sexta-feira, 28 de fevereiro de 2014

Ibn Arabi - O mistério da Essência Divina

 Deus é o seu espelho, isto é, o espelho em que você contempla o seu ser (nafs, anima), e você por sua vez, é o espelho Dele, isto é, o espelho em que Ele contempla Seus Nomes divinos. Aqui temos uma relação recíproca entre dois espelhos de frente um para o outro e que refletem a mesma imagem um para o outro. A imagem não está fora dele, mas dentro de seu ser, ou melhor ainda, é o seu próprio ser, a forma do nome divino que ele mesmo trouxe consigo ao tornar-se existente. E o círculo da dialética do amor fecha-se nessa experiência fundamental: "O Amor está mais perto do amante do que é a sua veia jugular". Tão excessiva é essa proximidade que ela age em princípio como um véu. É por isso que o novato inexperiente, embora dominado pela imagem pela qual ele investe todo o seu ser interior, vai procurá-lo fora de si mesmo, em uma busca desesperada de forma a forma do mundo sensível, até que retorna ao santuário de sua alma e percebe que o verdadeiro Amado está profundamente dentro de seu próprio ser e, a partir daquele momento, ele busca o Amado apenas através do Amado. O sujeito ativo dentro dele continua a ser a imagem interior de beleza irreal, um vestígio da contraparte transcendente ou celeste de seu ser.


Deus não está limitado à maneira pela qual Ele é epifanizado por você e se faz adequado para a sua dimensão (para que você possa recebê-Lo). E é por isso que as outras criaturas não têm obrigação de obedecer a Deus, que exige a sua adoração, porque suas teofanias assumem outras formas. A forma que Ele é epifanizado por você é diferente daquela que ele é epifanizado pelos outros. Deus, como tal, transcende todas as formas inteligíveis que se possa imaginar, que se possa sentir. Entretanto, quando considerado em Seus nomes e atributos, ou seja, suas teofanias, Ele é, pelo contrário, inseparável dessas formas, de determinadas configurações e de uma certa posição no espaço e no tempo.


Nada além de Deus é amado nas coisas existentes. É Ele que se manifesta dentro de cada amado aos olhos de todos os amantes - e não há nada no reino existente que não seja um amante.


Ó amante, quem quer que você seja, saiba que os véus entre você e seu amado, quem quer que ele seja, não são nada senão o seu emaranhamento com as coisas, não as coisas em si, como é dito por aquele que não provou o sabor de realidades. Você se deteve com as coisas por causa da deficiência de sua percepção, ou seja, a falta de penetração, expressa como o véu, e o véu é a não-existência e a não-existência é a nulidade. Assim, não há véu algum, se os véus fossem verdadeiros, você também deveria ter sido velado daquele que foi velado de você.


O Amado torna-se um espelho que reflete a face secreta do amante místico, enquanto o amante, purificado da opacidade de seu ego, por sua vez, torna-se um espelho dos atributos e ações do Amado.


A Caaba mística é o coração do ser. Foi dito: "O Templo que Me contém está em seu coração." O mistério da Essência Divina não é outro senão o Templo do coração e é em torno do coração que circumbulam os peregrinos espirituais.


Tudo o que nós chamamos de diferente de Deus, tudo o que chamamos de universo, está relacionado com o Ser Divino como a sombra está relacionada com a pessoa. O mundo é a sombra de Deus. A sombra é ao mesmo tempo Deus e algo diferente de Deus. Tudo o que percebemos é o Ser Divino nos protótipos eternos das possíbilidades.


Não é do nada que Sua criação brota, ou de algo diferente Dele mesmo, de um não-Ele, mas de Seu Ser fundamental, das potencialedades e virtualidades latentes em Seu próprio ser não revelado.


O Ser Total é a união deste Senhor e do Seu vassalo. As duas dimensões referem-se, na verdade, o mesmo Ser, mas para a totalidade daquele Ser, um é adicionado (ou multiplicado) ao outro, eles não podem negar um ao outro, ou ser confundidos com o outro, ou substituído pelo outro.



 
Meu coração pode assumir qualquer forma:
Um prado para as gazelas,
Um claustro para os monges,
Para os ídolos, solo sagrado,
Caaba para o peregrino circundar,
As plataformas da Torá,
Os pergaminhos do Alcorão.
Meu credo é Amor;
Onde quer que a caravana do amor se dirija ao longo do caminho,
Essa é a minha crença,
A minha fé.

quinta-feira, 13 de fevereiro de 2014

P. D. Ouspensky - O Estudo de Si Mesmo

 


Neste sistema, que estuda o homem como ser incompleto, dá-se ênfase especial ao estudo de si mesmo e, desse modo, a ideia do estudo de si mesmo está necessariamente ligada à ideia de aperfeiçoamento. Como somos, podemos utilizar muito pouco de nossos poderes, mas o estudo os desenvolve. O estudo se si mesmo começa com o estudo dos estados de consciência. O homem tem direito a ser consciente de si mesmo, tal como ele é, sem qualquer mudança. A consciência objetiva requer muitas mudanças nele, mas a consciência de si mesmo ele pode ter agora. Contudo, não a tem, embora creia que a tenha. Como começou essa ilusão? Por que o homem se atribui a lembrança de si mesmo? Ele o faz, porque ela é seu estado legítimo. Se não é consciente de si mesmo, o homem vive abaixo do seu nível legítimo, usa apenas um décimo dos seus poderes. Mas, enquanto atribuir a si mesmo o que é somente uma possibilidade, não trabalhará para alcançar esse estado.


 Vem em seguida, a pergunta: por que o homem não tem consciência de si mesmo, se dispõe de todos os órgãos necessários para isso? A razão está no seu sono. Não é fácil despertar porque o sono tem muitas causas. Muitas vezes as pessoas perguntam: todos os homens tem possibilidade de despertar? Não, absolutamente.
São muito poucos os que podem dar-se conta de que estão dormindo e fazer os esforços necessários para despertar. Antes de tudo, o homem deve estar preparado, deve compreender a sua situação; depois, deve ter bastante energia e um desejo suficientemente forte para poder sair dela.
 Em toda essa estranha combinação que é o homem, a única coisa que pode mudar é a consciência. Mas, inicialmente o homem deve dar-se conta de que é uma máquina a fim de poder apertar alguns parafusos, afrouxar outros, etc. Ele deve estudar; é aí que a possibilidade de mudança começa.  Quando compreender que é uma máquina e conhecer alguma coisa a respeito da sua máquina, verá que ela pode funcionar em diferentes condições de consciência e dessa forma tratará de dar-lhe melhores condições. 
 Nesse sistema dizem-nos que o homem tem a possibilidade de viver em quatro estados de consciência, mas que tal como é vive apenas em dois. Sabemos também que as nossas funções se dividem em quatro categorias. Assim, estudamos quatro categorias em dois estados de consciência.  Ao mesmo tempo, tomamos conhecimento de que ocorrem lampejos de consciência de si mesmo e de que aquilo que nos impede de ter mais lampejos é o fato de não nos lembrarmos de nós mesmos, de estarmos dormindo.
A primeira condição necessária a um estudo sério de si mesmo é a compreensão de que a consciência tem graus. Devemos nos lembrar de que não passamos de um estado de consciência a outro, de que esses estados se adicionam um ao outro. Isso significa que se estivermos no estado de sono, quando despertamos, o estado de consciência relativa ou “sono desperto” será acrescentado ao estado de sono; se nos tonarmos conscientes de nós mesmos, esse estado será adicionado ao “sono desperto” e, se adquirirmos o estado de consciência objetiva, esse estado se adicionará ao de consciência de si mesmo. Não existem transições nítidas de um estado para outro. Por que não? Porque cada estado consiste em camadas distintas. Assim como, no sono, podemos estar mais ou menos adormecidos, da mesma forma, no estado em que estamos agora, podemos estar mais próximos ou mais distantes da consciência de nós mesmos.
A segunda condição necessária a um estudo de si mesmo é o estudo das funções pela observação delas, aprendendo a dividi-las de maneira correta, a reconhecer cada uma separadamente. Cada função tem sua própria manifestação, a sua própria especialidade. Devem ser estudadas separadamente e devemos compreender claramente as suas diferenças, lembrando-nos de que elas são controladas por centros ou mentes diferentes. É muito útil pensar sobre as nossas diferentes funções - ou centros – e compreender que são completamente independentes. Não nos damos conta de que há quatro seres independentes em nós, quatro mentes independentes. Tratamos sempre de reduzir tudo a uma só mente. O centro instintivo pode existir de maneira totalmente independente dos outros centros; os centros motor e emocional podem existir sem o intelectual. Podemos imaginar quatro seres vivos em nós. O que chamamos homem instintivo é o homem físico. O homem motor é também um homem físico, mas com inclinações diferentes. Há, em seguida, o homem sentimental ou emocional e o homem teórico ou intelectual. Se nos encararmos desse ponto de vista, será mais fácil ver onde cometemos o equivoco principal a nosso respeito, porque nos consideramos como se fossemos um, sempre o mesmo. 
Não podemos ver os centros, mas podemos observar as funções: quanto mais observarmos, maior será a quantidade de material que teremos.  Essa divisão das funções é muito importante. Só poderemos controlar cada função, se conhecermos as peculiaridades de velocidade de cada uma delas.
 A observação das funções deve estar ligada ao estudo dos estados e graus de consciência. É necessário compreender claramente que consciência e funções são completamente diferentes. Andar, pensar, sentir, ter sensações são funções que se manifestam de maneira completamente independente do fato de estarmos conscientes ou não. Noutras palavras, podem se manifestar mecanicamente. Estar consciente é algo muito diferente. Mas, se estivermos mais conscientes, isso imediatamente fará crescer a intensidade das nossas funções. 
 As funções podem se comparar a máquinas que trabalham em vários graus de iluminação. Essas máquinas são de tal ordem, que podem trabalhar melhor com luz do que com escuridão; quando há mais iluminação, as máquinas trabalham melhor. A consciência é a luz e as máquinas são as funções.
A observação das funções exige um trabalho prolongado. É necessário encontrar muitos exemplos de cada uma delas. Estudando-as, inevitavelmente veremos que nossa máquina não funciona de maneira adequada, algumas funções estão bem enquanto outras são indesejáveis, do ponto de vista de nossa meta. Porque é preciso ter uma meta, do contrário nenhum estudo dará resultado. Se nos dermos conta de que estamos dormindo, nossa meta deverá ser acordar.  Se percebermos que somos máquinas, a nossa meta deverá deixar de ser máquinas. Se quisermos ser mais conscientes, devemos estudar o que nos impede de nos lembrarmos de nós mesmos. Desse modo, temos que estabelecer uma determinada avaliação das funções, baseada na ideia de que são úteis ou prejudiciais à lembrança de si. Há assim duas linhas de estudo: o estudo das funções de nossos centros e o estudo das funções desnecessárias ou prejudiciais.