramente inseparável dos elementos naturais que lhe são inerentes, mas não pode nem mesmo existir em momento algum sem eles. Como ele pode conceber os universais como universais, sendo que eles existem como tais em particulares e são distinguidos deles apenas pela inteligência e pela razão, sendo percebidos intelectualmente como anteriores aos muitos particulares embora na verdade não possam de maneira nenhuma existir separados desses muitos particulares? Como ele poderá compreender as coisas intelectuais e espirituais? Como poderá entender quando dizemos que cada intelecto também tem pensamento e que cada um de nossos pensamentos é nosso intelecto? Como ele não irá nos ridicularizar e nos acusar de dizermos que cada homem possui duas ou mais mentes?
Se, portanto, uma pessoa não consegue falar ou conceber as coisas indivisíveis como distintas, como poderá discutir ou ser ensinada sobre algo desse tipo no que se refere a Deus, a respeito do qual, de acordo com os santos, existem e é dito existirem muitas uniões e distinções? Mas embora as uniões pertencentes a Deus prevaleçam e sejam anteriores às distinções, elas não as abolem e nem as impedem. Os seguidores de Akindynos, entretanto, não podem aceitar ou compreender a distinção indivisível que existe em Deus, mesmo quando nos ouvem falar, em harmonia com os santos, de uma união dividida. Pois a Deus pertencem a incompreensibilidade e a compreensibilidade, embora Ele em Si seja um. O mesmo Deus é incompreensível em sua essência, mas compreensível pelo que Ele criou de acordo com Suas energias divinas, ou seja, de acordo com Sua vontade pré-eterna relacionada a nós, Sua providência pré-eterna referente a nós, Sua sabedoria pré-eterna no que diz respeito a nós e, usando as palavras de São Máximo, Seu poder, sabedoria e bondade infinitos. Mas quando aqueles que não nos compreendem nos ouvem falar dessas coisas que somos obrigados a dizer, eles nos acusam de falarmos de muitos deuses e de muitas falsas realidades e de tornarmos Deus composto. Pois eles são ignorantes do fato de que Deus é indivisivelmente dividido e é unido divididamente e ainda assim, a despeito disso, não sofre nem multiplicidade nem torna-se composto.

Cada natureza criada está distante e é completamente estrangeira à natureza divina. Pois se Deus é uma natureza, as outras coisas não são natureza; mas se todas as outras coisas são natureza, Ele não é uma natureza, assim como Ele não é um ser se todas as outras coisas são seres. E se Ele é um ser, todas as outras coisas não são seres. E se você aceitar isso como verdade também no que diz respeito a sabedoria, a bondade e a todas as coisas em geral pertencentes a Deus ou atribuídas a Ele, então sua teologia estará correta e de acordo com os santos. Deus é e é dito ser a natureza de todos os seres, na medida que todos participam Dele e subsistem por meio dessa participação: porém, não pela participação em Sua natureza – longe disso – mas pela participação em Sua energia. Nesse sentido ele é o Ser de todos os seres, a Forma de todas as formas bem como o autor da forma, a Sabedoria dos sábios e, simplesmente, o Tudo de todas as coisas. Ademais, Ele não é uma natureza, pois Ele transcende toda natureza; Ele não é um ser, pois transcende todo ser e Ele não é e nem possui uma forma porque Ele transcende a forma. Como, então, podemos nos aproximar de Deus? Ao nos aproximarmos de sua natureza? Mas nem um único ser criado teve ou pode ter qualquer comunicação ou proximidade com a natureza sublime. Assim, se alguém conseguiu aproximar-se de Deus, evidentemente aproximou-se Dele por meio de Sua energia. De que maneira? Através da participação natural nessa energia? Mas isso é comum a todos os seres criados. Desse modo, não é em virtude das qualidades naturais, mas em virtude do que é atingido pela livre escolha que a pessoa fica perto ou longe de Deus. Mas a livre escolha pertence apenas aos seres dotados de inteligência. Portanto, dentre todas as criaturas apenas aquelas dotadas de inteligência podem ficar longe ou perto de Deus, aproximando-se através da virtude ou distanciando-se através do vício. Assim, apenas tais seres são capazes de miséria ou de bênção.

São Paulo ensinou-nos que a alma adornada com inteligencia pode ficar como que morta mesmo possuindo a vida como seu ser, pois ele escreve: “a viúva que só busca prazer já está morta mesmo se vive”(1 Tim 52.6). Ele não podia ter dito pior a esse respeito sobre o presente assunto de nosso discurso, isto é, da alma dotada com inteligencia. Pois se a alma privada do Noivo espiritual não se humilha e não se aflige e não adota uma vida de doloroso e rigoroso arrependimento, e ao invés disso, de maneira libertina mergulha nos prazeres sensuais e na auto-indulgencia, ela está morta mesmo enquanto vive, mesmo que ela seja imortal em essência. Ela tem a capacidade para o que é pior, ou seja, a morte, e da mesma maneira para o que melhor - a vida. O apostolo diz que se uma viúva privada de seu noivo mundano vive só para satisfazer seus prazeres, mesmo que esteja viva em seu corpo, ela está completamente morta em sua alma. Ele também diz em outro lugar: “mesmo quando estávamos mortos por causa de nossos pecados, Deus nos vivificou juntamente com Cristo”(Efé. 2.5). E São João também diz: “existe um pecado que conduz à morte e existe um pecado que não conduz à morte”(1 João 5:16,17). E o Próprio Senhor ao ordenar um homem a: “deixar os mortos enterrarem seus mortos”(Mat. 8.22), deixou claro que aqueles envolvidos no funeral embora vivessem no corpo estavam plenamente mortos em alma.

Os ancestrais de nossa raça desistiram voluntariamente da vigilância e da contemplação de Deus. Eles desconsideraram Seus mandamentos, fizeram de si mesmos uma mente com o espirito morto de satã, e contrariamente à vontade do Criador, comeram da árvore proibida. Despidos de suas vestimentas resplandecentes e vivificantes de esplendor celestial, tornaram-se mortos em espirito como satã. Mas uma vez que satã não é meramente um espirito morto, mas também traz a morte àqueles que aproximam-se dele, e uma vez que aqueles que compartilham de sua escuridão possuíam um corpo através do qual seus conselhos funestos podiam operar, eles transmitiram esses espíritos mortos, esses mercadores da morte, a seus próprios corpos. O corpo humano teria se decomposto imediatamente e retornado de onde ele foi tirado se não tivesse sido preservado pela providência divina e pelo poder divino, pacientemente esperando a decisão Daquele que cria todas as coisas através de Sua palavra apenas. Sem essa decisão absolutamente nada é realizado e ela é sempre justa. Como o salmista diz: “o Senhor é justo e Ele ama a justiça”(Sal. 2:7).

A escritura nos diz: “Deus não criou a morte”(Sab.1:13). Ao contrário ele impediu sua concepção até onde foi possível e até onde foi compatível com Sua justiça para obstruir aqueles aos quais Ele próprio tinha dado livre arbítrio quando os criou. Pois no início Deus deu-lhes um conselho que iria conduzi-los a imortalidade, e para que fossem salvaguardados na medida do possível, Ele transformou seu conselho vivificante num mandamento. Ele claramente prognosticou e advertiu que a morte seria a consequência da rejeição desse mandamento vivificante, de modo que ou através do amor, ou do conhecimento ou do temor, eles se protegeriam da experiência da morte. Sendo que no mais alto grau possível Deus ama, conhece e tem o poder de efetuar o que é vantajoso para cada ser criado, tudo o que vem Dele a nós, mesmo que seja sem que desejemos isso, certamente provará ser para nosso benefício. Por outro lado, devemos muito temer que aquilo que nos engajamos por nossa própria iniciativa, como criaturas dotadas de livre arbítrio, provará ser desvantajoso para nós.
Quando, entretanto, em Sua providência Deus proibiu definitivamente alguma coisa, seja falando diretamente, como Ele o faz no Paraíso e no Evangelho ou seja falando através dos profetas, como ele faz nos Israelitas, ou através dos Apóstolos e de seus sucessores, como o faz na lei da graça, é claramente desvantajoso e destrutivo para nós desejar e possuir isso. E se alguém profere isso a nós e nos induz a obter tal coisa, através de palavras persuasivas ou ao nos encantar com uma aparente amizade, essa pessoa é manifestadamente um inimigo e é hostil a nossa vida.

Dessa forma, seja por causa do amor por Aquele que quer que vivamos (pois por que Deus teria nos criado como criaturas vivas se Ele não quisesse especialmente que vivêssemos?), ou porque reconhecemos que Ele sabe mais o que é vantajoso para nós do que nós mesmos sabemos (e como Aquele que nos concede o conhecimento e é o Senhor do conhecimento não saberia disso incomparavelmente melhor do que nós?), ou por causa do temor de Seu poder Onipotente – não deveríamos ter sido enganados, atraídos e persuadidos naquele momento a rejeitarmos os mandamentos e conselhos de Deus. E o mesmo é válido hoje no que diz respeito a esses mandamentos e conselhos salvadores que recebemos posteriormente. Assim como agora aqueles que não escolhem resistir corajosamente ao pecado e que não se põe a praticar os mandamentos divinos em nada, terminam – se não renovam suas almas através do arrependimento- seguindo o caminho que conduz à morte interna e eterna, também nossos dois ancestrais primais, ao não resistirem àqueles que lhes persuadiam a desobedecer, violaram o mandamento. Por causa disso a sentença previamente proclamada a eles por Aquele que julga de maneira justa, imediatamente efetuou-se, de modo que assim que comeram da árvore eles morreram. Nesse caso eles entenderam na prática o significado do mandamento que haviam esquecido – o mandamento da verdade, do amor, sabedoria e poder – e eles se esconderam de vergonha (ref. Gen. 3 – 7,8), percebendo-se despojados da glória que confere aos espíritos imortais uma vida mais excelente e sem a qual a vida dos seres espirituais é de fato pior do que muitas mortes.

Que ainda não era para o benefício de nossos ancestrais comer da árvore, fica claro quando São Gregório de Nizianzos escreve: “A árvore, na minha visão das coisas, é a contemplação divina, a qual apenas aqueles estabelecidos num alto grau de perfeição podem se aproximar com segurança, enquanto que não é bom para aqueles que ainda são imaturos e ávidos em seus desejos, do mesmo modo que a comida sólida não é boa para aqueles que ainda são frágeis e necessitam de leite”. Mas mesmo se você não quiser referir-se àquela árvore e seu fruto de maneira anagógica à contemplação divina, penso que não seja difícil de ver que comer seu fruto não foi benéfico para nossos ancestrais, uma vez que eles eram ainda imaturos. Na minha opinião, eles viram que a árvore era muito atraente de se olhar e de se alimentar no paraíso. Mas a comida mais atraente para os sentidos não é verdadeiramente e em todos os sentidos boa, e não é boa sempre e nem para todas as pessoas. Ela é boa para aqueles que podem utilizá-la sem serem dominados por ela, e, então, somente quando é necessária, na medida que seja necessária e que seja pela glória Daquele que a criou; mas não é boa para aqueles que não estão aptos a usá-la de tal maneira. Penso que é por causa disso que a árvore foi chamada de a árvore do conhecimento do bem e do mal. (ref. Gen. 2:17)

Pois apenas aqueles plenamente estabelecidos na prática da contemplação divina e das virtudes podem concursar com coisas fortemente atraentes aos sentidos sem afastarem-se da contemplação de Deus e dos hinos e preces a Ele. Apenas tais pessoas podem fazer dessas coisas um material e um ponto de partida para elevarem-se para Deus, e através desse movimento espiritual na direção de Deus podem dominar totalmente os prazeres sensuais. E mesmo que o prazer seja novo e possa ser maior e mais poderoso por causa de sua novidade, eles não permitirão que a inteligência de sua alma seja sobrepujada pelo que é mau, mesmo que seja considerado naquele momento como bom por aqueles totalmente dominados e capturados por aquilo.

O mediador e a causa da morte, de caráter retorcido e astúcia excessiva, introduziu-se numa serpente rastejante no paraíso de Deus. Ele não tornou-se uma serpente (nem poderia, exceto numa forma ilusória; e isso ele preferiu não adotar naquele momento por medo de ser detectado), mas, não ousando se arriscar a uma confrontação aberta, ele escolheu uma aproximação traiçoeira, acreditado que dessa maneira escaparia de ser detectado. Assim, tendo o aspecto visível de um amigo ele poderia secretamente insinuar as coisas mais detestáveis, e pelo fato extraordinário de seu discurso – pois a serpente visível não era dotada de inteligência, nem previamente parecia capaz de falar – ele pôde impressionar Eva e atrair toda sua atenção para si e através de seus artifícios torná-la fácil de se lidar. Dessa forma, ele pôde imediatamente induzi-la a sujeitar-se ao que é inferior e assim escravizá-la a coisas às quais ela estava designada a reinar dignamente, sendo que apenas ela entre os seres visíveis tinha sido honrada por Deus com inteligência e sido criada à imagem do Criador. Deus permitiu isso para que o homem, vendo o conselho vindo de uma criatura inferior a si – e, de fato, o quão inferior a ele é uma serpente – pudesse perceber o quanto era completamente sem valor esse conselho e pudesse corretamente rejeitar com indignação a idéia de se submeter ao que era claramente inferior a ele. Dessa maneira ele preservaria sua própria dignidade e ao mesmo tempo, ao obedecer ao mandamento divino, manteria a fé com o Criador. Assim ele teria vencido facilmente o espírito que havia caído da vida verdadeira e teria recebido a imortalidade abençoada, podendo habitar eternamente na vida divina.