sábado, 31 de outubro de 2009

Tukaram - A constante vigília de Deus

Algumas pessoas fazem inutilmente pouco caso do corpo em prol da realização espiritual. Vestem roupas marrons, mas um cão também é marrom; ficam com os cabelos emaranhados, mas um urso também tem seus pelos emaranhados. Eles vivem em cavernas, mas até os ratos vivem em cavernas. Essas pessoas fazem arrelia com o corpo por nada. O corpo é tanto bom quanto ruim. Deveríamos nos elevar acima do corpo e pensar em Deus. Se olharmos de um ponto de vista o corpo é um armazém de misérias, uma mina de doenças, o berço de imundices, o mais ímpio dos ímpios. De outro ponto de vista, o corpo é bom e lindo, uma fonte de felicidade e um meio de realização espiritual. Ainda assim, o corpo é meramente um produto coagulado do sangue menstrual, uma rede de desejos e paixões e uma presa da morte. De outro lado, é algo puro, o tesouro dos tesouros, o templo de Deus, o meio de se livrar da existência mundana. Não deveríamos dar nem alegria e nem tristeza para o corpo. O corpo não é bom nem mau. Deveríamos elevarmo-nos acima dele e pensar em Deus.


Se levarmos a cabo nossa prática espiritual regularmente, o que ela não poderá alcançar? A raiz úmida de uma planta quebra até grandes pedras. A prática pode alcançar toda e qualquer coisa. Nada pode impedir um esforço determinado. Uma corda pode cortar até uma pedra dura. Uma pessoa pode acostumar-se com veneno ao tomar doses gradativamente maiores. Uma criança esculpe um lugar para si no útero da mãe conforme o tempo transcorre. Uma pessoa pode pegar uma cobra venenosa em suas mãos, causando terror no coração daqueles que assistem. Através da prática até o impossível torna-se possível. Portanto, deveríamos ir para a solidão e fixar nossa mente em Deus, não deveríamos permitir que nossa mente ficasse vagando, deveríamos evitar todas as coisas frívolas, deveríamos estabelecer nosso coração na realidade e perfurá-la como uma flecha perfura o alvo. Deveríamos dizer adeus à indolência e ao sono e viver na constante vigília de Deus.

Meher Baba - Karma-Yoga Real

Na verdadeira karma-yoga, ou a vida de perfeita ação, há um ajuste apropriado entre os aspectos materiais e espirituais da vida. Nesse tipo de vida, a consciência não é dominada pelas coisas mundanas e materiais, mas, ao mesmo tempo, não é permitido que ela fuja da existência cotidiana. Não é permitido que a mente fique imersa na vida material das vontades corrosivas e nem que fique fundida em êxtase espiritual. Ela é usada para enfrentar e resolver os problemas da vida do ponto de vista da compreensão espiritual. O ajuste adequado entre os aspectos espirituais e materiais da vida não é garantido dando-se igual importância a eles. Não é garantido ao pegarmos algo de material e algo de espiritual e, em seguida, estabelecer um equilíbrio entre os dois. O espírito tem de ter e sempre terá primazia inviolável sobre a matéria; no entanto, a primazia não é expressada ao evitar ou rejeitar a matéria, mas sim usando-a como um veículo adequado para as manifestações do espírito. No ajuste inteligente a matéria tem de desempenhar o papel de um instrumento flexível para a auto-manifestação do espírito e não deve de modo algum tornar-se inoportuna em seu próprio direito. Assim como um instrumento musical é valioso apenas se dá expressão à música de um músico e se torna um empecilho se não render total subserviência, a matéria é importante se der expressão livre e adequada para o fluxo criativo da vida e torna-se um obstáculo se interferir nele.

Devido à multiplicidade de desejos da mente, a matéria tem uma tendência a assumir importância para si. Para o bêbado o vinho é tudo, para os gananciosos o acúmulo de dinheiro é muito importante e para o fanfarrão a caça por sensações é o fim supremo da vida. Esses são exemplos de como, através de diversos anseios da mente, a matéria torna-se demasiadamente intrusiva e perverte as expressões do espírito. A maneira de restaurar a dignidade do espírito não é rejeitar a matéria, mas usá-la para as reivindicações do espírito. Isso só é possível quando o espírito está livre de todos os anseios e plenamente consciente do seu próprio e verdadeiro status. Quando isso é alcançado, um indivíduo pode ter bens materiais mas não ficará aprisionado neles. Quando necessário, poderá usá-los como meios para a vida do espírito, mas ele não é seduzido por eles nem perde a paz por conta deles. Ele percebe que, por si só, eles não constituem o verdadeiro significado da vida. Ele habita no meio material e social, sem qualquer anseio por eles e, estando desapegado, é capaz de convertê-los para a vida espiritual.
Quando um verdadeiro ajustamento entre espírito e matéria é garantido, não há qualquer fase da vida que não possa ser utilizada para a expressão da divindade. Já não há qualquer necessidade de fugir da vida cotidiana e seus emaranhados. A liberdade do espírito que é procurada ao se evitar o contato com o mundo ou ao nos retirarmos para uma caverna ou para as montanhas é uma liberdade negativa. Quando tal reclusão for temporária e servir para digerir as experiências mundanas e desenvolver o desapego, ela terá suas vantagens. Ela dá um tempo para respirar na corrida da vida. Mas, quando tal reclusão estiver baseada no medo do mundo ou na falta de confiança no espírito, ela está longe de ser útil na realização da liberdade real. A verdadeira liberdade é essencialmente positiva e deve expressar-se através de um domínio sem entraves do espírito sobre a matéria. Esta é a verdadeira vida do espírito.

A vida do espírito é a expressão do Infinito e, como tal, não conhece limites artificiais. A verdadeira espiritualidade não deve ser confundida com um entusiasmo exclusivo por alguns modismos. Ela não está preocupada com qualquer "ismo".
Quando as pessoas buscam a espiritualidade aparte da vida, como se não tivesse nada a ver com o mundo material, sua busca é inútil. Todos os credos e cultos têm uma tendência a enfatizar algum aspecto fragmentário da vida, mas a verdadeira espiritualidade é total no seu panorama. A essência da espiritualidade não consiste num interesse especializado ou restrito em alguma parte imaginada da vida, mas numa certa atitude iluminada em relação a todas as diversas situações com as quais nos defrontamos na vida. Ela cobre e inclui a totalidade da vida. Todas as coisas materiais deste mundo podem ser subservientes para o jogo divino, e quando são dessa maneira subordinadas, tornam-se auxiliares à auto-afirmação do espírito.
O valor das coisas materiais depende do papel que elas desempenham na vida do espírito. Em si mesmas não são nem boas nem más. Elas se tornam boas ou más de acordo com o quanto ajudam ou atrapalham a manifestação da divindade através delas. Tomemos, por exemplo, o lugar do corpo físico na vida do espírito. É um erro criar uma antítese entre "carne" e "espírito". Tal contraste quase inevitavelmente termina numa condenação sem reservas ao corpo. O corpo impede a realização espiritual somente se for mimado ao fazer reivindicações em seu próprio favor. Sua função adequada é justamente entendida como acessório para fins espirituais.
O cavaleiro precisa de um cavalo se ele tem que lutar uma batalha, embora o cavalo possa se tornar um empecilho se ele se recusar a ser totalmente submisso à vontade do cavaleiro. Da mesma forma, o espírito tem de ser revestido com a matéria se quiser adquirir plena posse de suas próprias possibilidades, embora o corpo às vezes possa se tornar um impedimento se recusar-se a ser compatível com as exigências do espírito. Se o corpo rende-se às reivindicações do espírito como deveria, ele é fundamental para trazer o Reino do Céu à terra. Ele se torna um veículo para a liberação da vida divina e quando ele subserve esse fim, pode ser apropriadamente chamado de o templo de Deus na Terra.

Uma vez que o corpo físico e as outras coisas materiais podem ser usados para a vida do espírito, a verdadeira espiritualidade não toma qualquer atitude hostil em relação a elas, mas procura expressão nelas e através delas. Assim, uma pessoa aperfeiçoada não ignora o belo ou as obras de arte, as conquistas da ciência e as realizações da política. O belo pode ser degradado e se tornar objeto de desejo ou de ciúmes e possessividade exclusiva; obras de arte, muitas vezes podem ser usadas para aumentar e explorar o egoísmo e outras fraquezas humanas. As realizações da ciência podem ser usadas para a destruição mútua, como nas guerras modernas; o entusiasmo político sem discernimento espiritual, pode perpetuar o caos social e internacional. Mas tudo isso também pode ser corretamente manuseado e espiritualizado. O belo pode se tornar fonte de pureza, felicidade e inspiração; obras de arte podem enobrecer e elevar a consciência das pessoas. As conquistas da ciência podem redimir a humanidade do sofrimento desnecessário e das desvantagens; a ação política pode ser determinante no estabelecimento de uma fraternidade real na humanidade. A vida do espírito não consiste em afastar-se das esferas mundanas da existência, mas em recuperá-las pelo propósito divino, que é trazer amor, paz, felicidade, beleza e Perfeição espiritual ao alcance de todos. No entanto, aqueles que vivem a vida do espírito devem permanecer desapegados em meio às coisas do mundo, sem se tornarem frios ou indiferentes a elas. Desapego não deve ser entendido como falta de apreço. Não é apenas compatível com a verdadeira avaliação das coisas, mas é a sua própria condição. Os anseios criam ilusão e impedem a percepção correta. Eles nutrem obsessões e sustentam o sentimento de dependência em relação aos objetos externos. O desapego promove a compreensão correta e facilita a percepção do verdadeiro valor das coisas sem tornar a consciência dependente dos objetos externos.

Ver as coisas como elas são, significa capturar sua verdadeira significância como sendo parte da manifestação da Vida Una, e ver através do véu da sua aparente multiplicidade significa estar livre da obsessão insistente por qualquer coisa em seu imaginado isolamento e exclusividade. A vida do espírito pode ser encontrada na compreensão, que é livre de apego e na apreciação, que está livre de aprisionamento. É uma vida de liberdade positiva em que o Espírito infunde-se à matéria e brilha através dela sem submeter-se a qualquer redução das próprias reivindicações dela.
As coisas e os acontecimentos desta vida mundana são vistos como estranhos apenas até serem tragados pelo avanço da maré da espiritualidade compreensiva. Uma vez que encontrem o seu lugar certo no esquema da vida, cada um deles é visto como participando da sinfonia da criação. Então, a espiritualidade não requer uma expressão separada ou exclusiva, ela não se torna degradada ao se estar preocupado com as necessidades ordinárias - físicas, intelectuais e emocionais das pessoas. A vida do espírito é uma existência unificada e integral, que não admite compartimentos exclusivos ou independentes.
A vida do espírito é uma manifestação incessante do amor divino e da compreensão espiritual e esses dois aspectos da divindade são irrestritos em sua universalidade e imutáveis na sua inclusividade. Assim, o amor divino não requer qualquer tipo especial de contexto para se fazer sentir. Não precisa esperar alguns raros momentos para sua expressão, nem está à procura de situações sombrias que mostrem sinais de santidade especial. Ele descobre sua expressão em todos os incidentes e situações que possam passar despercebidos por uma pessoa ignorante como sendo insignificantes demais para merecer atenção.

O amor humano comum é liberado somente sob condições adequadas. É uma resposta a certos tipos de situações e é relativo a elas. Mas o amor divino, que brota da fonte interior, é independente de estímulos. É liberado, portanto, mesmo em circunstâncias que seriam encaradas como desfavoráveis por aqueles que têm provado apenas o amor humano. Se há falta de felicidade, beleza ou bondade naqueles por quem um mestre perfeito é cercado, essas próprias coisas tornam-se para ele a oportunidade de despejar seu amor divino sobre eles e resgatá-los do estado de pobreza material ou espiritual. Suas respostas diárias ao seu ambiente mundano tornam-se expressões da divindade dinâmica e criativa que se espalha e espiritualiza em tudo o que ele coloca a sua mente.
Compreensão espiritual, que é o aspecto complementar da vida do espírito, deve ser distinguida da sabedoria mundana, que é a quintessência das convenções do mundo. Sabedoria espiritual não consiste na aceitação incondicional das condutas do mundo. As condutas do mundo são quase sempre o efeito coletivo das ações de pessoas materialmente inclinadas. Pessoas mundanas consideram algo ser correto e tornam-no assim para pessoas de inclinação semelhante.
Portanto, seguir cegamente as convenções não assegura necessariamente uma ação sábia. A vida do espírito não pode ser uma vida de imitação acrítica; ela deve ter suas bases na sua verdadeira compreensão dos valores.

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Rodney Collin - A lembrança de si é estar ciente da presença de Deus

Consciência* e consciência moral* são a mesma coisa. Consciência é estar ciente* do meio que nos cerca e de nós dentro dele. Consciência moral é estar ciente dos efeitos de nossas ações em nosso meio. É um estado de alerta para o certo e o errado. Estado de alerta, estado de estar ciente, ambos significam estar acordado, lembrar de si mesmo. Consciência moral é o estado de alerta da mente, das três partes da mente que se reúnem em nós e formam a consciência. A consciência moral é incorruptível, é o melhor que temos. É a continuidade da vida para a eternidade. Significa pensar, projetar. Não estamos aqui para fazer nada fisicamente, temos de desenvolver nossas mentes. Isso nos faz crescer espiritualmente. Devemos desenvolver nossas mentes, pois quanto mais desenvolvida a mente, mais desenvolvida torna-se a consciência moral. Se usarmos nossas mentes não há nada neste mundo que não possamos compreender, se temos a vontade de descobrí-lo. Temos uma consciência moral e uma vontade. A consciência pode dizer-nos para não fazer isto ou aquilo, mas sem vontade não podemos obedecê-la. A vontade introduz a consciência moral no pensamento.

Como somos, o que fazemos está pré-determinado, mas se adquirirmos vontade, o que fazemos não é predeterminado. Nossos movimentos físicos são predeterminados, se andamos, é predeterminado que movamos primeiro um pé e depois o outro. Se decidirmos sentar, é pré-determinado que dobraremos os joelhos. Se estivermos sujos, é pré-determinado que continuaremos a estar sujos até que façamos um esforço para estarmos limpos e predeterminarmos que limpos ficaremos. Controlamos nossa respiração através de uma mente limpa. Se nossa consciência moral estiver suja estaremos perturbados e nossa respiração ficará perturbada.
A consciência moral é a voz do espírito. O reconhecimento da consciência moral está na alma. O corpo não consegue reconhecer a consciência moral porque ele é físico. A ponte entre a consciência moral e o corpo é o reconhecimento, a alma. A alma aceita, olha. Se vemos algo bonito e percebemo-nos, isso é a operação da alma. Isso é a lembrança de si. É necessário sempre fazer a ligação entre o espírito e o corpo, caso contrário apenas existimos, sem Ser. O primeiro passo é saber que nós somos, que temos uma mente. O segundo é ter uma consciência moral, reconhecer a consciência. O terceiro é saber o nosso objetivo. O quarto é conhecermos a nós mesmos e sermos humildes. Essa é a lembrança de si real. No início, podemos ser guiados, mas depois do primeiro ou do segundo passo nós mesmos temos de decidir se vamos para cima ou para baixo. Pois Deus nos deu o livre-arbítrio e nem mesmo Ele pode nos obrigar a ir em alguma direção. Nós mesmos temos de decidir. Temos de tomar decisões constantemente porque nos falta vontade e um centro de gravidade permanente.

Nossas possibilidades são os maiores bens que temos. A fim de que elas possam ser realizadas não devemos reforçar as nossas fraquezas. Toda a ação sem vontade é negativa. Existe apenas uma vontade; é como uma luz que devemos seguir sempre; ela tem de estar vibrando o tempo todo. Fazemos isso ao querer isso. A vontade é essencial para todos. Sem ela não podemos ir a lugar algum. Com vontade, podemos fazer a nós mesmos Ser. Ninguém além de nós mesmos pode nos dar vontade. Uma vez que Deus nos deu o livre arbítrio, nem mesmo Ele pode tocar nisso. Livre-arbítrio significa a capacidade de escolher se queremos ou não exercer o pouco da vontade que temos. O espírito e corpo não nos pertencem, mas a alma sim, porque ela é vontade. A única coisa que realmente pertence a nós é a nossa vontade.
Todos têm uma vontade, embora pensemos que não temos nenhuma. Uma ação é completada por uma das duas causas seguintes: ou o impulso que a iniciou é forte o suficiente para levá-la até o fim, ou temos força de vontade suficiente para completá-la. Estamos constantemente completando ações por nossa própria vontade, mas elas são tão pequenas e insignificantes comparadas às ações concluídas pela força do impulso original que não as notamos. Além disso, estamos muito mais aptos a perceber as instâncias onde nossa vontade não foi suficientemente forte para concluir uma ação do que aquelas em que ela era forte o suficiente para concluí-la. Vontade é a coisa mais forte que existe - a correta vontade.

Não podemos ser perfeitos, isso é impossível. Mas temos de ser fortes. Temos a chave: honestidade, veracidade e sinceridade. A maneira de estar vivo é ajudar os outros a estarem vivos. Se esquecemos de nós mesmos a fim de ajudar os outros, temos atenção. Atenção exige vontade. Nós mesmos e o objeto de nossa atenção são dois fatores, a vontade é o terceiro. Quando os três fatores se juntam o resultado é que estamos mais vivos, somos nós mesmos, temos ser. Podemos perder nosso ser através do hábito de agir mecanicamente. Se a vontade estiver apegada ao corpo, nosso ser diminui. A vontade tem de obedecer o nosso ser e não o corpo. Se agirmos a partir do ser agiremos corretamente, mas se nossos "eus" ficam no caminho não estaremos corretos. Podemos fazer a nossa essência crescer e desenvolver o nosso ser. Se temos ser temos alma, pois com ser temos vontade. É o trabalho da vontade fazer a essência alcançar o ser. Através da vontade podemos desenvolver um ser maior do que aquele com o qual nascemos.

Temos de aprender a harmonizar o corpo com o espírito. Devemos lembrar do nosso corpo físico, da nossa alma e do nosso espírito; lembrar de nós mesmos. Nós não podemos lembrar de nós mesmos até que esqueçamos de nós mesmos. Se estivermos cientes do meio que nos cerca e cientes dos nossos olhos vendo-o, não estamos pensando em nós mesmos. Os olhos com os quais vemos não são nós mesmos. Há uma enorme diferença entre o pensar sobre nós mesmos e lembrar de nós mesmos. Não esquecemos nosso nome e endereço embora não estejamos pensando neles o tempo todo. O espírito sempre sabe e se lembra que ele está na presença de Deus. Não só o espírito, o corpo também sabe. Embora tome isso como garantido, ele não esquece.

O Espírito é puro - a coisa mais pura que temos. Devemos purificar nossos instintos. Pouco a pouco temos de tirar o que é impuro em nós, a fim de abrir espaço para a pura destilação do espírito. Fazemos isso através da lembrança de si, isto é, ao estarmos atentos e abertos, utilizando o todo de nós mesmos: o instinto, o coração e o intelecto.
Existe hipocrisia em todos nós. Todos nós temos um inimigo em nós mesmos. Mas também temos um anjo do outro lado. Existe uma pessoa que nunca nos faltará, o nosso Anjo da Guarda, se criarmos o hábito de pedir-lhe ajuda. Devemos escolher de que lado queremos ir, a que caminho queremos nos inclinar. Se escolhermos direito, o fazemos através da lembrança de si. É um trabalho muito sábio mas temos de entendê-lo direito. Cada pessoa tem de criar a lembrança de si para si mesma de sua própria maneira, mesmo em sua própria religião. Não importa que religião temos; Alá e Deus são o mesmo. O único Mestre é Deus, o único professor somos nós mesmos. Ninguém pode forçar os outros a acreditar Nele. Todo mundo tem de encontrar sua própria maneira, seu próprio entendimento, sua própria consciência alerta. Temos de aceitar por nós mesmos, para nós mesmos, o que a lembrança de si significa para nós. A lembrança de si é o poço das virtudes, o alimento da alma. A lembrança é tudo. A lembrança de si é a divindade.

É muito importante saber o que é a lembrança de si, o que é a alma, o que é consciência. Cada indivíduo deveria descobrir o que são para ele através do desenvolvimento de sua mente para poder aceitar e reconhecer. É somente através da lembrança de si que podemos dominar todas as circunstâncias necessárias para perfeição total da vida. Podemos fazê-lo se quisermos e objetivarmos isso. Não devemos tirar conclusões precipitadas, mas sim estudar por completo.
Temos de ligar o céu e a terra, viver entre a terra e o céu. Quando oramos, quando ajudamos os outros, ligamos a terra e o céu. Há tanta beleza no mundo. Quando olhamos para toda essa beleza e perfeição, como podemos evitar a lembrança de si? Quando lembramos de nós mesmos lembramos de Deus. Reconhecer a beleza é lembrança de si; comunicar-se com o alto é lembrança de si; sentir a beleza, sentir a verdade, isso é a lembrança de si. A lembrança de si não é imaginação. As pessoas pensam que estão lembrando de si quando controlam seus sentimentos. Isso não é lembrança de si. A lembrança de si é estar ciente da presença de Deus.


* Na língua portuguesa a tradução para as palavras em inglês - 'Conscience', 'consciousness' e 'awareness' é consciência. Essas três palavras são de enorme importância na linguagem espiritual e embora possam ser traduzidas, e até certo ponto significarem consciência, elas não significam realmente a mesma coisa. No texto acima na ausência de melhores termos, 'conscience' foi traduzido como consciência moral, 'conciousness' como consciência, e 'awareness' como estar ciente.

sábado, 24 de outubro de 2009

São Teófanes o Recluso - O Reino do Coração

Quando atingirmos uma interioridade constante, seremos então, capacitados a habitar o mundo de Deus. O reverso é igualmente verdadeiro: apenas quando o habitar no outro mundo tornar-se habitual, a interioridade constante será assegurada.

Se quisermos que nossa mente e coração sejam corretamente guiados no caminho da salvação, existem duas precondições essenciais e inevitáveis – interioridade e visão do mundo espiritual. A primeira condição introduz o homem numa certa atmosfera espiritual e a segunda planta-o mais firme ali, num clima favorável para a chama da vida. Portanto, pode ser dito que temos apenas que produzir esses dois estados preparatórios e o que se segue virá por conta própria. As pessoas frequentemente reclamam que o coração está endurecido e isso não é surpresa. O homem não coleta a si mesmo interiormente e também está desacostumado à auto-consciência interior; ele falha em estabelecer-se onde deveria e não conhece o lugar do coração. Então como podem sua vida e suas atividades serem direcionadas corretamente? É como se alguém removesse o coração de seu lugar e quisesse que a vida continuasse.

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O propósito do espírito, como mostra sua manifestação, é manter o homem em contato com Deus e com a ordem divina das coisas, independente de todos os fenômenos visíveis que o circundam e fluem por ele. Para estar apto a cumprir tal propósito, o espírito deve estar naturalmente imbuído com o conhecimento de Deus e da ordem divina, juntamente com o sentido de uma forma de existência mais abençoada, que se mostra numa falta de contentamento com todas as coisas materiais. Essa visão espiritual existia no primeiro homem, devemos supor, até sua Queda. Seu espírito via claramente Deus e todas as coisas divinas – tão claramente como com olhos comuns vemos hoje um objeto diante de nós. Mas após a Queda, os olhos do espírito foram fechados e o homem deixou de ver o que era natural que ele visse. O espírito em si permanece e tem olhos – mas eles estão fechados. Sua condição é como a de um homem cujas pálpebras se grudaram. O olho está intacto, ele anseia por luz, ele almeja ver a luz, sentindo que a luz existe, mas as pálpebras, estando grudadas, não permitem que ele se abra e entre em contato direto com a luz. Tal é a condição do espírito no homem desde a Queda, obviamente. O homem tem tentado substituir a visão do espírito pela visão da mente, através de construções mentais abstratas e ideologias, mas isso nunca deu resultados, como podemos ver em todas as teorias metafisicas dos filósofos.

Então você começou a perceber o que a paz real significa. Glória a Deus! Então qual é a questão? Agora você deve prosseguir para o Reino onde essa paz é encontrada. Busque o Paraíso perdido, para cantar o louvor do Paraíso reconquistado. Isso é tudo o que conta. Tudo aparte e fora dessa paz é vazio. E essa paz não está longe, está quase ao seu alcance, embora você tenha de desejá-la, e desejar não é tão fácil. Possam a mãe de Deus e seu Anjo da Guarda ajudá-lo!

quinta-feira, 22 de outubro de 2009

Hakim Sanai - A rosa silvestre do louvor / Trabalho energético / O tempo necessário

A rosa silvestre do louvor


Aqueles impossibilitados de lamentar
ou de falar seu amor
ou de estarem gratos, aqueles
que não podem lembrar de Deus
como a fonte de todas as coisas,
podem ser descritos como um vento passageiro
ou uma bigorna gelada ou um grupo
de velhas pessoas assustadas.

Diga o Nome. Umedeça a sua língua
com o louvor e seja o chão da primavera despertando.
Deixe que seja dado à sua boca
seu estame amarelo-ouro como aquele da rosa silvestre.

Quando você se preencher com sabedoria
e seu coração com amor,
não haverá mais sede.

Há apenas uma paciência abnegada
esperando na soleira da porta, um silêncio
que não escuta os conselhos
de pessoas passando na rua.

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Trabalho energético


Se você quer a pérola,
saia do interior do deserto,
e aventure-se no mar.

Mesmo se você não encontrá-la,
pelo menos você esteve
perto da água.

Seja um guerreiro! Deseje algo
poderosamente! Sele seu cavalo
e apronte-se para a busca.

Não aceite uma coroa
feita deste céu visível.
Espere pela que Gabriel traz.

Seja energético no trabalho
que o leva a Deus!

Os fracos e doentes pensam apenas
sobre a rendição. Deite-se diante
da porta que você anseia atravessar.

Abra o seu amor completamente.
Apenas um cão senta-se ociosamente
lambendo um osso.
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O tempo necessário
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Anos foram necessários antes que o sol, trabalhando sobre uma
pedra do Iêmen pudesse criar uma hematita.
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Meses têm de se passar antes que uma semente de algodão
possa prover um sudário sem costura.
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Dias se passam antes que um punhado de lã
torne-se um cabresto.
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Leva décadas até que uma criança
torne-se um poeta.

E civilizações caem e são lavradas
para que cresça um jardim nas ruínas
- o verdadeiro místico.

Philokalia - Nikitas Stithatos- Sobre a natureza interior das coisas

O amor por Deus começa com o desapego das coisas humanas e visíveis. A purificação do coração e do intelecto marca o estágio intermediário, pois através de tal purificação o olho do intelecto é espiritualmente desvelado e nós atingimos o conhecimento do reino do céus oculto dentro nós (Luc. 17-21). O estágio final é consumado num anseio irreprimível pelos dons supranaturais de Deus e num desejo natural pela união com Deus e por encontrar nossa morada Nele.
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'Devotai-vos à quietude e sabei que Eu sou Deus' (Sal. 46:10). Essa é a voz do Logos divino e é experimentada como tal por aqueles que colocam as palavras em prática. Portanto, uma vez que você tenha renunciado a agitação e a vaidade assustadora da vida você deveria, em quietude, examinar minuciosamente você mesmo e a realidade interna das coisas com a máxima atenção e deveria buscar conhecer mais plenamente o Deus dentro de você, pois o reino Dele está dentro de nós (Luc. 17:21). Ainda assim, mesmo se você fizer isso por um longo período de tempo será difícil para você apagar a marca do mal de sua alma e restaurá-la totalmente a Seu Criador em toda sua beleza primordial.

“Conhece-te a ti mesmo”: essa é a verdadeira humildade, a humildade que nos ensina a sermos internamente humildes e que torna nosso coração contrito. Tal humildade você deve cultivar e guardar. Pois se você ainda não conhece a si mesmo você não pode saber o que é humildade e ainda não embarcou verdadeiramente na tarefa de cultivar e guardar. Conhecer a si mesmo é o objetivo da prática das virtudes.

Se tendo atingido o estado de pureza você avançar para o conhecimento das essências dos seres criados, você terá cumprido a injunção: “Conhece-te a ti mesmo”. Se por outro lado você ainda não tiver atingido um conhecimento das essências da criação e das coisas divinas e humanas, você poderá conhecer o que está fora de você e ao seu redor mas ainda assim será totalmente ignorante do seu próprio ser.

O que eu sou não é de maneira nenhuma o mesmo que aquilo que me caracteriza; nem o que me caracteriza é o mesmo que aquilo que se relaciona com minha situação; nem o que se relaciona com a minha situação é o mesmo que aquilo que é externo a mim. Em cada caso um é diferente do outro. O que eu sou é uma imagem de Deus manifesta numa alma espiritual, imortal e inteligente, que possui um intelecto que é o pai da minha consciência e que é consubstancial com a alma e inseparável dela. O que me caracteriza é magnificente e soberano, é o poder da inteligência e do livre arbítrio. O que se relaciona com minha situação é o que eu posso escolher ao exercitar meu livre arbítrio, como por exemplo, se o que vou ser é um fazendeiro, um mercador, um matemático ou um filósofo. O que é externo a mim é o que quer que se relacione com minhas ambições nesta vida presente, ao meu status de classe e riqueza mundana, à glória, honra, prosperidade ou seus opostos: pobreza, infâmia, desonra e infortúnio.

Quando você conhece a si mesmo você cessa de todas as atividades externas empreendidas com o objetivo de servir a Deus e entra no próprio santuário de Deus, na liturgia noética do Espírito, o céu divino da ausência de paixões e da humildade. Mas até que você venha a conhecer a si mesmo através da humildade e do conhecimento espiritual, sua vida é uma vida de trabalho duro e suor. Foi disso que Davi falou criticamente quando disse: 'A labuta está diante de mim até que eu entre no santuário de Deus' (Sal. 73:16-17)

Conhecer a si mesmo significa que você deve guardar a si mesmo diligentemente de tudo o que é externo a você, significa parar as preocupações mundanas e examinar detalhadamente a consciência. Uma vez que você venha a se conhecer, um tipo de humildade divina supra-racional repentinamente descenderá sobre a alma, trazendo contrição e lágrimas de fervente remorso para o coração.

Abençoado é o homem que, transformado pela prática das virtudes, transcende as muralhas do estado enredado pelas paixões que o cerca e se eleva nas asas do desapego - asas prateadas pelo conhecimento divino (Sal. 68:13) – para a esfera espiritual na qual ele contempla as essências das coisas criadas e de lá entra na escuridão divina da teologia onde na vida da beatitude, ele cessa todos os trabalhos externos e repousa em Deus. Pois ele tornou-se um anjo terrestre e um homem celestial, ele glorificou a Deus em si mesmo e Deus irá glorificá-lo (João 13:31-32).

Um intelecto totalmente clarificado das impurezas é como um céu cheio de estrelas que ilumina a alma com lúcidas intelecções, e o sol da retidão brilha dentro dela, iluminando o mundo com conhecimento divino. Purificada dessa maneira, a consciência traz à tona, das profundezas da sabedoria, os princípios criativos das coisas e revelações transparentes do que está oculto e em seu estado perfeito ela os apresenta diante do intelecto, de modo que ele saiba a profundidade, altura e largura do conhecimento de Deus.

Desde que o intelecto interiorizou esses princípios e revelações e tornou-os parte de sua própria natureza, ele irá então elucidar as profundezas do Espírito a todos que possuam o Espírito de Deus dentro de si, expondo a astúcia dos demônios e os mistérios do Reino dos Céus.

terça-feira, 20 de outubro de 2009

P. D. Ouspensky - O estado de identificação

Pergunta: Você não mencionou a identificação, mas posso lhe fazer uma pergunta sobre isso?
Ouspensky: Por favor. Mas nem todo mundo aqui já ouviu falar sobre isso, então vou explicar um pouco. Veja, quando começamos a observar particularmente as emoções, a observar realmente todas as outras funções também, descobrimos que todas as nossas funções são acompanhadas por uma certa atitude, nós ficamos muito absorvidos nas coisas, muito perdidos nas coisas, especialmente quando o menor elemento emocional aparece. Isso é chamado de identificação. Nós nos identificamos com as coisas. Não é uma palavra muito boa, mas em inglês não há nenhuma melhor. A idéia da identificação existe nos escritos indianos e os budistas falam de apego e desapego. Essas palavras parecem-me ainda menos satisfatórias, porque, antes de conhecer este sistema (sistema apresentado pelo Sr. Gurdjieff), eu lia essas palavras e não entendia, ou melhor, eu entendia mas tomava a idéia intelectualmente. Eu só entendi completamente quando encontrei a mesma idéia expressa em russo e em grego por autores cristãos antigos. Eles têm quatro palavras para quatro graus de identificação, mas isso não é necessário para nós ainda. Nós tentamos entender a idéia não por definição, mas por observação. Identificação é uma certa qualidade de apego - ficar perdido nas coisas.
P: A gente perde nosso sentido de observação?
O: Quando você fica identificado você não pode observar.
P: Geralmente, a identificação inicia-se com uma emoção? Será que a possessividade resulta nisso também?
O: Sim. Muitas coisas. Ela começa primeiro com o interesse. Você está interessado em algo e no momento seguinte está dentro daquilo e você não existe mais.
P: Mas se estamos pensando e conscientes do esforço feito para pensar, isso nos salva da identificação? Não podemos fazer as duas coisas ao mesmo tempo, podemos?
O: Sim, isso o salva por um momento, mas no momento seguinte um outro pensamento vem e o leva embora. Portanto, não há garantia. Você deve estar em vigilância o tempo todo contra a identificação.
P: Quais são as emoções negativas que gostamos mais de glorificar?
O: Algumas pessoas são muito orgulhosas de sua irritabilidade ou irritação, ou de algo parecido. Elas gostam de que os outros pensem que elas são muito duras. Não há praticamente nenhuma emoção negativa que você não possa apreciar, e isso é a coisa mais difícil de perceber. Realmente algumas pessoas recebem todos os seus prazeres das emoções negativas. A identificação em relação às pessoas toma uma forma especial, que é chamada neste sistema de consideração. Mas, a consideração pode ser de dois tipos, quando consideramos os sentimentos dos outros e quando consideramos nossos próprios sentimentos. Principalmente nós consideramos nossos próprios sentimentos. Consideramos principalmente no sentido de que as pessoas de alguma forma não nos valorizam suficientemente ou não pensam em nós o suficiente, ou não são suficientemente cuidadosas conosco. Encontramos muitas palavras para isso. Esta é uma faceta muito importante da identificação e é muito difícil de se livrar dela, algumas pessoas estão plenamente sob o poder disso. De qualquer forma, é importante observar a consideração.
P: Acho que não entendi direito a idéia da identificação. Significa que as coisas nos controlam e que não somos nós que controlamos as coisas?
O: A identificação é uma coisa muito difícil de descrever, porque as definições não são possíveis. Tal como somos, nunca estamos livres da identificação. Se acreditamos que não nos identificamos com algo, estamos identificados com a idéia de que não estamos identificados. Mas não se pode descrever a identificação em termos lógicos. Você tem de encontrar um momento de identificação, pegá-lo, e então comparar as coisas com aquele momento. A identificação está em toda parte, em cada momento da vida cotidiana. Quando você começa a auto-observação, algumas formas de identificação já se tornam impossíveis. É por isso que seus amigos vão achar você aborrecido, porque eles estão com uma coisa num momento, com outra coisa em outro. Eles irão dizer que você não está interessado em nada, que está indiferente e assim por diante. Na vida comum quase tudo é identificação. A origem da idéia, a origem da palavra, é muito interessante. Certamente, a idéia existe na literatura indiana e budista. Geralmente é chamada de 'apego' e 'não-apego '. Mas você vê, eu li esses livros antes de conhecer o sistema e não entendia o que isso significava. Só quando eu ouvi a explicação do sistema muito mais tarde, comecei a ver o que isso significa. É uma característica psicológica muito importante que penetra toda a nossa vida e nós não a percebemos porque estamos dentro dela. É inútil tentar encontrar definições. Encontre alguns exemplos. Se você vê o estado de um gato diante de um coelho ou de um rato - isso é a identificação. O rato também pode estar identificado de alguma outra forma. Então encontre analogias com essa imagem em você mesmo. Apenas você deve compreender que ela está lá todos os momentos, não só em momentos excepcionais. A identificação é quase um estado permanente para nós, é a principal manifestação da falsa personalidade e por causa dela não podemos sair da falsa personalidade. Você deve ser capaz de ver esse estado separado de você mesmo, de separá-lo de você e isso só pode ser feito ao tentar se tornar mais consciente, ao tentar lembrar-se de si, tentando estar consciente de si mesmo. Somente quando você se torna mais consciente de si mesmo você é capaz de lutar com manifestações como a identificação, a mentira e com a própria falsa personalidade.

P: Acho que quando estou identificado é quase sempre com coisas dentro de mim.
O: Talvez você tenha razão, talvez não tenha, mas isso não importa. Você pode pensar que você se identifica com uma coisa e na verdade você está identificado com uma coisa muito diferente. Isso não importa absolutamente. É o estado de identificação que importa. No estado de identificação você não pode corretamente sentir, ver, julgar e o objeto da identificação não é importante: o resultado é o mesmo.
P: Então qual é o caminho para superar a identificação?
O: Isso é outra coisa. É diferente em casos diferentes. Primeiro é preciso ver, então é necessário colocar alguma coisa contra ela.
P: O que você quer dizer com "colocar alguma coisa contra ela"?
O: Apenas volte a sua atenção para algo mais importante. É necessário aprender a distinguir o importante do menos importante, e se você voltar sua atenção para coisas mais importantes, você se torna menos identificado com coisas sem importância. Você deve perceber que a identificação nunca pode ajudá-lo. Ela só torna as coisas mais confusas e mais difíceis. Se você perceber até mesmo isso, isso por si só poderá ajudar em alguns casos. Mas as pessoas pensam que estar identificadas as ajuda, elas não vêem que isso só torna tudo mais difícil.
É exatamente esse o nosso pensamento comum. Nós pensamos que a identificação é necessária quando na verdade ela só estraga as coisas. Ela não é uma coisa que tenha energia útil de maneira nenhuma, apenas energia destrutiva.
P: A identificação é principalmente uma emoção?
O: Ela tem sempre um elemento emocional, uma espécie de distúrbio emocional, mas às vezes torna-se um hábito, portanto nem mesmo notamos a emoção.
P: Existe um estado entre a lembrança de si e identificação?
O: São lados diferentes da mesma coisa. Não lembrar de si é identificação. Se a pessoa não está identificada ela deve lembrar-se em certa medida, talvez até mesmo sem saber. Há muitos graus diferentes.
P: Existe alguma maneira em que eu poderia ser ajudado a querer trabalhar? "Querer mais" aumentaria meu poder para trabalhar. Ou mesmo isso não é suficiente?
O: Mas quem faria isso, se apenas um 'eu' está interessado e os outros 'eus' não estão interessados? Você diz "eu" como se você fosse algo diferente, separado, desses 'eus'. Um 'eu' pode decidir, mas um outro 'eu' vai acordar e não vai saber disso. Essa é a situação e você deve tentar fazer tudo o que puder, não sonhe com coisas que você não pode fazer. Ninguém pode ajudá-lo a querer trabalhar, você mesmo deve querer, e você deve fazer o que puder. Desta forma o seu desejo vai aumentar, mas se você não fizer o que você pode você irá perder até isso e trabalhará cada vez menos. Se você fizer o que você pode, você vai querer mais e mais. Como podemos aumentar esse poder de trabalhar? Apenas trabalhando, não há outra maneira. Se você aprender a fazer pequenos esforços isso dará resultados pequenos, se você fizer esforços maiores você vai obter maiores resultados. É necessário colocar mais energia nas coisas, quero dizer no seu auto-estudo, auto-observação, na lembrança de si e tudo isso. E para colocar mais energia, é necessário descobrir para onde a energia está indo. Você acorda todas as manhãs com uma certa quantidade de energia. Ela pode ser gasta de muitas maneiras diferentes. Uma certa quantidade é necessária para a lembrança de si, o estudo do sistema e assim por diante. Mas se você gastar essa energia em outras coisas, não sobra nada para isso. Este é um ponto importante. Tente calcular todas as manhãs quanta energia você pretende colocar no trabalho, em comparação com outras coisas. Mesmo em relação ao tempo, por exemplo, você vai ver que você dá muito pouco tempo para o trabalho sobre si, se é que você dá algum, e todo o tempo para outras coisas completamente inúteis, bom se fosse para coisas agradáveis, mas na maioria dos casos não são nem mesmo agradáveis. E como resultado dessa falta de cálculo, dessa falta de estatísticas elementares, nem mesmo entendemos o porquê, com todas as nossas melhores intenções, as nossas melhores decisões, no fim não fazemos nada. Mas como podemos fazer algo se não damos nenhuma energia, nenhum tempo para isso? Você deve dar uma certa quantidade de tempo e uma certa quantidade de energia, então muito em breve você verá os resultados. Em cada tipo de trabalho ou de estudo há um certo padrão, você dando a energia suficiente ou não. Pode ser que você dê um pouco de energia, mas não o suficiente. Se você dá uma certa quantidade de energia e não for o suficiente, você nunca terá nenhum resultado. Você vai simplesmente dar voltas e mais voltas e vai estar aproximadamente no mesmo lugar.

P: É possível criar uma reserva de energia?
O: É absolutamente necessário. Todo o futuro depende dessa reserva. Mas você não pode começar a pensar sobre o armazenamento de energia antes de aprender a parar os vazamentos. E não existe a questão de não ser capaz de evitar os vazamentos. Gastamos nossa energia de maneira errada, na identificação e nas emoções negativas. Toda consideração, mentira, conversa fiada, expressão das emoções negativas, essas são as torneiras abertas por onde nossa energia se esgota. Pare esses vazamentos e, em seguida, é possível armazenar energia.

Quando tentamos manter todas estas coisas em mente e observar a nós mesmos, chegamos à conclusão muito clara que, no estado de consciência em que estamos, com toda essa identificação, consideração, emoções negativas e ausência de lembrança de si, estamos realmente dormindo. Apenas imaginamos que estamos despertos. Assim, quando tentamos nos lembrar de nós isso significa somente uma coisa: nós tentamos acordar. E de fato acordamos por um segundo, mas depois adormecemos novamente. Esse é o nosso estado de ser, então realmente estamos dormindo. Podemos acordar apenas se corrigirmos muitas coisas na máquina (nosso organismo) e se trabalharmos muito persistentemente sobre essa idéia do despertar e por um longo tempo.

sábado, 17 de outubro de 2009

Jalaluddin Rumi - Onde e Por que nós vamos


Você é mais lindo que a alma,
mais útil que os olhos, o que quer que eu

tenha visto em mim mesmo, eu não conseguia ver.
Você viu. Você me escolheu. Digo este

poema para honrar essa escolha. Eu escolho
deitar num caixão em chamas!

Pergunto aos meus olhos: "Por que vocês vagueiam?" Pergunto
para minhas costas: "por que se curvam?" Pergunto a minha alma:

"Por que você usa sapatos de ferro no caminho?"
Também pergunto a minha alma se ela encontrou outro

como você ou se escutou sobre tal coisa em
alguma linguagem. Você é o sol dissolvendo

nuvens carregadas, a fragrância do campo,
José adentrando nesta sala. Descascando

laranjas, vimos você e cortamos nossas mãos.
Sem tocar o chão, você desenha uma linha.

Nós seguimos esse caminho. Você é por que
e onde nós vamos e o que fazemos lá.

Bhagavan Ramana Maharshi - Descubra o 'eu'

Pergunta: Começo a perguntar-me 'Quem sou eu?', elimino o corpo como não sendo 'eu', a respiração como não 'eu', e não consigo ir adiante.
Bhagavan: Bem, isso é o mais longe que o intelecto pode ir. O processo é apenas intelectual. De fato, todas as escrituras mencionam o processo apenas para guiar o buscador para conhecer a verdade. A verdade não pode ser apontada diretamente. Daí esse processo intelectual.
Você vê, aquele que elimina tudo que não é o 'eu' não pode eliminar o 'eu'. Para dizer 'eu não sou isso' ou 'eu sou aquilo' deve haver o 'eu'. Esse 'eu' é apenas o ego ou o pensamento-'eu'. Após o surgimento desse pensamento-'eu', todos os outros pensamento surgem. O pensamento-'eu' é portanto o pensamento-raiz. Se a raiz for arrancada todos os outros serão automaticamente arrancados ao mesmo tempo. Portanto, busque o 'eu' raiz, questione-se: 'Quem sou eu?'. Descubra a fonte dele, e então todas essas outras idéias irão se esvair e o puro Ser permanecerá.
P: Como fazer isso?
B: O 'eu' está sempre ali – no sono profundo, no sono com sonhos e durante o estado de vigília. Aquele no sono é o mesmo que aquele que fala agora. Há sempre o sentimento de 'eu'. Caso contrário, você nega sua existência? Você não nega. Você diz 'eu sou'. Descubra quem é.
P: Eu medito neti-neti (não isso – não aquilo).
B: Não – isso não é meditação. Descubra a fonte. Você deve alcançar a fonte sem falha. O falso 'eu' irá desaparecer e o 'eu' real será percebido. O falso 'eu' não pode existir sem o 'eu' real.
Existe agora a identificação errônea do Ser com o corpo, com os sentidos, etc. Você prossegue descartando esses, isso é neti (não sou isso). Isso pode ser feito apenas ao segurar-se naquele que não pode ser descartado. Esse é iti (aquele que é).
P: Quando eu penso 'Quem sou eu?', a resposta vem 'não sou esse corpo mortal, mas sou chaitanya, atma (consciência, o Ser)'. E repentinamente outra pergunta surge, 'por que atma vem para Maya (ilusão)?' ou em outras palavras: 'Por que Deus criou este mundo?'
B: Perguntar 'Quem sou eu?' significa realmente tentar descobrir a fonte do ego ou do pensamento-'eu'. Não é para você pensar em outras coisas, como 'eu não sou o corpo'. Buscar a fonte do 'eu' serve como um meio de se livrar de todos os outros pensamentos. Não deveríamos dar escopo para outros pensamentos, tais como os que você mencionou, mas devemos manter a atenção fixada em descobrir a fonte do pensamento-'eu' ao questionar, conforme cada pensamento que surge, para quem o pensamento surge. Se a resposta for 'eu tenho o pensamento' continue a inquirição perguntando 'quem é esse “eu” e qual é a sua fonte?'
P: Devo meditar no 'Eu sou Brahman' (aham brahmasmi)?
B: A escritura não tem a intenção de fazer você pensar 'eu sou brahman'. Aham ('eu') é conhecido por todo mundo. Brahman habita como aham em todos. Descubra o 'eu'. O eu já é Brahman. Você não precisa pensar isso. Simplesmente encontre o 'eu'.
P: As Sastras (escrituras) não mencionam sobre descartar os invólucros (neti-neti)?
B: Após o surgimento do pensamento-'eu' ocorre a falsa identificação do 'eu' com o corpo, com os sentidos, com a mente, etc. O 'eu' está associado erroneamente com eles e o verdadeiro 'eu' é perdido de vista. Para peneirar o puro 'eu' do 'eu' contaminado, é mencionado esse processo de descartamento. Mas isso não significa exatamente o descartamento do não-Ser, significa encontrar o Ser real. O Ser real é o 'eu' infinito. Esse 'Eu' é a perfeição. É eterno. Não tem origem e nem fim. O outro 'eu' nasce e também morre. Ele é impermanente. Veja a quem os pensamentos cambiantes pertencem. Será descoberto que eles surgem após o pensamento-'eu'. Segure o pensamento-'eu' e eles irão retroceder. Trace de volta para a origem do pensamento-'eu'. O Ser apenas irá sobrar.
P: É difícil seguir. Entendo a teoria. Mas qual é a prática?
B: Os outros métodos são destinados para aqueles que não podem seguir a investigação do Ser. Mesmo para repetir Aham Brahmasmi ou pensar nisso, um fazedor é necessário. Quem é ele? É o 'eu'. Seja esse 'eu'. É o método direto. Os outros métodos também finalmente irão levar todos a esse método da investigação do Ser.
P: Estou ciente do 'eu'. Ainda assim meus problemas não estão acabados.
B: Esse pensamento-'eu' não é puro. Ele está contaminado com a associação com o corpo e os sentidos. Veja para quem são os problemas. São para o pensamento-'eu'. Segure-o. E então os outros pensamentos se esvaem.
P: Sim. Como fazer isso? Esse é o problema todo.
B: Pense 'eu, eu', segure-se nesse único pensamento até a exclusão de todos os outros
P: Soham ( a afirmação 'eu sou Ele') é a mesma coisa que 'Quem sou eu?'
B: Aham ('eu') apenas é comum entre eles. Um é soham. O outro é Koham (quem sou eu?). Eles são diferentes. Por que deveríamos seguir dizendo soham? Devemos encontrar o 'eu' real. Na pergunta 'quem sou eu?', o 'eu' refere-se ao ego. Ao tentar traçá-lo e encontrar a fonte dele, vemos que ele não tem existência separada mas funde-se no 'eu' real.
Você vê a dificuldade. Vichara é diferente em método da meditação Shivoham ou soham ('eu sou shiva' ou 'eu sou Ele'). Eu prefiro colocar ênfase no Autoconhecimento, pois você está primeiro preocupado com você mesmo antes que você prossiga para conhecer o mundo e Seu Senhor. A meditação Soham ou a meditação 'eu sou Brahman” é mais ou menos um pensamento mental. Mas a busca pelo Ser de que eu falo a respeito é um método direto, de fato superior às outras meditações. No momento em que você começa a procurar pelo Ser e vai cada vez mais fundo, o Ser real está lhe esperando lá para colocá-lo para dentro. Então, o que quer que seja feito é feito por algo mais e você não tem participação nisso. Nesse processo, todas as dúvidas e discussões são abandonadas automaticamente assim como alguém que dorme, por certo tempo, esquece todas as suas preocupações.
P: Que certeza há de que algo me espera lá para me recepcionar?
B: Quando a pessoa é uma alma suficientemente desenvolvida (pakvi) ela fica convencida naturalmente.
P: Como é possível o desenvolvimento?
B: Várias respostas são dadas. Mas qualquer que tenham sido os desenvolvimentos prévios, o vichara acelera o desenvolvimento.
P: Isso é discutir em círculo. Eu sou desenvolvido, então me adequo para a busca mas a própria busca faz com que eu me desenvolva.
B: A mente tem sempre esse tipo de dificuldade. Ela quer uma certa teoria para satisfazer-se. Realmente, nenhuma teoria é necessária para o homem que seriamente deseja se aproximar de Deus ou realizar seu próprio ser verdadeiro.
P: Sem dúvida o método ensinado por Bhagavan é direto. Mas é tão difícil. Não sabemos como começar. Se prosseguimos dizendo 'quem sou eu?, quem sou eu?' como um japa (repetição do nome de Deus) ou um mantra, isso se torna enfadonho. Em outros métodos há algo preliminar e positivo com o qual podemos começar e então seguir passo a passo. Mas no método do Bhagavan, não há tal coisa, e procurar o Ser de uma vez, embora seja direto, é difícil.
B: Você mesmo admite que ele é o método direto. É o método fácil e direto. Quando ir atrás de outras coisas que são externas a nós é tão fácil, como pode ser difícil para a pessoa ir para seu próprio Ser? Você fala sobre 'onde começar?' Não há começo e nem fim. Se você está aqui e o Ser está em algum outro lugar e você tem que chegar até esse Ser, pode lhe ser dito como começar, como viajar e então como chegar. Suponha que você que está agora aqui no Ramanashram pergunte: 'eu quero ir para o Ramanashram. Como começar e como chegar lá?', o que diremos? A busca de um homem pelo Ser é como esse exemplo. Ele é sempre o Ser e nada mais. Você diz que 'quem sou eu?' se torna um japa. Não é pretendido que você deveria seguir dizendo 'quem sou eu?' Nesse caso, ao perguntar-se 'quem sou eu?', lhe é dito para concentrar-se dentro de si mesmo, aonde o pensamento-'eu', a raiz de todos os outros pensamentos, surge. Como o Ser não está fora mas sim dentro de você, pede-se para que você mergulhe internamente, em vez de ir para fora. O que pode ser mais fácil do que ir para você mesmo? Mas permanece o fato de que para alguns esse método parecerá difícil e não os atrairá. É por isso que tantos métodos diferentes têm sido ensinados. Cada um deles irá atrair alguns como sendo o método mais fácil e melhor. Isso está de acordo com seu pakva ou aptidão. Mas para alguns, nada além do vichara marga (o caminho da inquirição) irá atraí-los. Eles irão perguntar, 'você quer que eu saiba ou veja isso ou aquilo, mas quem vê, quem é o sabedor?' Em qualquer outro método que seja escolhido, sempre haverá um fazedor. Disso não se pode escapar. Devemos descobrir quem o fazedor é. Até lá, o sadhana não pode ser terminado. Então, eventualmente, todos tem de vir a descobrir 'quem sou eu?' Você reclama que não há nada preliminar ou positivo com o que começar. Você tem o 'eu' para começar. Você sabe que você existe sempre, enquanto que o corpo não existe sempre, como por exemplo no sono profundo. O sono revela que você existe mesmo sem um corpo. Nós identificamos o 'eu' com um corpo, nós consideramos o Ser como tendo um corpo, e como tendo limites e daí vêm todos os nossos problemas. Tudo o que temos de fazer é deixar de identificar o Ser com o corpo, com formas e limites, e então conheceremos a nós mesmos como sendo o Ser que sempre fomos.

quinta-feira, 15 de outubro de 2009

G. I. Gurdjieff - Paris, 18 de setembro de 1943

[Sr. Gurdjieff pede àqueles que haviam retornado das férias para darem um depoimento a respeito de seu trabalho interior]
Sra. Franc: Fiz os dois exercícios que você nos deu durantes as férias, o exercício da divisão em dois (divisão entre 'eu' e o organismo) e o das sensações de calor, frio, e das lágrimas. Não posso dizer que tive muito resultado com esses exercícios, mas tive um resultado na compreensão. Quanto ao da divisão em dois, não posso dizer que consegui fazê-lo, mas o trabalho me deu um centro de gravidade na cabeça. Isso mudou muitas coisas para mim e me permitiu o desidentificar-me um pouco do meu corpo; e agora consigo ver mais claramente no meu trabalho. Sei melhor o que estou fazendo e como devo fazer o trabalho. Isso mudou os valores.
Gurdjieff: Já entendi que você tinha uma personalidade. Agora você sente em si algo, uma separação. O corpo é uma coisa e você é outra coisa.
Sra. Franc: Isso é o que sinto, e é algo que julga.
Gurdjieff: Você deve parabenizar-se. Estou contente com todo meu ser. Isso é a primeira coisa. Sem isso você jamais pode continuar. Sem isso, por dez anos, cem anos, seu trabalho será apenas titilação.
Sra. Franc: Parece-me que alguma coisa foi superada.
Gurdjieff: Agora você deve fixar isso. Você deve nutrir a criança para que ela possa crescer. Dê a ela um bom leite, alguns ovos, tudo o que é necessário para uma criança. Quando ela for um jovem garoto, estará apto a falar e eu conseguirei entendê-lo. Para mim seu depoimento já basta.
Sra. Franc: Gostaria de lhe falar também que o exercício nas sensações me mostrou que eu estava vivendo em imaginação, pois noto que é apenas quando experimento alguma coisa organicamente que aquilo é real; mas não consigo concentrar-me o bastante na figura da imagem.
Gurdjieff: Em geral essa é sua fraqueza. Não é necessário falar disso. Já é algo subjetivo. Agora se eu explicar algo, você pode entender. Antes você não podia entender nada. Na primeira vez você se ofendeu. E se eu digo algo para você agora você pode entender.
Mechin: Eu tentei continuar o exercício da divisão em dois e vendo que eu não conseguia ter sucesso nele, pensei que isso acontecia porque o 'eu' em mim não era forte o bastante. Toda a minha atenção estava movida para o 'eu sou' e, de fato, isso desenvolveu pouco a pouco uma sensação muito mais forte do 'eu', que eu nunca tinha tido. Eu constatei de fato que isso mudou todos os valores para mim, que o que eu tinha entendido teoricamente até então, eu entendo de uma maneira diferente agora, e isso me fez entender também muitos problemas, o que fixou em mim a necessidade de a partir deste momento desempenhar um papel*. Mas como durante as férias eu estava sozinho no papel que eu tinha a desempenhar, tinha de atuá-lo com meus pais e acima de tudo com minha mãe; era aí que eu tinha dificuldade. Eu constatei que eu era completamente incapaz de desempenhar um papel, que isso era impossível.
Gurdjieff: Você entendeu o que significa desempenhar um papel; você entendeu que valor isso tem para você, você sentiu o gosto disso? Bravo!
Mechin: Então, lutei para fazer o exercício da divisão. Tentei entendê-lo e um dia ao passar na frente de um espelho, fiquei muito surpreso ao ver que eu me vi como um estranho. Pensei que eu deveria fazer uso dessa evidência para fazer o exercício; depois, ao fazer o exercício eu me vi como havia me visto no espelho; tinha tido apenas uma imagem fria sem vida. Vi um corpo sem vida e tentei estabelecer relações com meu corpo real. Ao tentar fazer isso, pareceu-me que isso deu-me antecipadamente um gosto do que deve ser a divisão. Senti que temos de fazer isso.
Gurdjieff: É o bastante, você nasceu. Sua individualidade nasceu. Antes você era como um animal sem 'eu'. Agora você tem um 'eu' e as propriedades de um homem. Esse exercício lhe deu isso. Antes você não tinha individualidade, você era o resultado do seu corpo, como um cachorro, ou um gato, ou um camelo. Agora você tem chifres**, você pode vê-los e se surpreender com eles. Antes você não podia ver nada. Você tem agora uma individualidade que você não tinha. [endereçando-se aos outros alunos] Ele adquiriu uma individualidade. Antes ele não tinha nenhuma. Ele era um pedaço de carne. Ele poderia ter trabalhado por mil anos que nunca teria tido nenhum resultado. Você é camarada da Sra. Franc. Ambos tornaram-se iniciados na primeira iniciação. É uma coisa pequena mas é algo grande, uma garantia para o futuro. Parabenizo você também. Pela primeira vez em três anos estou feliz internamente. Estou feliz por meus esforços. Porque não é por acaso que aqui já há dois. Você não está mais desposado, não é mais Mechin, você é meu irmão caçula, [para Sra. Franc] você é minha irmã. Falaremos em particular depois.
Gurdjieff [para Yette]: Você não está feliz?
Yette: Sim, e posso dize que o que Sra. Franc disse parecia eu mesma estar falando, pois por algum tempo há algo completamente novo em mim e há também um medo de ver isso desaparecer. Porque de maneira geral, salvo em raros momentos, houve algo em mim que não estava ali anteriormente, essencialmente, algo na minha cabeça, algo que eu senti na minha cabeça onde eu me apoiava e que me separa do resto, que é distinto do corpo, de tudo o que eu sou, do meu sentimento.
Gurdjieff: Você pode dizer talvez, que você é uma coisa e seu corpo outra coisa. Antes você não podia dizer isso com muita sinceridade.
*(O Sr. Gurdjieff instruía seus alunos a nunca demonstrarem externamente que internamente eles estavam fazendo um trabalho interior, ou o trabalho sobre si mesmos. Ele chamava isso de atuar um papel. Internamente a pessoa estava tentando estar desperta, tentando não se identificar, mas externamente ela se comportava como de costume, como costumava se comportar antes de começar a fazer o trabalho)
** Para a melhor compreesão desse termo usado pelo Sr. Gurdjieff é recomendado a leitura do livro: "Relatos de Belzebu a Seu Neto"

terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hazrat Inayat Khan - A linguagem cósmica - O ego

Quando pensamos nesse sentido de 'eu', esse sentimento, ou essa inclinação que nos faz afirmar a palavra 'eu', percebemos que é difícil apontar o que esse 'eu' é, qual é o seu caráter. Pois ele é algo que está além da compreensão humana. É por isso que uma pessoa que deseja explicar, mesmo que para si mesma, o que ela é, aponta para o que está mais perto de si e declara: "Esse é quem tenho chamado de 'eu'". Portanto cada alma que, por assim dizer, identificou-se com alguma coisa, identificou-se com o corpo, seu próprio corpo, pois é a coisa que a pessoa sente e percebe ser imediatamente mais próxima a ela, e a qual é inteligível com o próprio ser dela.
Então, a primeira coisa que uma pessoa reconhece como ela mesma é o seu corpo. Ela chama a si mesma de seu corpo, ela identifica a si mesma com seu corpo. Por exemplo, se alguém pergunta a uma criança: 'cadê o nenê?', ele irá apontar para seu corpo. É isso que ele pode ver ou imaginar de si mesmo.
Isso forma uma concepção na alma. A alma conhece isso profundamente, de maneira que após essa concepção todos os outros objetos, pessoas ou seres, cores ou linhas, são chamados por diferentes nomes e a alma não os concebe como sendo ela mesma, pois ela já tem uma concepção de si mesma: este corpo, que ela conheceu ou imaginou primeiramente ser ela mesma. Tudo o mais que ela vê, ela vê através de seu veículo que é o corpo, e chama algo próximo a ela, de algo separado e diferente.
Dessa maneira a dualidade na natureza é produzida. Disso surge o 'eu e você'. Mas como o 'eu' é a primeira concepção da alma, ela está totalmente preocupada com esse 'eu'; com todo o resto ela está apenas parcialmente preocupada. Todas as outras coisas que existem, à parte este corpo que ela reconheceu como seu próprio ser, são consideradas de acordo com sua relação com este corpo. Essa relação é estabelecida ao chamá-las 'meu' ou 'minha', aquilo que está entre 'eu' e 'você': 'Você é “meu” irmão', ou “minha” irmã, ou “meu” amigo'. Isso cria um relacionamento e de acordo com esse relacionamento o outro objeto ou pessoa permanece mais perto ou mais longe da alma.
Todas as outras experiências que a alma tem no mundo físico e nas esferas mentais tornam-se uma espécie de mundo ao redor dela. A alma vive no meio dele, ainda assim a alma em nenhum momento tem com coisa alguma o sentimento de que isso sou 'eu'. Esse 'eu' ela reservou e aprisionou numa única coisa: o corpo. Todas as outras coisas, a alma pensa que é algo mais, algo diferente: 'Está perto de mim, é querido a mim, está próximo a mim, porque está relacionado. É meu, mas não sou eu'. O 'eu' permanece como uma entidade separada, segurando, atraindo, coletando tudo que a pessoa obteve e que constitui seu próprio mundo.
Conforme tornamo-nos mais contemplativos na vida, também essa concepção de 'eu' enriquece. Torna-se mais rica desta maneira, fazendo com que a pessoa veja: 'Não é “meu” apenas o corpo, mas também são “meus” os pensamentos que tenho, a imaginação é “minha” imaginação, meus sentimentos também são parte do meu ser. Portanto, não sou apenas o meu corpo, sou minha mente também.'
No próximo passo que a alma dá no caminho em direção à realização, ela começa a sentir: 'Eu não sou apenas um corpo físico, mas também uma mente.' Essa realização em seu esplendor faz a pessoa declarar: 'Eu sou um espírito', que significa: corpo, mente e sentimento, todos juntos com os quais eu identifico a mim mesma – são esses que constituem o ego.
Quando a alma segue adiante no caminho do conhecimento ela começa a descobrir: 'Sim, há algo que sente a si mesmo, que sente a inclinação de chamar a si mesmo de “eu”'. Existe um sentimento de 'eu' (I'ness), mas ao mesmo tempo tudo aquilo com o que a alma se identifica não é ela mesma. No dia em que essa idéia brota no coração de um homem, ele iniciou sua jornada no caminho da verdade. Então a análise começa e ele começa a descobrir: 'Quando esta é “minha” mesa e esta “minha” cadeira, tudo o que posso chamar de meu pertence a mim, mas não sou eu realmente'. Então ele também começa a ver: 'Eu me identifico com este corpo, mas este é o “meu” corpo, assim como digo “minha” mesa, ou “minha” cadeira, portanto o ser que está dizendo “eu” na realidade está separado. Ele é algo que pegou até mesmo este corpo para seu uso; este corpo é apenas um instrumento'. E ele pensa: 'Se não é este corpo que eu posso chamar de “eu”, então o que mais posso chamar? É com a minha imaginação que eu deveria me identificar?' Mas até mesmo isso a pessoa chama de 'minha' imaginação, 'meu' pensamento ou 'meu' sentimento. Portanto, mesmo o pensamento, a imaginação, ou o sentimento não são o 'Eu' real. O que afirma 'eu' permanece o mesmo, mesmo após ter descoberto a falsa identidade.
Lemos no décimo pensamento Sufi que a perfeição é alcançada através da aniquilação do ego. O falso ego é aquilo que não pertence ao ego real e aquilo que esse ego erroneamente concebeu ser o seu próprio ser. Quando isso é separado ao analisarmos a vida melhor, então o falso ego é aniquilado. A pessoa não precisa morrer para isso. De modo a aniquilar este corpo, aniquilar esta mente, uma pessoa tem de analisar a si mesma e ver: 'Aonde fica o “eu”? Ele fica como um ser remoto, exclusivo? Se ele é um ser remoto e exclusivo então ele deve ser encontrado'. Todo o processo espiritual consiste em encontrá-lo.
Uma vez que isso é realizado, o trabalho do caminho espiritual está feito. Da mesma maneira que para que os olhos vejam a si mesmos é necessário fazer um espelho para vermos o reflexo dos olhos, também para fazer esse ser real manifestar-se, este corpo e mente foram feitos como um espelho: para que nesse espelho esse ser real possa ver a si mesmo e realizar seu ser independente. O que temos de alcançar através do caminho da iniciação, através do caminho da meditação, através do conhecimento espiritual é dar-se conta ao nos tornarmos um espelho perfeito.
Para explicar essa idéia os faquires e dervixes contaram uma história. Um leão vagando pelo deserto encontrou um filhote de leão brincando com as ovelhas. Aconteceu que aquele leãozinho havia sido criado com as ovelhas e assim nunca teve a chance ou a oportunidade de dar-se conta do que ele era. O leão ficou muito surpreso ao ver o jovem leãozinho fugindo com o mesmo medo dele que as ovelhas. Ele pulou entre o rebanho das ovelhas e rugiu: 'Pare, pare', mas as ovelhas correram e o leãozinho também. O leão perseguia apenas o leãozinho, não as ovelhas, e disse: 'Espere, quero falar com você'. O filhote respondeu: 'eu tremo, tenho pavor, não posso ficar diante de você'. 'Por que você está fugindo por aí com as ovelhas? Você é um pequeno leão!' 'Não, sou uma ovelha. Eu tremo, e tenho pavor de você. Deixe-me ir. Deixe-me ir com as ovelhas!' 'Venha comigo', disse o leão, 'venha comigo'. 'Vou te levar e te mostrar o que você é antes de deixar você ir'. Tremendo e ainda indefeso, o leãozinho seguiu o leão para um espelho d'água. Lá o leão disse: 'Olhe para mim, e olhe para você. Não somos próximos, não somos parecidos? Você não é como as ovelhas, você é como eu'.
Por todo o processo espiritual o que aprendemos é a desiludir esse falso ego. A aniquilação desse falso ego é a sua desilusão. Uma vez que ele é tirado dessa ilusão, então o verdadeiro ego realiza seu próprio mérito. É nessa realização que a alma entra no reino de Deus. É nessa realização que a alma é nascida novamente, um nascimento que abre as portas do céu.

Pergunta: O verdadeiro Ser tem que ter mente e corpo para poder estar consciente de si mesmo?
Inayat: O verdadeiro Ser não precisa ter mente e corpo para sua existência. Ele não depende da mente e do corpo para sua existência, para sua vida, assim como os olhos não precisam do espelho para existirem. Eles apenas dependem do espelho para verem seu reflexo. Sem ele os olhos veriam todas as coisas, mas nunca veriam a si mesmos.
Outro exemplo é a inteligência. A inteligência não pode conhecer a si mesma a menos que ela tenha algo inteligível para segurar; então a inteligência dá-se conta de si mesma. Uma pessoa com um dom poético que nasceu um poeta, jamais realiza a si mesmo como sendo poeta até que coloque sua idéia no papel, e que seu verso faça ressoar um acorde em seu próprio coração. Quando ele está apto a apreciar sua poesia, é que então ele pensa: 'eu sou um poeta'. Até então, havia um dom da poesia nele, mas ele não o conhecia.
Os olhos não se tornam mais poderosos ao olhar no espelho. Apenas os olhos sabem como eles são quando vêem seu reflexo. O prazer está em dar-se conta de nossos méritos, nossos dons, do que possuímos. É em dar-se conta que está o mérito. Sem dúvida seria uma grande pena se os olhos pensassem: 'Estamos tão mortos quanto este espelho', ou se ao olhar no espelho eles pensassem: 'nós não existimos exceto no espelho'. Portanto, o falso ser é a maior limitação.
Pergunta: Nosso Murshid (mestre) não é nosso espelho?
Inayat: Não. O Murshid fica no lugar do leão da fábula. Mas o espelho d'água é necessário.
Pergunta: Embora a alma sinta ser diferente dos outros corpos, ela não se sente uma com Deus?
Inayat: Nem mesmo com Deus. Como poderia? Como pode uma alma que está presa na falsa concepção, que não pode ver uma barreira levantada entre ela mesma e seu próximo, levantar a barreira para Deus, o Qual ela ainda não conheceu? Pois toda a crença da alma em Deus, afinal, é uma concepção – porque foi ensinada por um padre, porque está escrito numa escritura, porque os pais disseram que existe um Deus, mas ela está sempre sujeita a mudar sua crença, e infelizmente quanto mais ela avança intelectualmente, mais distante ela fica daquela crença. Uma crença que uma inteligência pura não possa manter sempre não irá longe com a pessoa. É através da compreensão dessa crença que o propósito da vida é cumprido. É dito no Gayan: 'O descobrimento da alma é o descobrimento de Deus'.
Pergunta: Como o Ser real recusa o corpo e a mente na morte?
Inayat: Não é fácil para o Ser real recusar a mente e o corpo, quando uma pessoa não pode recusar durante a vida seus pensamentos de depressão, tristeza e desapontamento. As impressões das felicidades e das tristezas no passado que a pessoa mantém em seu coração: preconceito e ódio, amor e devoção, tudo o que tenha ido fundo nela mesma. Se esse é o caso, nem mesmo a morte pode levá-las embora. Se o ego mantém sua prisão em torno de si, ele leva essa prisão com ele, e existe apenas uma maneira de ele ser livrado disso, e é através do autoconhecimento.
Pergnta: A pessoa identifica-se com seu corpo mental imediatamente após a morte, ou ainda identifica-se com o corpo morto?
Inayat: O corpo mental é assim como o corpo morto. Não há diferença, pois um é construído no reflexo do outro. Por exemplo, a pessoa não se vê diferente no sonho quando a mente está numa condição normal. Se a mente está anormal a pessoa pode ver-se como uma vaca, ou um cavalo, ou qualquer coisa. Mas se a mente está normal a pessoa não pode se ver diferente daquilo que conhece como sendo ela. Portanto, o ser mental é aquele mesmo que a pessoa vê no sonho. No sonho a pessoa não vê a perda do corpo físico. Ela está correndo, comendo ou apreciando no sonho; não percebe a ausência do corpo físico. É a mesma coisa após a morte. A outra vida não depende de um corpo físico para ser experimentada totalmente. A esfera em si é perfeita e a vida é experimentada perfeitamente.
Pergunta: O ego é destruído completamente pela aniquilação?
Inayat: O ego em si nunca é destruído. Ele é a única coisa que vive, e esse é o sinal da vida eterna. No conhecimento do ego está o segredo da imortalidade. Quando é dito no Gayan: 'A morte morre, e a vida vive', é o ego que é a vida, e é a sua falsa concepção que é a morte. O falso deve se esvair algum dia; o real deve ser sempre. Assim é com a vida: o verdadeiro ser vivo é o ego, ele vive. Todo o resto que ele emprestou para seu uso dos diferentes planos e esferas, dentro dos quais ele se perdeu, tudo isso é colocado de lado. Não vemos isso com nosso próprio corpo? Coisas que não pertencem ao corpo não permanecem nele, no sangue, nas veias, em qualquer parte. O corpo não irá mantê-las, irá repeli-las. Da mesma forma acontece em toda esfera. Ela não pega o que não pertence a ela. Tudo o que é de fora ela mantém fora. O que pertence a terra é mantido na terra, a alma repele isso. Destruição do ego é a maneira de colocar em palavras, na verdade não é destruir, é descobrir.
Frequentemente as pessoas ficam assustadas ao lerem livros Budistas, quando a interpretação do Nirvana é dada como aniquilação. Ninguém quer ser aniquilado e as pessoas ficam muito assustadas quando lêem 'aniquilação'. Mas é só uma questão de palavras. A mesma palavra em Sanskrito é uma linda palavra: mukti. Os Sufis chamam-na de fana. Se traduzirmos para o inglês é aniquilação, mas quando entendemos seu significado real, quer dizer 'passar' ou 'atravessar'. Atravessar o quê? Atravessar a falsa concepção, que é uma primeira necessidade, e chegar à Verdadeira Realização.

sábado, 10 de outubro de 2009

Lao Tsu - Tao te Ching - Para que haja equilíbrio perfeito


Enquanto age no mundo, o Tao
é como o curvar-se de um arco.
A parte de cima é curvada para baixo
e a parte de baixo é curvada para cima.
Ele ajusta os excessos e as deficiências
para que haja equilíbrio perfeito.
Ele pega do que é demasiado
e dá para o que não é o bastante.
Aqueles que tentam controlar,
que usam força para proteger seu poder,
vão contra a direção do Tao.
Pegam dos que não tem o bastante
e dão para aqueles que tem em demasia.
O mestre pode continuamente dar
pois sua riqueza não tem fim.
Agindo sem expectativa,
ele sucede sem tomar crédito,
e não pensa que é melhor do que ninguém.
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O Tao dá a luz ao Um.
O Um dá a luz ao Dois.
O Dois dá a luz ao Três.
O Três dá a luz a todas as coisas.
Todas as coisas têm suas costas para o feminino
e estão de frente para o masculino.
Quando o masculino e o feminino combinam-se,
todas as coisas atingem a harmonia.
O homem ordinário odeia a solidão.
Mas o mestre a utiliza,
abraçando sua solidão, percebendo
que ele é um com o universo todo.

quinta-feira, 8 de outubro de 2009

Ramesh S. Balsekar - A natureza da Consciência II

Pergunta: Não estou certo a respeito da diferença entre a dualidade e o dualismo.
Ramesh: A dualidade é a base na qual esta manifestação acontece. Portanto, se a dualidade é entendida como dualidade, como meros pólos opostos, em que um não pode existir sem o outro, isso é compreensão. Isso é iluminação. É a própria Consciência que descendeu do nível da dualidade para o nível do dualismo e identificou-se com cada objeto e criou essas relações sujeito-objeto de modo que esse Lila (jogo divino) pudesse continuar. Portanto, é a Consciência que se identificou consigo mesma e continua a identificação por um tempo. Então, algum mecanismo corpo-mente, que esteve vivendo sua vida de uma maneira perfeitamente razoável, saudável e feliz, é atingido por um impulso de descobrir, “qual é o sentido da vida?”, “estou realmente separado do próximo?” E assim a mente volta-se para dentro, e o buscador inicia sua busca miserável! O processo de desidentificação prossegue então até que ocorre a compreensão de que o dualismo é uma piada, uma piada cósmica. E essa realização eleva o dualismo de volta ao nível da dualidade. Quando aquele nível de dualidade torna-se também insuportável, então o “eu” e o “Tu” também desaparecem.

P: Entendo o que você está dizendo. Estou acompanhando com bastante clareza. A Consciência é tudo o que há, e tudo é apenas a Consciência entretendo a si mesma. Mas quando tenho filhos que são paralíticos, é difícil chegar à paz com essa maneira impessoal de ver as coisas. As inquietações pessoais são o que realmente contam.
R: Sim, mas contam apenas para o indivíduo. Pois o 'mim', reagindo aos eventos é tudo o que a vida é. É por isso que o ser humano quer segurança. Mas segurança é algo que não pode acontecer e portanto, o ser humano é infeliz.
Por trezentos anos a física Newtoniana prevaleceu, dizendo que você pode pegar um pedaço do universo, você pode observá-lo e pode entender aquela parte. Mas agora, desde que a teoria da mecânica quântica apareceu, uma partícula se move e o cientista pode saber apenas a sua localização e a sua velocidade, mas não ambos. Se ele sabe a velocidade, ele não pode saber o local onde a partícula estará. Ele não pode saber as duas coisas. Todo o universo e o seu funcionamento está baseado em polaridade, opostos interconectados: homem-mulher, sujeito-objeto, acima-abaixo, bem-mal, doente-saudável, felicidade-tristeza. Em todo o universo não existe nada que é estático, nenhum planeta, nenhuma galáxia. Tudo está se movendo e o movimento significa mudança.
A mente humana pensa em termos laterais, mas quase tudo no universo é circular. Qualquer coisa que muda tem de voltar novamente. O cientista diz hoje que falar num mundo no qual tudo é preciso, constante e mensurável é uma proposição impraticável. Em tal mundo um pequenino elétron dentro de todo átomo teria que trabalhar a cada instante sem parar. Ele queimaria a si mesmo. Toda a energia pararia. Tudo voltaria para dentro de um núcleo.
A vida é incerteza. Isso é o que o místico tem dito por milhares de anos e agora o cientista concorda. Temos de viver com a insegurança. Temos de viver com a mudança. Segurança é um mito. Você não pode viver com segurança; e tentar fazer isso significa frustração. Compreender profundamente isso e aceitar que viver e vida estão baseados em mudança, a pessoa gostando disso ou não, é um grande passo à frente.
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P: Sinto-me confortável com o conceito de uma consciência-mãe amorosa que deseja que eu cresça através dessa existência. Estou tendo dificuldades de adequar isso com o que você está ensinando.
R: O amor e o ódio são opostos interconectados na fenomenalidade. Na fenomenalidade, nada neste universo pode existir exceto em bases duais. Nada é único, nada é constante, nada. Tudo está mudando o tempo todo. A mudança e os opostos interconectados são a própria essência da existência.
A dificuldade surge quando a mente-dividida do sujeito-objeto não aceita que o amor e o ódio são opostos, que o bem e o mal estão interconectados. Um não pode existir sem o outro. A beleza não pode existir por si mesma. No momento em que você fala da beleza, a feiúra já está lá. No momento em que você fala da bondade, o mal já está lá. Como você pode falar da beleza na ausência da feiúra? O ser humano quer experimentar uma e não a outra. Isso não pode ser feito.
Nada pode ser constante na vida. A mudança é a própria base da vida. Também com a felicidade, a infelicidade está automaticamente conectada com ela, pois a mudança é inevitável. A miséria vem porque a mente-dividida compara, julga, e quer a felicidade à exclusão da infelicidade. A mente-dividida não aceita que a mudança está fadada a acontecer.
Quando surge a compreensão que, “isso também passará”, seja miséria ou felicidade, essa compreensão trará uma tremenda mudança na perspectiva. Então quando há alguma compreensão você não considera que aqueles que não a possuem são indignos, você não se considera ser “um favorito de Alá”, pois você sabe que este estado de consciência passará, e outros estados de consciência virão. E quando os outros estados de consciência surgirem, você não se sentirá miserável pois eles não eram totalmente inesperados. Isso não trará a miséria na profundidade que teria trazido anteriormente. Portanto, a base dessa aceitação é que tudo está se movendo, e portanto, a mudança é a própria base da vida e basicamente tudo é ilusão.
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P: Parece-me que tudo pode ser considerado irreal, exceto o fato de que eu existo. Há uma diferença entre o “eu existo” e o possessivo “meu”, como o “meu corpo”, “minhas idéias”, “minha casa”, a existência em si é incontestável.
R: Portanto, o que quer que digamos, o que quer que pensemos, é um conceito. A única coisa que não é um conceito, a única verdade, é o sentido de presença. Eu sou. Estou vivo. Essa é a única verdade. Mas essa verdade, mesmo essa verdade está no nível dos fenômenos.
P: E essa verdade também é um conceito.
R: Certo. Finalmente, até esse Eu Sou é um conceito. Mas na ausência de todos os outros conceitos, a única coisa que sabemos (tudo mais é um conceito) é o sentido de presença: Eu Sou, Eu existo. Se você imaginasse que você fosse o único ser senciente na Terra, então o sentido de presença seria tudo o que existiria. E nesse caso não haveria nem mesmo o sentido de “eu existo”. O sentido seria, “há a existência”. Existe a consciência porque existe algo do qual estamos cientes a respeito. E isto é o resto da manifestação.
P: E se não colocarmos isso em palavras então é a verdade.
R: Sim. Isso é a Realidade.
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P: “Eu Sou”. Essa é a única coisa da qual podemos saber?
R: Correto. Eu sou, aqui e agora, no momento presente.
P: Como sabemos isso?
R:Você não sabe disso?
P: A maneira como sei disso é que eu sempre tenho um pensamento que Eu Sou. Eu sinto as coisas.
R: Não. Não!
P: O próprio sentido de presença?
R: Correto. O sentido de presença está sempre ali. Portanto, o que estou dizendo é, você não tem que ter o sentido de presença. O sentido de presença já está ali.
P: Sem um objeto?
R: Sim. Originalmente esse sentido de presença é impessoal. Quando você acorda pela manhã o primeiro sentido de presença é impessoal. Então emerge em você, o Eu sou tal e tal. A identificação pessoal vem depois. Originalmente há meramente o sentido de presença impessoal.
P: Você realmente não é um “eu” ("mim") de maneira nenhuma. Não há o sentido de ser um “mim” (“eu”)?
R: Correto.
P: O sentido de presença depende de que haja um corpo.
R: Sim. O sentido de presença surge apenas quando há um corpo. Se não houver um corpo, não há um instrumento no qual o sentido de presença possa aparecer.
P: É um instrumento muito frágil.
R: De fato! Mas o único ponto é que existem bilhões deles. Então, se um vai, não importa. Neste corpo existem milhões de células morrendo e sendo criadas o tempo todo. Alguma vez alguém pensou naquela célula individual? “Pobre célula, não viveu quase nem meio segundo e morreu!”
P: Você está falando sobre aceitação e sobre sentir a presença do presente e ver tudo o que está a nossa frente como sendo o que a vida é?
R: Isso. Novamente, deixe-me repetir, qualquer coisa que eu diga, ou que qualquer pessoa diga, qualquer coisa que as escrituras digam, é tudo um conceito. Precisamos de conceitos para o comunicar até que a mente tenha atingido um estágio onde ela perceba que o que ela esteve buscando está além da compreensão dela.
Então a mente irá aquietar-se e o silêncio irá reinar. Até lá, mesmo esse sentido de presença do qual estamos falando a respeito está no nível dos fenômenos. Você vê, existe a presença do sentido de presença e a ausência do sentido de presença. No sono profundo ou sob efeito de sedativos há uma ausência do sentido de presença. Então existe a presença e a ausência desse sentido de presença. Essa presença e ausência dele é parte da fenomenalidade. Na não-fenomenalidade, a qual é o potencial, que é a consciência-em-repouso, há a ausência tanto da presença do sentido de presença quanto da ausência dele.
Deixe-me colocar de outra forma, (embora nenhuma ilustração jamais possa ser completa em si mesma pois uma ilustração constrói um objeto e o assunto do qual estamos tratando não está nem um pouco relacionado ao nível dos objetos): Você acorda de manhã. Você está desperto. Existe a presença da barba. Você a raspa. Agora existe a ausência da presença da barba. Mas num menino existe a potencial presença e ausência da barba. Há uma ausência da presença da barba e uma ausência da ausência da barba. Potencial, sim – portanto estou falando sobre Aquele estado, aquele estado original onde há uma ausência de ambos, tanto da presença do sentido de Presença quanto da ausência da ausência do sentido de Presença.
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P: A Consciência-em-repouso não é simplesmente aquele conceito básico sobre o qual a Consciência-em-movimento ocorre?
R: Correto.
P: Mas o cessar dos pensamentos, o cessar da atividade, para que postular ou conceitualizar que ela vai para algum lugar? Por que não é simplesmente um cessar de movimento?
R: Novamente, está absolutamente correto. Assim, mais nenhuma questão permanece. Concordo inteiramente. Mas, por essa questão persistir, você tem que receber um conceito adicional.
Isso é o que pode ser chamado de um problema divergente. Os cientistas lidam com problemas que são convergentes. Cem cientistas realizando o mesmo experimento devem obter o mesmo resultado. Quando o problema diz respeito a uma experiência interior da Consciência, torna-se um problema divergente. Em outras palavras, problemas divergentes são causados pelo intelecto, ao dividir o que por natureza é total e indivisível. O intelecto cria o problema ao dividir polaridade. Os opostos que existem não podem existir por si mesmos. Não pode haver o “para cima” sem o “para baixo”, não pode haver a beleza sem a feiúra. Mas o que o intelecto quer é, isso ou aquilo. Ao comparar e querer selecionar, o intelecto cria um problema divergente, e problemas divergentes jamais podem ser solvidos. Um problema divergente pode apenas dissolver-se através da compreensão do próprio problema, da compreensão de que ele realmente não é um problema, que ele é criado pelo intelecto querendo escolher entre os opostos que não são opostos de maneira nenhuma. São interrelacionados.
Por exemplo, na educação uma idéia é que o aluno deva ter disciplina. Portanto um pouco de disciplina é bom, mais disciplina é melhor e disciplina total é perfeito. A escola torna-se uma prisão. O outro lado diz: “Não, o aluno deve ter liberdade de pensamento e de ação”. Portanto, se um pouco de liberdade é uma boa coisa, mais liberdade deve ser melhor, e liberdade absoluta seria perfeito. Então a escola torna-se um caos. Assim, o isso ou aquilo, o querer escolher entre dois opostos, é criar um problema diversivo. Os dois opostos estão interrelacionados, você não pode ter um ou o outro. Quando isso é entendido, e que o universo inteiro está baseado nessa polaridade onde você não pode escolher, então não é necessário solver o problema. O problema se dissolve.
Haviam dois monges estudando num seminário e ambos apreciavam muito fumar. O problema deles era, “É permitido fumar quando estou orando?” Eles não conseguiam chegar a um acordo, então cada um disse que iria falar com seu superior. Ao se encontrarem novamente mais tarde, um monge perguntou para o outro se o abade tinha dito se era permitido fumar. Ele disse: “Não, fui severamente repreendido até mesmo por mencionar isso. O que seu abade disse?” O outro respondeu: “Ele ficou feliz comigo. Disse que tudo bem. O que você perguntou ao seu superior?” Perguntei se eu podia fumar quando estava rezando”. “Então é por isso. Eu perguntei, 'posso rezar quando estou fumando?'”
O mesmo problema depende de como o vemos. É tudo uma questão de perspectiva. A base da vida é a polaridade e a polaridade aparece devido à mudança. O universo e tudo nele está num movimento contínuo. E movimento não significa movimento lateral como o intelecto humano pensa. É um movimento circular. Portanto, as mudanças devem acontecer. Se isso não for entendido, então cria problemas. E a maioria dos problemas da vida são problemas divergentes.