segunda-feira, 7 de dezembro de 2009

Rodney Collin - Lembrança de Si, Consciênia e Memória

Se a lembrança de si é tão desejável, por que é tão difícil alcançá-la? Para responder essa questão, devemos retornar em maiores detalhes à questão da atenção. A possibilidade de estados superiores de consciência no homem depende precisamente de que certas matérias refinadas produzidas pelo corpo estejam submetidas à sua atenção.
O processo de digestão no homem consiste da rarefação progressiva de alimento, ar e percepções que ele recebe; e a matéria fina da qual falamos pode ser considerada como o produto final dessa rarefação em condições usuais. Diferente dos músculos ou do sangue, que são constituídos por células, essa matéria pode ser visualizada num estado molecular – ou seja, num estado semelhante aos gazes ou perfumes. É assim extraordinariamente volátil, instável e difícil de conter.
No caso do homem, contudo, está sujeita ao controle psicológico, e esse controle psicológico é atenção. Controlada pela atenção, essa matéria torna-se o veículo potencial da autoconsciência.
No estado comum do homem – ou seja, ao atuar como uma máquina, quando seus processos internos operam independentemente de sua vontade ou desejo – essa matéria fina segue as leis que governam todas as matérias livres em estado molecular. Difunde-se a partir do homem em todas as direções ou nas direções que ‘chamam sua atenção’. Tão logo seja produzida, ou com breve retardo, essa matéria fina sai através dele de uma forma ou de outra. Contê-la ou acumulá-la requer vontade, que ele normalmente não possui e produz uma tensão interna que só pode ser mantida com muito autoconhecimento e autocontrole.
Essa difusão da energia mais refinada do homem toma várias formas. Pode sair dele normalmente como energia sexual, verter dele nocivamente como rancor ou irritação e filtrar-se a partir dele como inveja ou autopiedade. Mais comumente, difunde-se simplesmente a partir dele para criar o curioso estado de ‘fascinação’, no qual o homem perde completamente sua identidade, seja numa conversa, numa tarefa, com um amigo, um inimigo, um livro, um objeto, um pensamento ou uma sensação. Essa ‘fascinação’ é simplesmente o efeito da matéria fina fluindo do homem numa direção determinada por seu tipo e personalidade, arrastando com ela sua atenção. Em casos extremos, essa sucção de atenção pode ser tão completa, que o corpo do homem fica então como um ser vazio até mesmo dos rudimentos de uma individualidade psíquica. Essa fascinação é o modo mais usual de gastar a matéria fina da energia criativa do homem. Constitui de fato o estado usual do homem e, por essa mesma razão, é completamente irreconhecível e comumente invisível.
Pelas classes mais refinadas e produtivas de trabalho humano, pelo uso da atenção, um homem aprende a manter essa ‘fascinação’ numa certa direção. Um bom sapateiro, por exemplo, permanece por uma hora ‘fascinado’ pela confecção de um par de sapatos, um político ‘fascinado’ pela elocução de seu discurso e uma mulher ‘fascinada’ pela carta que escreve a um amigo. Sem essa retenção mais elementar da atenção numa determinada direção, nenhum bom trabalho, seja de que espécie for, poderá ser produzido.
Existem assim três categorias no gasto comum ou difusão de matéria fina. O fluxo exterior pode vagar de objeto em objeto, da visão para a audição e desta para o pensamento à medida que um ou outro fenômeno chame sua atenção. Novamente, o fluxo para o exterior pode ser atraído por algo que exerça forte impressão na atenção – uma pessoa da qual gostamos, outra que nos irrita, um livro interessante, um som agradável, etc. Ou, finalmente, por um simples esforço de atenção, o fluxo pode ser mantido por certo tempo numa direção desejada.
Como dissemos, esses diferentes modos nos quais a matéria fina é normalmente consumida representam diferentes aspectos da função particular em atividade – um aspecto puramente automático, um aspecto emocional ou um aspecto intencional. Além do mais, elas são características de três processos distintos e produzem três grupos de resultados diferentes.
Ao mesmo tempo, todos eles são mecânicos e sua principal característica é que sua atenção só é suficiente para tornar possível que a matéria fina que traz o estado de alerta aplique-se a uma coisa de cada vez. Este é o estado ordinário do homem. Ele pode dar-se conta somente de uma coisa por vez. Pode dar-se conta ou da pessoa com quem está falando ou de suas próprias palavras, pode estar atento à indisposição de alguém ou à dor em seu próprio corpo, pode dar-se conta de uma cena ou de seus próprios pensamentos. Mas, exceto em ocasiões muito raras, não pode estar atento simultaneamente a suas próprias palavras e à pessoa a quem as está dirigindo, à sua própria dor e à dor de alguma outra pessoa, a uma cena e a seus próprios pensamentos. Assim, todos os ‘dar-se conta’ do homem em seu estado ordinário podem ser classificados como ‘fascinação’, pois, dando-se conta de algum fenômeno exterior, perde o dar-se conta de si mesmo, ou dando-se conta de algo nele mesmo, perde o dar-se conta do mundo exterior – ou seja, torna-se ‘fascinado’ por algo interno ou externo, com exclusão de todo o resto.
Certamente, a experiência de todo homem contém casos de atenção dividida e, não fosse assim, não teríamos indício algum de como proceder. Uma das razões para o extraordinário poder que as sensações do amor e do sexo têm sobre os homens, por exemplo, é que, em determinadas circunstâncias, elas trazem um intenso estado de alerta de si mesmo e do outro ao mesmo tempo. Essa é uma verdadeira degustação do estado seguinte de consciência. Mas, se essa sensação chega a homens completamente despreparados, ela é acidental e está além de seu controle.
Uma das principais coisas ensinadas nas escolas do quarto caminho é a divisão intencional da atenção entre si mesmo e o mundo exterior. Mediante longa prática e constante exercício da vontade, a matéria fina do estado de alerta não é permissivamente fluída numa só direção, mas dividida, uma parte sendo retida em si mesmo enquanto a outra é dirigida ao exterior em direção ao que quer que se esteja estudando ou fazendo. Pela divisão da atenção, o estudante aprende a dar-se conta de si mesmo enquanto fala com outro, de si mesmo enquanto permanece em determinado cenário, de si mesmo agindo, sentindo ou pensando em relação ao mundo exterior. Desse modo, aprende a lembrar-se de si, primeiro por alguns momentos e, logo, com frequência crescente. E em proporção a seu aprendizado de lembrança de si, suas ações adquirem consistência e significação que eram impossíveis enquanto sua atenção movia-se unicamente de uma fascinação a outra.
A característica desse segundo estado, de lembrança de si, é a divisão da atenção. Existem várias coisas estranhas a respeito desse estado. Primeiro, por certas razões cósmicas, ninguém pode empreendê-la ou praticá-la até que lhe tenham falado dela ou explicado. Segundo, quando explicada, toda pessoa normal tem vontade e energia suficientes para captar um vislumbre momentâneo do que pode significar. Se ele deseja, pode, no momento em que ouve a respeito, tornar-se alerta de si mesmo e de seu meio ambiente, de si mesmo sentado numa cadeira lendo sobre uma nova idéia.
Mas essa lembrança de si não pode ser repetida ou mantida, exceto por esforço consciente, não pode acontecer por si mesma. Nunca se converte em hábito. E, no momento em que a idéia da lembrança de si ou da divisão da atenção é esquecida, todos os esforços, não importa o quanto sejam sinceros, degeneram-se mais uma vez em ‘fascinação’, isto é, no dar-se conta de uma coisa de cada vez.
Assim, é necessário assinalar que a estreita atenção colocada numa tarefa, o dar-se conta do corpo físico, o exercício mental de uma classe ou de outra, visões ou visualizações, mesmo dentro de emoções profundas, não constituem a lembrança de si. Tudo isso pode ser feito sem divisão de atenção, ou seja, podemos nos tornar ‘fascinados’ por uma tarefa, por um dar-se conta físico, por um exercício mental ou por uma emoção e, inevitavelmente, nos tornaremos fascinados no momento em que a atenção deixar de estar dividida entre o ator ou observador em nós mesmos e aquilo que observamos ou sobre o que atuamos.
Outra curiosa artimanha psicológica deve ser mencionada em conexão com o momento em que um homem escuta algo pela primeira vez a respeito da lembrança de si. Se ele a conecta com algo que já ouviu ou leu antes, com algum termo religioso, filosófico ou oriental com o qual já esteja familiarizado, a idéia imediatamente desaparece para ele, perde seu poder. Ela só pode abrir novas possibilidades para ele como uma idéia completamente nova. Se a conectarmos com alguma associação familiar, significa que ela ingressou na parte errada da mente, onde ficará arquivada como qualquer outro fragmento de conhecimento. Um choque foi desperdiçado e somente com grande dificuldade poderemos retornar à mesma oportunidade.
Quando um homem escuta algo pela primeira vez a respeito da lembrança de si, se o toma seriamente, todos os tipos de novas oportunidades imediatamente se abrem para ele. Não pode compreender como nunca pensou nisso antes. Sente que tem apenas que o fazer e todas as suas dúvidas, artificialismos e dificuldades desaparecerão e toda uma série de coisas se tornará possível e fácil para ele, as mesmas que antes considerava completamente fora de seu alcance. Sua vida toda será transformada.
Nesse sentimento, ele está tão certo quanto errado. Está bastante certo na crença de que, se ele pudesse lembrar de si mesmo, tudo seria diferente, tão diferente quanto ele imagina. Só que, a princípio, não vê a enorme resistência que há nele mesmo para dominar esse novo estado. Não percebe que, para alcançar a lembrança de si como um estado permanente ou mesmo para alcançar com frequência momentos recorrentes dela, ele deve reconstruir sua vida completamente. Essa tarefa exigirá uma grande parte da matéria fina que sua máquina pode poupar ou produzir, toda a vontade e atenção que pode desenvolver pelo exercício mais constante. Terá de lutar contra e abandonar eventualmente todas as formas psicopáticas de queimar sua matéria fina, a qual forma agora parte tão familiar e aparentemente necessária da sua vida – rancor, irritação, indignação, autopiedade, todos os tipos de medos, todas as espécies de sonhos, todas as formas pelas quais se hipnotiza no satisfazer-se com as coisas como elas são. Sobretudo, deve querer lembrar de si, constante e permanentemente, não importa quão doloroso e desconfortável possa ser fazê-lo nem quão desagradável possam ser as coisas que ele vê em si mesmo e nas outras pessoas. No momento em que ele cessa de querer lembrar de si, ele perde em algum nível e por certo tempo a possibilidade de fazê-lo.
Ainda que à primeira vista possa parecer extraordinariamente simples, fácil e óbvia, a lembrança de si ou a prática da divisão da atenção requer na realidade uma reconstrução completa da vida de alguém e de pontos de vista tanto em relação a si mesmo quanto em relação aos outros. Enquanto acreditarmos que podemos alterar a nós mesmos ou a outras pessoas, enquanto acreditarmos ter o poder de fazer, ou seja, de tornar as coisas diferentes do que são, seja interna ou externamente, o estado de lembrança de si parece retirar-se de nós quanto mais esforços façamos para alcançá-lo. O que a princípio parecia estar à mão começa a parecer infinitamente distante e impossível de alcançar.
E, ainda assim, muitos anos de conflitos e fracassos podem ser necessários antes que cheguemos a um fato psicológico curioso que, na realidade, está conectado a uma lei muito importante. Esse fato é que, embora seja extraordinariamente difícil dividir nossa atenção em dois, é muito mais possível que ela seja dividida em três: ainda que seja extraordinariamente difícil lembrar-se de si e do meio ambiente simultaneamente, pode ser muito mais possível lembrar-se de si e do meio ambiente que nos cerca na presença de algo mais.
Como vimos, nenhum fenômeno é produzido por duas forças: todo fenômeno e todo resultado real requer três forças. A prática da lembrança de si ou da divisão da atenção está conectada à tentativa de produzir um certo fenômeno: o nascimento da consciência em si mesmo. E, quando isso começa a acontecer, a atenção reconhece com alívio e alegria não dois, mas três fatores – o próprio organismo, sujeito do experimento, a situação na qual esse organismo está exposto no momento e algo permanente situado num nível superior a ambos e que, sozinho, pode resolver a relação entre os dois.
O que é esse terceiro fator que deve ser lembrado? Cada pessoa deve encontrá-lo por si mesma, assim como sua própria forma para ele – seja sua escola, seu professor, seu propósito, os princípios que aprendeu, o Sol, algum poder superior no universo ou Deus. Deve lembrar-se que ele e sua situação estão na presença de poderes superiores, estão ambos banhados pela influência celestial. Fascinado, ele está plenamente absorvido pela árvore que nota. Com a atenção dividida, vê tanto a árvore quanto a si mesmo olhando para ela. Lembrando de si, dá-se conta da árvore, de si mesmo e do Sol brilhando imparcialmente sobre ambos.
Falamos do mundo mineral, do mundo celular, do mundo molecular e do mundo eletrônico. A situação do homem, seus problemas, seu ambiente, dificuldades existentes no mundo material e celular – esta é a força passiva; a energia refinada de consciência dirigida por sua atenção existe no mundo molecular – esta é a força ativa. Aquela que pode resolver o eterno conflito entre esses dois mundos pode derivar-se somente de um mundo ainda mais elevado, o mundo do Sol, o mundo eletrônico. Como a luz do Sol, que une e interpenetra tudo, tanto criando quanto dissolvendo a individualidade, esse terceiro fator deve ser tal que, na lembrança dele, quem lembra está unido a seu meio ambiente, tanto adquire quanto perde a individualidade separada.
Se um homem puder descobrir esse terceiro fator, a lembrança de si torna-se possível para ele, podendo trazer-lhe muito mais do que indicou no início.
Assim, a lembrança de si sempre deverá conter três princípios, três coisas a serem lembradas. E, se uma delas está só e ocupada com alguma tarefa interna, é necessário então lembrar-se de três mundos em si mesmo, três lugares em si mesmo.
Por essa divisão da atenção em três, a matéria fina que é a condutora da força criativa do homem está dividida em três correntes – uma dirigida à ação direta no mundo exterior, outra dirigida no sentido de criar uma conexão com forças superiores e a outra retida em si mesmo. Aquela que é retida em si mesmo, ao longo do tempo seria cristalizada num veículo permanente de autoconsciência, ou seja, numa alma.
Ao mesmo tempo, deve ser lembrado que, onde quer que três forças atuem juntas, seis ordens e seis processos serão possíveis. Assim, pode haver uma lembrança de si para destruição, uma lembrança de si para cura e uma lembrança de si para crime. E, além dessas, a única e verdadeira lembrança de si: a lembrança de si para regeneração. Disso, concluímos que o homem deve priorizar aquelas forças ocultas e superiores e colocar a si mesmo e a sua alma passivamente a serviço delas, invocando como resultado aquela plenitude de vida e luz à qual apenas esse processo aspira.
Podemos tratar agora da relação entre consciência e memória.
A memória comum é um impulso que se move ao redor do círculo da vida do homem apenas na direção do tempo. Surge de um momento de grande conscientização; se não há consciência moral, nenhuma memória é criada. Memória é o traço potencial da lembrança de si. Aqui é possível uma analogia muito exata. Em relação à linha unidimensional da vida corpórea do homem, sua essência é bidimensional, conecta simultaneamente todos os pontos da linha, criando uma superfície. Em relação à superfície da essência do homem, a alma seria um sólido tridimensional, pois não apenas conectaria todos os diferentes pontos da sua vida e toda a superfície de sua essência, como também uniria estes a outras possibilidades e forças existentes em outra dimensão. Imaginemos que o círculo corpóreo do homem seja um fio, que a superfície conectiva de sua essência seja um disco metálico e a alma potencial seja um prisma sólido do qual a essência é como que uma seção isolada. O fenômeno da consciência será agora exatamente análogo ao calor.
Nossa sensação usual do viver é como se fosse um ponto de rápido calor que avançasse ao redor do círculo. Mas imaginemos um momento de consciência, digamos, aos quinze anos de idade. Nesse ponto, o fio esquenta. Impulsos de calor correm ao longo do fio em ambas as direções a partir desse ponto. Mas, naturalmente, para uma percepção que se move adiante, ao largo do fio a partir do ponto em questão, como estamos acostumados a nos mover no tempo, sempre lhe parecerá que procedem de trás, ou seja, do passado. A condução do calor ou memória para trás, isto é, em direção a uma idade mais precoce, nos será desconhecida por causa do nosso método de percepção. E, novamente, quanto mais nos distanciarmos do momento de consciência, do ponto aquecido, mais fracos parecerão os impulsos. A memória, como todos sabemos, vai-se desvanecendo gradualmente.
Ao mesmo tempo, ainda que a memória dos momentos de consciência apresente uma tendência a desaparecer, é importante compreender que esse desvanecimento não é consequência da passagem do tempo. Nossa principal ilusão sobre a memória é que ela declina com o tempo, como as roupas ou os edifícios. Não é assim. Ela declina pela falta de nutrição. Memória é gerada por consciência moral e deve ser nutrida por consciência moral, isto é, deve ser nutrida conscientemente.
Na verdade, memória é um fenômeno que não está sujeito às leis do tempo. O homem que realmente começa a compreender isso encontrará novos mundos abrindo-se perante ele e verá praticamente como entrar e possuir tais mundos.
Examinemos primeiro como a memória é perdida e então como pode ser cultivada e trazida à vida.
Como dissemos, a razão mais frequente para a perda de memória é unicamente negligência e inanição. O homem comum, em circunstâncias comuns, não faz esforços de nenhuma espécie para manter as memórias vivas, alimentá-las, recordá-las e prestar atenção nelas. A menos que sejam tão agradáveis ou dolorosas que a própria emoção as retenha em sua consciência, elas desaparecem naturalmente. Esta é a perda passiva de memória.
Mas há também uma destruição ativa da memória. Acha-se na substituição da memória pela imaginação ou, mais simplesmente, pela mentira. Dou, por exemplo, um passeio pela rua onde encontro um conhecido. A princípio, o encontro pode ser bastante claro em minha mente – o que eu disse, o que ele disse, como ele parecia e assim por diante. Mas, quando chego em casa, recapitulo o incidente para minha família. Ao fazê-lo, torno o incidente todo mais divertido e dramático do que realmente foi – faço minhas próprias observações mais engenhosas e as dele mais estúpidas, sugiro algo acerca de seus hábitos, talvez introduzindo outro caráter, ou adapto a conversa de modo a poder inserir uma piada que ouvi ontem. Depois não recordarei mais do fato como realmente foi, mas somente como o recontei. A imaginação e a mentira destruíram a memória.
E, se passo toda minha vida desse modo, certamente após alguns anos será totalmente impossível para mim, distinguir o que realmente me aconteceu do que eu queria que tivesse me acontecido ou temesse que pudesse me acontecer. Ou ainda do que aconteceu a outros ou que eu meramente tenha lido a respeito. Dessa forma, a memória é ativamente destruída. A diferença está no fato de que, enquanto a memória que se perde por negligência ainda permanece intacta, embora enterrada, e, com duros esforços, possa ser recuperada, a memória destruída por mentira é danificada para sempre, quando não absolutamente aniquilada.
Da mesma maneira que a plena circulação do sangue pelo corpo é necessária à saúde física e ao crescimento, assim também a plena circulação de memória através do longo corpo da vida do homem é necessária à saúde e ao crescimento da essência. Onde a circulação de sangue falta, onde órgãos são bloqueados ou obstruídos de seu fluxo, a enfermidade inevitavelmente se abate. Assim também ocorre na sequência temporal da vida. Aqueles anos, meses, incidentes ou relacionamentos que não desejamos recordar começam a ulcerar-se por falta de compreensão. Um bloqueio se forma, um ‘complexo’ se desenvolve e, sem nosso conhecimento do que está acontecendo, o presente torna-se intoxicado por aquilo que não queremos lembrar.
Vários sistemas psicológicos modernos reconheceram essa conexão entre a livre circulação da memória e a saúde psíquica. Alguns na verdade sustentaram que o fluxo de memória pode ser reportado até mesmo ao período anterior ao nascimento. Pacientes sob hipnose pareciam descrever as sensações do embrião no útero. Um deles, entrevistado pelo Dr. Denys Kelsey, falou até de um estado anterior a esse: “Estava escuro, ainda que repleto de cores de indescritível beleza, havia silêncio completo, ainda que o lugar estivesse preenchido de música celestial, havia quietude, ainda que tudo estivesse vibrando.”
Enquanto isso, o que tem sido negligenciado por tais sistemas é que a perda da memória não pode ser corrigida por qualquer método mecânico ou tratamento, a não ser conscientemente, por vontade e compreensão.
Imaginação, lembrança de si e memória implicam trabalho consciente no futuro, presente e passado, respectivamente.
Como então as memórias podem ser reanimadas e utilizadas? Apenas lhes devolvendo a vida intencional e conscientemente. Suponhamos que eu tenha uma razão particular para querer recordar um encontro com algumas pessoas – parece-me que cometi um erro em relação a elas ou deixei de aproveitar alguma oportunidade que me ofereciam e é muito importante que eu corrija isso. Cuidadosamente, com atenção, começo a desenrolar minha memória. Lembro-me de bater à porta do apartamento em que estavam, sinto que me abrem a porta, vejo-me entrando e sentando. Lembro-me da posição em que estavam sentadas, das cadeiras, dos móveis, dos quadros nas paredes e de como a luz caía sobre a cena vinda da janela. Logo lembro do que disse, da minha voz, de como me senti, de como as outras pessoas reagiram, do que disseram e assim por diante. Gradualmente, se mantenho minha atenção, todos os meus diferentes sentidos – de visão, sons, tato e humor – começarão a contribuir com suas distintas memórias e, pouco a pouco, a cena recuperará seu vigor em meu interior exatamente como foi. De uma vez, meu erro também reordena-se. Vejo-o claramente: tornou-se consciente.
Que eu possa ou não endireitar as coisas no presente ou aproveitar a oportunidade que perdi, são diferentes questões. Tal correção pode precisar de muito pouco tempo e pode até nem ser possível nesta vida. Mas o principal é que a consciência moral foi reportada ao passado. Sou mais consciente agora em relação ao incidente do que o era quando ele efetivamente ocorreu. Nesse sentido, por memória intencional, momentos adicionais de consciência moral podem sempre ser adicionados àqueles que ocorreram naturalmente na sequência do tempo. E, para esse processo de tornar o passado mais consciente, não há limite.
Se esses pontos de aumento de consciência no círculo da vida são multiplicados suficientemente, podemos imaginar que seria gerado calor bastante para afetar a essência do homem e, com o tempo, até mesmo o sólido de sua alma, embora a tarefa de aquecer algo de maiores dimensões a partir de alguma coisa menor – um disco a partir de um fio ou a essência a partir da personalidade, por exemplo – deva ser algo certamente imenso. A exemplo disso, se o calor tivesse de ser transferido da superfície da essência para o sólido da alma, a mesma desproporção seria aparente.
De fato, tal método de aquecimento é manifestamente pouco prático. E, da mesma forma, a idéia de criar consciência na alma exclusivamente a partir de baixo, por assim dizer, vai contra toda a crença e experiência humanas. Temos de supor que seus esforços por se tornar consciente podem mais cedo ou mais tarde levar o homem ao contato com uma fonte de calor ou consciência moral acima dele. A fonte de consciência deve ser considerada a favor de um mundo de mais dimensões.
Num sentido prático, na verdade, é claro que, mesmo a idéia de consciência penetrando profundamente dentro da essência de um homem fará com que ele procure por homens mais conscientes que ele e por ‘escolas’ dirigidas por tais homens. Portanto, seu interesse especial atuará magneticamente como que o atraindo para aqueles em cuja presença ele possa realmente adquirir mais consciência. E, se for um interesse verdadeiramente essencial, não lhe dará descanso até que os encontre.
Além disso, se um homem começa realmente a adquirir os rudimentos de um princípio permanente de consciência ou alma, é certo que essa alma, em virtude de sua penetração dentro de outra dimensão, pode conectá-lo a algum nível de universo em que a energia cósmica criativa seja ilimitada, podendo ser empregada para intensificar a consciência até o limite da resistência. Voltando à nossa explicação anterior, podemos supor que a alma pode relacionar diretamente um homem de matéria em estado molecular ao mundo infinito da energia molecular.
Então, na busca da consciência, precisa-se primeiro compreender que o homem deve fazer tudo por si mesmo – isto é, ele deve penetrar em outro nível somente por seus próprios esforços – e, segundo, que ele não pode fazer nada por si mesmo – ou seja, todo seu empenho deve ser contatar fontes e níveis de energia superiores, pois, a menos que tenha êxito ao fazê-lo, não poderia e nem pode conseguir nada.
Em todo caso, agora é possível começar a apreciar o efeito dos diferentes níveis ou graus de consciência moral. Momentos de consciência moral no círculo da vida corpórea produzirão memórias intensas para os outros momentos da vida e deveriam teoricamente produzir impulsos que retrocedessem em direção ao nascimento. Pudessem, todavia, os efeitos da consciência moral começar a penetrar a essência, mudanças muito maiores teriam lugar. Muito embora um fio perca calor quase que instantaneamente, um disco pode reter calor por um tempo muito maior. Em lugar de ser momentânea, como deve ser no círculo da existência corpórea, a consciência que penetrou na essência já tem certa duração, certa garantia. Não pode ser perdida subitamente. Além do mais, irradiará calor em todas as direções, aquecendo o entrelaçamento de círculos paralelos e cruzados da inter-relação de vidas humanas que, sabemos, estão tecidos numa massa sólida e inextricável. Assim, o contato ou presença de um homem com tal essência pode realmente aumentar a perspicácia daqueles que chegam dentro de sua esfera de radiação ou influência.
Pudesse o sólido interno tornar-se quente, isto é, tivesse um homem criado nele uma alma consciente a partir do material de conscientização acumulado, uma mudança enorme teria resultado. Em primeiro lugar, um sólido aquecido pode na verdade reter calor por um tempo muito maior. Para tal homem, a consciência moral se terá tornado permanente, o fogo central de seu ser. Mais ainda, irradiar-se-á sobre uma área extensivamente maior, talvez cem vezes maior que aquela aquecida só pela irradiação da essência.
Temos assim uma base para classificar os homens de acordo com seu grau de consciência moral. Primeiro há a enorme massa de homens comuns nos quais a consciência, se realmente existe, ocorre apenas momentaneamente e por acidente no curso da vida corpórea. Segundo, existem aqueles para quem a idéia de consciência penetrou na essência e assim adquiriu duração e confiabilidade. E, finalmente, existe um punhado de homens espalhados pela história e pelo mundo que criaram almas conscientes para si mesmos e para quem a autoconsciência é permanente e por cujo intermédio têm o poder de influenciar milhares ou mesmo milhões de homens.
Finalmente, e invisivelmente, podem existir homens de espírito consciente.
A verdadeira história da humanidade é a história da influência desses homens conscientes.