quarta-feira, 30 de junho de 2010

G. I. Gurdjieff - Londres, 1922

O homem é um ser plural. Quando falamos de nós mesmos, ordinariamente, falamos de 'eu'. Nós dizemos: “'eu' fiz isso”, “'eu' penso isso”, “'eu' quero fazer isso”, mas isso é um erro.
Não há tal 'eu', ou melhor, há centenas, milhares de pequenos 'eu's em cada um de nós. Estamos divididos em nós mesmos, mas não podemos reconhecer a pluralidade do nosso ser, exceto através de observação e estudo. Em um momento é um 'eu' que atua, no momento seguinte é outro 'eu'. É porque os 'eu's em nós mesmos são contraditórios que não funcionamos de maneira harmoniosa.
Vivemos normalmente com apenas uma parte muito diminuta de nossas funções e de nossa força porque não reconhecemos que somos máquinas e não conhecemos a natureza e o funcionamento de nosso mecanismo. Nós somos máquinas.
Somos inteiramente governados por circunstâncias externas. Todas as nossas ações seguem a linha da menor resistência à pressão das circunstâncias externas.
Experimente por si mesmo: você pode governar suas emoções? Não. Você pode tentar suprimi-las ou trocar uma emoção por outra emoção. Mas você não pode controlá-las. Elas controlam você. Você pode decidir fazer alguma coisa, seu 'eu' intelectual pode tomar tal decisão. Mas quando chegar a hora de executá-la, você pode se encontrar fazendo exatamente o oposto.
Se as circunstâncias são favoráveis à sua decisão você poderá segui-la, mas se forem desfavoráveis, você fará tudo o que elas ditarem. Você não controla suas ações. Você é uma máquina e as circunstâncias externas governam as suas ações, independentemente de seus desejos.
Eu não digo que ninguém pode controlar suas ações. Eu digo que você não pode, porque você está dividido. Há duas partes em você, uma forte e uma fraca. Se a sua força cresce, sua fraqueza também irá crescer, e se tornará uma força negativa, a menos que você aprenda a pará-la.
Se aprendermos a controlar nossas ações, isso será diferente. Quando um certo nível de ser é alcançado, podemos realmente controlar cada parte de nós mesmos, mas, como somos agora, não podemos nem mesmo fazer o que decidimos fazer.
Pergunta: Mas podemos mudar as condições.
Gurdjieff: As condições nunca mudam, são sempre as mesmas. Não há nenhuma mudança, apenas modificação das circunstâncias.
Pergunta: Se um homem se tornar melhor, não é uma mudança?
Gurdjieff: Um homem não significa nada para a humanidade. Um homem se torna melhor, outro se torna pior, é sempre a mesma coisa.
Pergunta: Mas não é uma melhoria para um mentiroso se tornar verdadeiro?
Gurdjieff: Não, é a mesma coisa. Primeiro ele diz mentiras mecanicamente porque ele não pode dizer a verdade, então ele dirá a verdade mecanicamente porque agora é mais fácil para ele. A verdade e a mentira são importantes apenas em relação a nós mesmos se pudermos controlá-las. Tais como somos, não podemos ser morais, porque somos mecânicos. A moralidade é relativa, subjetiva, contraditória e mecânica. É o mesmo conosco: o homem físico, o homem emocional, o homem intelectual, cada um tem um conjunto diferente de moral condizente com sua natureza. A máquina de cada homem está dividida em três partes básicas, três centros.
Olhe para si mesmo em qualquer momento e pergunte: "Que tipo de "eu" é esse que está operando no momento? Ele pertence ao meu centro intelectual, ao meu centro emocional ou ao meu centro motor?" Você provavelmente vai descobrir que é muito diferente do que você imagina, mas vai ser um desses.
Pergunta: Não há um código absoluto de moralidade que deveria ser igualmente obrigatório a todos os homens?
Gurdjieff: Sim. Quando pudermos usar todas as forças que controlam os nossos centros, então poderemos ser morais. Mas até então, enquanto usarmos apenas uma parte de nossas funções, não poderemos ser morais. Nós agimos mecanicamente em tudo o que fazemos, e máquinas não podem ser morais.
Pergunta: Parece ser uma posição desesperadora.
Gurdjieff: Com certeza. É desesperadora.
Pergunta: Então como podemos mudar a nós mesmos e usar todas as nossas forças?
Gurdjieff: Isso é outra questão. A principal causa de nossa fraqueza é a nossa incapacidade de aplicar a nossa vontade a todos os nossos três centros simultaneamente.
Pergunta: Será que podemos aplicar a nossa vontade a algum deles?
Gurdjieff: Certamente, às vezes fazemos isso. Às vezes, podemos até ter a capacidade de controlar um deles por um momento, com resultados muito extraordinários.

(Ele relata a história de um prisioneiro que jogou uma bola de papel com uma mensagem para sua esposa através de uma janela alta e de difícil acesso.)

Este era o seu único meio de se tornar livre. Se ele falhasse na primeira vez ele jamais teria outra chance. Ele conseguiu por um momento ter absoluto controle sobre o seu centro físico de modo que ele foi capaz de realizar o que de outra forma nunca poderia ter feito.
Pergunta: Você conhece alguém que tenha chegado a este plano superior de ser?
Gurdjieff: Não significa nada se eu disser sim ou não. Se eu disser que sim, você não poderá confirmar e se eu disser que não, você se julgará o mais sábio. Você não tem que acreditar em mim. Peço-lhe para não acreditar em nada que você não possa verificar por si mesmo.
Pergunta: Se somos totalmente mecânicos, como é que vamos começar a ter controle sobre nós mesmos? Pode uma máquina controlar a si mesma?
Gurdjieff: Muito bem, claro que não. Não podemos mudar a nós mesmos. Nós só podemos modificar a nós mesmos um pouco. Mas podemos ser mudados com ajuda vinda de fora.
A teoria do esoterismo é que a humanidade consiste de dois círculos: um círculo grande, exterior, abrangendo todos os seres humanos, e um círculo pequeno de pessoas instruídas e com compreensão nesse centro. Instrução Real, que unicamente pode nos mudar, só pode vir desse centro e o objetivo deste ensinamento é nos ajudar a nos preparar para receber tais instruções. Por nós mesmos não podemos nos mudar, isso só pode vir de fora.
Toda religião aponta para a existência de um centro comum de conhecimento. Em todos os livros sagrados o conhecimentos está lá, mas são as pessoas que não querem saber disso.
Pergunta: Mas já não temos um ótimo suprimento de conhecimento?
Gurdjieff: Sim, muitos tipos de conhecimento. Nosso presente conhecimento está baseado em percepções sensoriais, como a das crianças. Se desejarmos adquirir o tipo certo de conhecimento, deveremos mudar a nós mesmos. Com o desenvolvimento do nosso ser, podemos encontrar um estado superior de consciência. Mudança de conhecimento vem da mudança de ser. O conhecimento em si não é nada. Devemos, primeiramente, ter autoconhecimento, e com a ajuda do autoconhecimento, iremos aprender como mudar a nós mesmos - isto se quisermos mudar a nós mesmos.
Pergunta: E essa mudança ainda deve vir de fora?
Gurdjieff: Sim. Quando estivermos prontos para um novo conhecimento ele virá a nós.
Pergunta: Podemos alterar nossas emoções pelo meio do julgamento?
Gurdjieff: Um centro de nossa máquina não pode mudar um outro centro. Por exemplo: em Londres, fico irritado, o tempo e o clima me desanimam e me deixam mal humorado, enquanto que na Índia, fico bem humorado. Portanto, meu julgamento me diz para ir para a Índia e assim expulsarei a emoção da irritabilidade. Mas, então, em Londres, descubro que eu posso trabalhar; já nos trópicos, não tão bem. E assim, lá estaria irritado por qualquer outra razão. Você vê, as emoções existem independentemente da decisão e você não pode alterar uma através da outra.
Pergunta: O que é um estado superior de ser?
Gurdjieff: Existem vários estados de consciência:
1) o sono, no qual nossa máquina ainda funciona, mas numa pressão muito baixa.
2) o estado de vigília, como estamos neste momento. Esses dois são tudo o que o homem comum conhece.
3) o que é chamado de autoconsciência. É o momento em que um homem está consciente tanto de si mesmo quanto de sua máquina. Temos esse estado em flashes, mas apenas em flashes. Há momentos em que você se torna consciente não só do que você está fazendo, mas também de você mesmo fazendo aquilo. Você vê tanto o 'eu' quanto o "aqui" de "eu estou aqui", tanto a raiva quanto o "eu" que está com raiva. Chame isso de lembrança de si, se quiser.
Agora, quando você está completamente e sempre consciente do 'eu' e do que ele está fazendo e que 'eu' ele é - você se torna consciente de si mesmo. A autoconsciência é o terceiro estado.
Pergunta: Não é mais fácil quando se é passivo?
Gurdjieff: Sim, mas é inútil. Você deve observar a máquina quando ela estiver trabalhando. Há estados além do terceiro estado de consciência, mas não há necessidade de falarmos deles agora. Apenas um homem no mais elevado estado de ser é um homem completo. Todos os outros são apenas frações de homem. A ajuda externa que é necessária virá de professores ou do ensinamento que estou seguindo. Os pontos de partida desta auto-observação são:
1) Que nós não somos um.
2) Que não temos controle sobre nós mesmos. Nós não controlamos nosso próprio mecanismo.
3) Não nos lembramos de nós mesmos. Se eu digo que 'eu' estou lendo um livro e não sei que 'eu' estou lendo, é uma coisa, mas quando estou consciente de que 'eu' estou lendo, isso é lembrança de si.
Pergunta: Isso não resulta em cinismo?
Gurdjieff: Verdade. Se você não for mais longe para ver que você e todos os homens são máquinas, você simplesmente vai se tornar cínico. Mas se você levar a cabo o seu trabalho, você vai deixar de ser cínico.
Pergunta: Por que?
Gurdjieff: Porque você vai ter que fazer uma escolha, decidir: ou buscar tornar-se completamente mecânico ou completamente consciente. Esta é a encruzilhada dos caminhos da qual todos os ensinamentos místicos falam.
Pergunta: Será que não existem outras maneiras de fazer o que eu quero fazer?
Gurdjieff: Na Inglaterra, não. No Oriente, é diferente. Existem métodos diferentes para homens diferentes. Mas você deve encontrar um professor. Só você pode decidir o que é que quer fazer. Procure no seu coração o que você mais deseja e se você for capaz de fazê-lo, você vai saber o que fazer. Pense bem sobre isso, e então vá em frente.