terça-feira, 3 de fevereiro de 2009

Nisargadatta Maharaj - O transitório não pode ser real


Pergunta: Meu amigo é alemão e eu nasci na Inglaterra de pais franceses. Estou na Índia há mais de um ano indo de Ashram em Ashram.
Maharaj: Você realiza alguma prática espiritual (sadhana)?
Pergunta: Estudos e meditação.
Maharaj: Sobre o que você medita?
Pergunta: Sobre o que leio.
Maharaj: Ótimo.
Pergunta: O que você está fazendo, senhor?
Maharaj: Sentado.
Pergunta: E o que mais?
Maharaj: Falando.
Pergunta: Sobre o que você está falando?
Maharaj: Você quer uma palestra? É melhor você perguntar algo que realmente te toca, com o qual você se sinta fortemente relacionado. A menos que você esteja emocionalmente envolvido, você pode argumentar comigo mas não haverá um verdadeiro entendimento entre nós. Se você disser: 'Nada me preocupa, eu não tenho problemas’, está tudo bem comigo, podemos nos manter quietos. Mas, se algo realmente toca você, então há propósito em falar.
Posso perguntar-lhe? Qual é o propósito da sua ida de um lugar para o outro?
Pergunta: Para encontrar as pessoas, para tentar entendê-las.
Maharaj : Que pessoas você está tentando entender? O que exatamente você está procurando?
Pergunta: A integração.
Maharaj: Se você deseja integração, é necessário saber a quem você quer integrar.
Pergunta: Ao conhecer as pessoas e observá-las, acabamos conhecendo a nós mesmos também. Ambos caminham juntos.
Maharaj: Não necessariamente caminham juntos.
Pergunta: Um melhora o outro.
Maharaj: Não funciona dessa forma. O espelho reflete a imagem, mas a imagem não melhora o espelho. Você não é nem o espelho nem a imagem no espelho. Tendo aperfeiçoado o espelho para que ele reflita corretamente, você pode realmente virar o espelho e ver nele um verdadeiro reflexo de si mesmo — verdadeiro, tanto quanto o espelho possa refletir. Mas o reflexo não está sozinho — você é aquele que vê o reflexo. Entenda claramente — o que quer que você possa perceber não é você, o que você percebe não é você.
Pergunta: Eu sou o espelho e o mundo é a imagem?
Maharaj : Você pode ver tanto a imagem quanto o espelho. Você não é nenhum dos dois. Quem é você? Não vá por fórmulas. A resposta não está em palavras. O mais próximo que você pode dizer em palavras é o seguinte: eu sou o que torna a percepção possível — a vida além do experimentador e de suas experiências. Agora, você pode separar-se tanto do espelho quanto da imagem no espelho e ficar completamente sozinho, totalmente só?
Pergunta: Não, eu não posso.
Maharaj : Como você sabe que não pode? Há tantas coisas que você está fazendo sem saber como fazê-las. Você digere, você circula seu sangue e sua linfa, você move seus músculos — tudo sem saber como. Da mesma maneira, você percebe, você sente, você pensa sem saber como acontece e o por quê disso. Do mesmo modo, você é você mesmo sem saber. Não há nada de errado com você como Ser (Self). Ele é aquilo que é até a perfeição. É o espelho que não é claro e verdadeiro, e, portanto, dá falsas imagens a você. Você não precisa corrigir a Si mesmo — só precisa configurar direito sua idéia de si mesmo. Aprenda a separar-se da imagem e do espelho, mantenha-se lembrando: eu não sou nem a mente nem suas idéias; faça isso pacientemente e com convicção e você certamente vai chegar à visão direta de você como sendo a fonte do ser — da sabedoria — e do amor; eterno, permeando tudo, abarcando todas as coisas. Você é o infinito focado em um corpo. Agora, você vê apenas o corpo. Experimente de maneira séria e sincera e chegará a ver apenas o infinito.
Pergunta: A experiência da realidade, quando vem, é duradoura?
Maharaj: Toda experiência é necessariamente transitória. Mas a plataforma de todas as experiências é imutável. Nada que possa ser chamado de "um evento" irá durar. Mas alguns eventos purificam a mente, e outros a mancham. Momentos de insight profundo e de amor abrangente purificam a mente, enquanto que desejos e lágrimas, invejas e raiva, crenças cegas e arrogância intelectual poluem e entorpecem a psique.
Pergunta: A realização de si é tão importante?
Maharaj: Sem ela você será consumido por desejos e medos que se repetem insensatamente num interminável sofrimento. A maioria das pessoas não sabe que pode haver um fim para a dor. Mas uma vez que escutarem a boa notícia, ir além de todas as lutas e batalhas é a tarefa mais urgente que pode existir, obviamente. Você sabe que pode ser livre e agora cabe a você. Ou você permanece para sempre com fome e sede, anseios, buscando, segurando, tentando reter, e sempre perdendo e se entristecendo; ou sai totalmente em busca do estado de perfeição atemporal ao qual nada pode ser acrescentado, do qual nada é retirado. Nele, todos os desejos e medos estão ausentes, não porque foram abandonados, mas porque perderam o seu significado.
Pergunta: Até agora tenho acompanhado o que você fala. Agora, o que devo fazer?
Maharaj: Não há nada a fazer. Apenas seja. Não faça nada. Seja. Sem escalar montanhas e sentar em cavernas. Eu nem mesmo digo: “seja você mesmo”, um vez que você não se conhece. Simplesmente seja. Tendo visto que você não é nem o mundo “externo” das percepções, nem o mundo interno dos pensamentos, que você não é nem corpo nem mente — simplesmente seja.
Pergunta: Certamente, existem níveis de realização.
Maharaj: Não existem degraus para a auto-realização. Não há nada gradual a esse respeito. Acontece de repente e é irreversível. Você muda para uma nova dimensão, e as dimensões anteriores são meras abstrações vistas a partir dessa nova. Assim como no amanhecer você vê as coisas como elas são, é da mesma forma com a auto-realização, você vê tudo como é. O mundo de ilusões é deixado para trás.
Pergunta: No estado de realização as coisas mudam? Tornam-se coloridas e cheias de significado?
Maharaj: A experiência é certa, mas não é a experiência da realidade (sadanubhav), e sim da harmonia do universo (satvanubhav).
Pergunta: Não obstante, há progresso.
Maharaj: Pode haver progresso apenas na preparação (sadhana). A realização é súbita. O fruto amadurece lentamente, mas cai de repente e sem retorno.
Pergunta: Eu estou física e mentalmente em paz. Que mais eu preciso?
Maharaj: Seu estado pode não ser o estado último. Você vai reconhecer que você retornou ao seu estado natural por uma completa ausência de qualquer desejo e medo. Afinal, na raiz de todo desejo e medo está o sentimento de não ser o que você é. Assim como uma articulação do corpo provoca dores somente enquanto está fora de lugar, e é esquecida logo que é colocada de volta, também é toda a auto-preocupação um sintoma de uma distorção mental que desaparece logo que estamos no estado normal.
Pergunta: Sim, mas qual é o sadhana (prática espiritual) para alcançar o estado natural?
Maharaj: Segure-se no sentido de "eu sou" até a exclusão de todo o resto. Quando a mente se torna assim, completamente silenciosa, ela brilha com uma nova luz e vibra com novo conhecimento. Tudo vem espontaneamente, você só precisa se segurar no 'eu sou'. Assim como quando emergindo do sono ou de um estado de êxtase você se sente descansado e ainda não pode explicar o porquê e como você chegou a se sentir tão bem, da mesma forma, com a realização você se sente completo, preenchido, isento do complexo prazer-dor, e ainda assim nem sempre é capaz de explicar o que aconteceu, por quê e como. Você pode colocar isso apenas em termos negativos: “Nada mais está errado comigo." É apenas através da comparação com o passado que você sabe que você está fora disso. No mais — você é apenas você mesmo. Não tenta transmitir isso aos outros. Se você puder transmitir, então não é a coisa real. Você fica em silêncio e assiste isso se manifestar em ação.
Pergunta: Se você pudesse me dizer o que irei me tornar, poderia ajudar-me a cuidar do meu desenvolvimento.
Maharaj: Como alguém pode dizer o que você irá tornar-se, quando não há nenhum tornar-se? Você simplesmente descobre o que você é. Moldar-se de acordo com um padrão é um doloroso desperdício de tempo. Não pense nem no passado e nem do futuro, apenas seja.
Pergunta: Como posso apenas ser? As mudanças são inevitáveis.
Maharaj: As mudanças são inevitáveis no inconstante, mas você não está sujeito a elas. Você é o imutável pano de fundo, contra o qual as mudanças são perceptíveis.
Pergunta: Tudo muda, o pano de fundo também muda. Não há necessidade de um fundo imutável para notar as mudanças. O Ser é momentâneo - é apenas o ponto onde o passado encontra o futuro.
Maharaj: Claro que o ‘si mesmo’ (Self) que está baseado em memória é momentâneo. Mas tal Ser demanda uma continuidade ininterrupta atrás dele. Você sabe por experiência que existem lacunas quando seu si mesmo é esquecido. O que o traz de volta à vida? O que o acorda de manhã? Deve haver algum fator constante ultrapassando as lacunas na consciência. Se você olhar atentamente verá que até mesmo sua consciência é em flashes diários, com lacunas intervindo o tempo todo. O que está nas lacunas? O que pode haver, além do seu verdadeiro Ser, que é atemporal; a mente e a ausência de mente são a mesma coisa para ele.
Pergunta: Existe algum lugar que você me aconselharia visitar, a fim de atingir a realização espiritual?
Maharaj: O único lugar apropriado é dentro. O mundo exterior não pode nem ajudar nem prejudicar. Nenhum sistema, nenhum padrão de ação irá levá-lo ao seu objetivo. Abandone todo trabalho para um futuro, concentre-se totalmente sobre o agora, preocupe-se apenas com sua resposta a cada movimento da vida conforme ela acontece.
Pergunta: Qual é a causa do desejo de vagar por ai?
Maharaj: Não existe um motivo. Você simplesmente sonha que vagueia. Em uns poucos anos a sua estadia na Índia vai aparecer como um sonho para você. Você sonhará algum outro sonho naquele momento. Perceba que não é você quem se desloca de sonho em sonho, mas sim os sonhos fluem diante de você e você é a testemunha imutável. Nenhum acontecimento afeta o seu verdadeiro Ser — essa é a Verdade Absoluta.
Pergunta: Não é possível me movimentar por ai fisicamente e manter-me estável interiormente?
Maharaj: Você pode, mas a que propósito isso serve? Se você é sincero e sério você verá que no final vai ficar farto de perambular e lamentará o desperdício de energia e tempo. Para encontrar o seu Ser, você não precisa dar nenhum passo.
Pergunta: Existe alguma diferença entre a experiência do Ser (Atman) e do Absoluto (Brahman)?
Maharaj: Não pode haver experiência do Absoluto, pois ele está além de todas as experiências. Por outro lado, o Ser é o fator experimentador ocorrendo em todas as experiências e, assim, de certa forma, valida a multiplicidade de experiências. O mundo pode estar cheio de coisas de grande valor, mas se não há ninguém para comprá-las, elas não têm preço. O Absoluto contém tudo que é experimentável, mas sem um experimentador isso é como nada. Isto que torna a experiência possível é o Absoluto. Isto que as torna real é o Ser (Self).
Pergunta: Não chegamos ao Absoluto através de uma gradação de experiências? Começando com o mais grosseiro, e terminando com o mais sublime.
Maharaj: Não pode haver nenhuma experiência sem um desejo por ela. Pode haver gradação entre desejos, mas entre o mais sublime desejo e a libertação de todo desejo, há um abismo que deve ser atravessado. O irreal pode parecer real, mas é transitório. O real não tem medo do tempo.
Pergunta: O irreal não é a expressão do real?
Maharaj: Como é possível? É como dizer que a verdade se expressa em sonhos. Para o real o irreal não existe. Parece ser verdadeiro só porque você acredita nele. Duvide dele, e ele cessa. Quando você está apaixonado por alguém, você dá realidade a isso — você imagina o seu amor ser todo-poderoso e eterno. Quando termina, você diz: "Eu pensei que fosse verdadeiro, mas não era”. Transitoriedade é a melhor prova da irrealidade. O que está limitado no tempo e no espaço e é aplicável a uma pessoa só, não é real. O verdadeiro é para todos e para sempre. Acima de tudo você acaricia a si mesmo. Você não aceitaria nada em troca da sua existência. O desejo de ser é o mais forte de todos os desejos e irá embora apenas em face à realização de sua verdadeira natureza.
Pergunta: Mesmo no irreal existe um toque de realidade.
Maharaj: Sim, a realidade que você confere ao irreal, ao tomá-lo como sendo real. Tendo convencido a si mesmo, você está limitado por sua convicção. Quando o sol brilha, as cores aparecem. Quando ele se põe, elas desaparecem. Onde estão as cores, sem a luz?
Pergunta: Isso é pensar em termos de dualidade.
Maharaj: Todo pensamento está na dualidade. Na identidade nenhum pensamento sobrevive.