sexta-feira, 30 de abril de 2010

Adi Shankaracharya - Vivekachudamani (seleção de alguns versos)


* O resultado do conhecimento deveria ser o afastamento das coisas irreais, ao passo que o apego a essas coisas é o resultado da ignorância. Isso é observado no caso de alguém que conhece a idéia de miragem e coisas assim, e alguém que não conhece. Se não for assim, que outro resultado tangível os conhecedores de Brahman obtêm?
* Se o nó da ignorância do coração é totalmente destruído, que causa natural pode haver para induzir um homem a ações egoístas, uma vez que ele é avesso aos prazeres dos sentidos?
* Quando os objetos dos sentidos não estimulam mais desejos, esse é o auge do desapego. A extrema perfeição do conhecimento é a ausência de qualquer impulso de idéia egoísta. E o limite da auto-revogação é atingido quando as funções da mente, que foram diluídas, não aparecem mais.
* Esse tipo de função mental que reconhece apenas a identidade do Ser com Brahman, purificada de todos os adjuntos, e que está livre da dualidade e que se preocupa apenas com Pura Inteligência, é chamada de iluminação. Aquele que tem isso perfeitamente estabilizado é chamado de um homem de iluminação constante.
* Conhecendo o seu próprio Ser indivisível através de sua própria realização e, assim, tornando-se perfeito, o homem deveria ficar cara a cara com o Atman, com sua mente livre de idéias dualistas.
* O veredito de todas as discussões sobre o Vedanta é que o Jiva (consciência individual) e todo o universo não são nada além de Brahman, e que a Liberação significa residir em Brahman, a Entidade indivisível. Enquanto que as própria escrituras (shrutis) são autoridade para declarar que Brahman é um sem um segundo.
* Realizando, num momento abençoado, a Verdade Suprema através das instruções do Guru, da autoridade das Escrituras e de sua própria razão, com os seus sentidos apaziguados e sua mente concentrada, o discípulo tornou-se imóvel na forma e perfeitamente estabelecido no Atman.
* Ao concentrar a mente por algum tempo no Supremo Brahman, ele levantou-se, e da Graça Suprema ele falou o que se segue:
Minha mente desapareceu, e todas as suas atividades derreteram-se pela realização da identidade do Ser e Brahman, eu não sei nem isto nem aquilo, nem o que ou quanto é a graça sem limites de Samadhi!
A majestade do oceano do Supremo Brahman, repleta com as ondas do néctar de Bem–aventurança do Ser, é impossível de ser expressa em palavras e nem mesmo pode ser concebida pela mente - em uma fração infinitesimal da qual minha mente derreteu-se como um granizo fundindo-se com o oceano, agora está satisfeita com a Essência do Êxtase.
Para onde foi o universo? Quem o removeu? Onde ele diluiu-se? Agora mesmo ele era visto por mim. Ele deixou de existir? Isso é extremamente estranho!
No oceano de Brahman preenchido com o néctar da beatitude absoluta, o que deve ser evitado e o que deve ser aceitado? O que é diferente do Ser?
Eu não vejo, nem ouço e nem sei a respeito de nada nesse sentido. Eu simplesmente existo como o Ser, a bem-aventurança eterna, distinto de todo o resto.
É o Upadhi (o atributo sobreposto) que vem, e é só isso que vai; ele, mais uma vez, realiza ações e experimenta seus frutos, somente ele se deteriora e morre, enquanto eu sempre permaneço firme como o monte Kula.
Para mim, que sou sempre o mesmo e desprovido de partes, não existe nem o empreender um trabalho, nem o seu cessar. Como pode aquele que é Um, concentrado, sem interrupção e infinito como o céu, jamais se esforçar?
Como pode haver méritos e deméritos para mim, que sou sem órgãos, sem mente, imutável e sem forma - que sou a realização da bem-aventurança absoluta? O Shruti também menciona isso na passagem "O Intocado".
Se acontece de o calor ou o frio, o bem ou o mal, tocarem a sombra do corpo de um homem, isso não afeta em nada o próprio homem, o qual é diferente da sombra.
As propriedades das coisas observadas não afetam a Testemunha (imutável e indiferente), que é diferente delas, como as propriedades de um quarto não afetam a lâmpada que o ilumina.
Assim como o sol é uma mera testemunha das ações dos homens, como o fogo queima tudo sem distinção, também sou eu, o Ser imutável, a Inteligência Absoluta.
* Oh nobre alma! Passa o teu tempo contemplando o Ser apenas em todas as circunstâncias, pensando no Ser, o Um sem um segundo, e desfrutando a bem-aventurança do Ser.
* Concepções dualistas no Atman, o Conhecimento Infinito, o Absoluto, são como imaginar castelos no ar. Portanto, identifica-te sempre com a Bem-aventurança Absoluta, o Um sem um segundo, e, atingindo assim a Paz Suprema, permanece em silêncio.
* Para o sábio que realizou Brahman, a mente, que é a causa de fantasias irreais, torna-se perfeitamente tranqüila. Esse é verdadeiramente o seu estado de quietude, no qual, identificado com Brahman, o Um sem um segundo, ele desfruta constantemente da Bem-aventurança Absoluta.
* Para o homem que realizou sua própria natureza, e bebe a Bem-aventurança concentrada do Ser, não há nada mais emocionante do que a quietude que vem de um estado de ausência de desejos.
* O que na verdade pode manifestar Aquele cujo brilho, como o sol, é a causa de todo o universo -insubstancial, irreal e insignificante - a aparecer?
* O que, de fato, pode iluminar o Sujeito Eterno através do qual os Vedas, os Puranas e as outros Escrituras, assim como todos os seres, são dotados de um sentido?
* Aqui, o auto-resplandescente Atman de infinito poder - além dessa cadeia de conhecimento condicionado e apesar da experiência comum de todos - está percebendo que apenas este incomparável conhecedor de Brahman vive sua vida gloriosa, livre da servidão.
* Através da destruição das limitações, o conhecedor perfeito de Brahman funde-se no Brahman Uno sem um segundo – o Qual ele tem sido o tempo todo - torna-se totalmente livre mesmo enquanto vivo, e alcança o objetivo de sua vida.
* A destruição do corpo, dos órgãos, dos Pranas e do Buddhi (intelecto) é como a de uma folha, uma flor ou fruto em relação a uma árvore. Ela não afeta o Atman, a Realidade, a personificação da bem-aventurança - que é nossa verdadeira natureza. Isso sobrevive, assim como a árvore.
* A passagem do Shruti: "Certamente esse Atman é imortal, meu querido”, menciona a imortalidade do Atman no meio de coisas perecíveis e sujeitas a alteração.
* Assim como quando um vaso é quebrado, o espaço que estava contido nele claramente torna-se o espaço ilimitado, assim também quando as limitações aparentes são destruídas, o conhecedor de Brahman, certamente torna-se o próprio Brahman.
* Assim como o leite derramado no leite, o óleo no óleo e a água na água, tornam-se unidos e um com eles, também o sábio que realizou o Atman torna-se um no Atman.
* Pode-se falar de aprisionamento e Liberação quando há a presença ou a ausência de um véu que encobre. Mas não pode haver nenhum véu cobrindo a Brahman, que está sempre descoberto por falta de uma segunda coisa além de si mesmo. Se existisse, a não-dualidade de Brahman seria contrariada, e os Shrutis jamais podem tolerar a dualidade.
* O aprisionamento e a libertação são atributos do Buddhi com o qual as pessoas ignorantes falsamente encobrem a Realidade, assim como o movimento do encobrir do sol por uma nuvem é transferido para o sol. Pois esse Brahman imutável é o Conhecimento Absoluto, o Um sem um segundo e desapegado.

terça-feira, 27 de abril de 2010

Philokalia - São Simeão O Novo Teólogo - Preceitos Práticos e Teológicos

Aumentar o conhecimento de Deus diminui o conhecimento de todo o resto. Em outras palavras, quanto mais um homem conhece a Deus menos ele conhece de outros assuntos. E não apenas isso, mas ele começa também a perceber cada vez mais claramente que nem mesmo Deus ele conhece. Quanto mais radiante Deus brilha no espírito do homem, mais Ele se torna invisível e quanto mais os sentidos de um homem elevam-se acima dos sentidos, menos ele pode sentir o que é externo. Mas como podemos chamar de "sentido” um sentido que não sabe onde ele mesmo reside - nem onde está e o que ele mesmo é - e que é completamente incapaz de descobrir ou entender isso? E, de fato, como podem os sentidos conhecerem o que o olho não viu, nem o ouvido escutou e o que nunca entrou no coração do homem?
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Aquele Que nos dá o que está acima dos sentidos, também nos dota, através da Graça do Espirito Santo, com outro sentido que está acima dos sentidos, para que possamos apreender de maneira clara e pura Suas dádivas e bênçãos, as quais estão acima dos sentidos.
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Um homem que é surdo à Palavra de Deus é inteiramente surdo à Sua voz; e por sua vez, um homem que escuta as Palavras de Deus é capaz de ouvir qualquer palavra de Deus. Tal homem não escuta ninguém exceto àqueles que falam (ensinam) através da graça da Palavra, e não é a voz deles que ele escuta, mas apenas as palavras que suas vozes proferem em silêncio.
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Quando você estiver por baixo – em coisas mundanas, não investigue o que está no alto – as coisas divinas; e ao ascender ao alto não fique curioso a respeito das coisas que estão embaixo antes que você tenha alcançado o cume, caso contrário você irá escorregar e cair, ou pelo menos, para que você não fique embaixo imaginando que está subindo.
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Um homem enriquecido pelo tesouro celestial, - isto é, pelo advento de Cristo, o Qual faz nele a Sua morada, como Ele diz: “Meu Pai o amará e a ele viremos e nele estabeleceremos morada” (João xiv.23) - sabe em sua alma (através da experiência, da consciência e do sentimento), que alegria ele recebeu e que grande tesouro ele possui na tesouraria real de seu coração. Falando com Deus como de amigo para amigo, ele permanece audaciosamente na presença Daquele que habita dentro dele numa luz inacessível.
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Abençoado é o homem que acredita no que eu falei. Três vezes abençoado é aquele que luta através de santos trabalhos para ganhar esse conhecimento (para saber por experiência). Um homem que, através da ação e da contemplação, atingiu o auge de tal estado e alcançou Deus como um filho, é, para não dizer mais, um anjo.
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Uma pessoa à beira-mar vê uma imensa extensão de água, mas seus olhos conseguem abarcar apenas uma pequena parte e não podem alcançar seu limite. Da mesma maneira um homem que, através da contemplação, é concedido a ver o oceano sem limites da glória Divina e ver Deus com os olhos de sua mente, vê a Deus e a vastidão infinita de Sua glória, embora não veja o todo como ele realmente é, mas apenas o quanto é possível para ele ver.
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Um homem à beira-mar não apenas vê o mar mas também pode caminhar até ele quantas vezes quiser, também é assim com os homens que alcançaram a perfeição espiritual: eles também podem entrar na luz Divina quando desejarem, contemplando-a e participando dela conscientemente na proporção de seus trabalhos, de seus esforços e das aspirações de seu desejo.
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Enquanto um homem à beira-mar está em terra firme, ele vê ao seu redor e alcança com seus olhos a extensão do mar. Mas se ele começa a avançar para as águas e a mergulhar nelas, quanto mais fundo ele entra menos ele vê o que está fora. É assim com os participantes da luz Divina: quanto maior o conhecimento de Deus eles alcancem, de maneira correspondente, maior se torna sua ausência de conhecimento (de tudo externo a Deus).
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Um homem que entra no mar até seus joelhos ou até sua cintura pode claramente ver tudo fora da água, mas quando ele vai para as profundezas e fica submerso, não pode mais ver as coisas no exterior e sabe apenas uma coisa, que ele todo está na água. O mesmo acontece com aqueles cuja conquista espiritual aumenta e que ascendem em direção à visão perfeita e à contemplação.
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Homens aproximando-se da perfeição, que vêem apenas parcialmente a infinitude (das coisas espirituais) e estão cientes do caráter incompreensível daquilo que vêem, são preenchidos de maravilhamento e reverência. Mas quanto mais eles misteriosamente entram na luz do conhecimento, mais eles ficam cientes de suas próprias fraquezas. O que aparece para eles um tanto escuro, como num espelho de adivinhação, ilumina apenas parcialmente a mente assim ocupada. Mas quando deseja revelar-se numa luz mais plena e se une, através da participação, com o homem, ela ilumina levando-o completamente para dentro de si mesmo, de modo que ele todo fica nas profundezas do Espírito como nas profundezas de um mar de luz imensurável, então, o homem é inefavelmente mergulhado numa total ausência de conhecimento como alguém que ascendeu a um lugar onde tudo está além do conhecimento.
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Nossa mente é pura e simples, assim, quando é livrada de todos os pensamentos alheios, ela entra na pura e simples luz Divina e torna-se totalmente contida nela e encoberta por ela, não pode encontrar mais nada ali para movê-la para o pensamento de qualquer outra coisa, residindo dentro da luz Divina e não olhando para fora. Isso é mostrado pelo dito: Deus é luz – a luz mais elevada. Desse modo quando o que foi descrito ocorre, é seguido por uma quietude que contempla tudo.
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A mente móvel torna-se imóvel e sem pensamentos quando ela é inteiramente englobada pela luz e nuvem Divinas, ao mesmo tempo permanecendo em contemplação e apreensão conscientes, alimentando-se das bênçãos que a circundam. As profundezas do Espírito Santo não são como as profundezas do mar, elas são as águas vivificantes da vida eterna. Tudo nessas profundezas do Espírito Santo está além da compreensão e explicação. A mente entra lá dentro após abandonar todas as coisas visíveis e mentais, vira-se e move-se sem movimento por entre aquelas coisas incompreensíveis, vivendo uma vida mais que vida, sendo uma luz mesmo estando dentro da luz, contudo sem luz quando em si mesma. Então, ela vê não a si mesma mas Aquele, o Qual está acima dela, e, sendo transformada pela glória que a circunda, perde todo conhecimento de si mesma.
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Um homem que atingiu o último grau de perfeição está morto e ainda não morreu, mas é infinitamente mais vivo em Deus com Quem ele vive pois ele não mais vive sozinho, como diz o Apóstolo: “Eu vivo; contudo não eu, mas Cristo vive em mim” (Gal. ii.20). Ele também é cego e ainda não está cego: ele não vê com seus olhos naturais, pois ele está acima de todas as visões naturais, recebendo olhos novos, infinitamente melhores que seus olhos naturais e através deles ele olha sobre a natureza. Ele fica inativo e em repouso, como aquele que chegou ao fim de todas as ações de sua autoria. Ele está sem pensamentos, uma vez que tornou-se um com Aquele que está além de todo pensamento e veio repousar onde o movimento da mente, isto é, movimento de recordação, pensamento ou reflexão, não pode ter lugar. Ele não pode nem conhecer nem entender o incompreensível e o milagroso; ainda assim ele encontra repouso perfeito ali através dessa quietude abençoada dos sentidos; sem objeções, ele desfruta de bênçãos inefáveis, mas com certeza também de uma apreensão definida.
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Um homem ao qual não foi garantida tal medida de perfeição e não atingiu tais bênçãos, deveria culpar a si mesmo apenas, e não dizer em auto-justificação que tal coisa é impossível, e nem que é possível obtermos a perfeição, mas uma perfeição da qual não estamos cientes. Ele deveria saber a partir do testemunho das Escrituras Sagradas que tal coisa é possível, que isso realmente acontece em sua força total e é acompanhado de perfeita ciência e consciência, mas que, através da negligência e da transgressão dos mandamentos de Deus, todo homem priva-se dessas bênçãos de acordo com o grau de sua negligência.
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No princípio Deus criou dois mundos, o visível e o invisível, e fez um rei para reinar sobre o visível que carrega em si mesmo os traços característicos de ambos os mundos – um em sua metade visível e o outro na sua metade invisível – em sua alma e em seu corpo. Dois sóis brilham nesses mundos, um visível e o outro intelectual. No mundo visível dos sentidos há o sol, e no mundo invisível do intelecto há Deus, o Qual é chamado de, e é o Sol da Verdade. O mundo físico e todas as coisas nele são iluminados pelo sol físico e visível, mas o mundo do intelecto e aqueles que estão nele são iluminados pelo Sol da Verdade no intelecto.

segunda-feira, 26 de abril de 2010

Kabir - Dois Poemas


 Enfim as notas de sua flauta adentram, 
e eu não consigo parar de dançar em torno do salão ...
 As flores se abrem, mesmo ainda não sendo primavera, 
as abelhas já sabem disso.
 O ar sobre o oceano fica agitado.
Há um relâmpago, mares revoltos erguem-se em meu peito.
 A chuva cai lá fora;
e dentro anseio pelo Convidado,
 Algo dentro de mim chegou ao lugar
onde o mundo está respirando.
 As bandeiras que não podemos ver estão flamulando ali.
 Kabir diz: meu corpo-desejo está morrendo, e ele vive!
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O Convidado está dentro de você e também dentro de mim;
você sabe que o botão está escondido dentro da semente.
Estamos todos lutando; nenhum de nós tem ido longe. 
Deixe sua arrogância ir e olhe ao redor internamente.
 
 O céu azul expande-se cada vez mais,
a diária sensação de falha vai embora,
os danos que tenho causado a mim mesmo se desvanecem,
milhões de sóis avançam com a luz
quando sento-me firmemente naquele mundo.
 
 Ouço sinos que ninguém tocou, badalando.
Dentro do “amor” há mais alegria do que supomos.
A chuva cai, embora o céu esteja límpido e sem nuvens.
Há rios inteiros de Luz.
O universo projeta-se por todas as partes através de um único tipo de amor.
Como é difícil sentir aquela alegria em todos os nossos quatro corpos!
 
Aqueles que esperam ser racionais a esse respeito, falham.
A arrogância da razão nos separou desse amor.
Mesmo com a palavra “razão” você já se sente a milhas de distância.
 
Que sortudo é o Kabir, que rodeado por toda essa alegria
canta dentro de seu próprio barquinho.
Os poemas dele dizem respeito a uma alma encontrando a outra.
Esses cantos são sobre esquecer a morte e a perda.
Eles se elevam acima de ambos, entrando e saindo.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Bhagavan Ramana Maharshi - Trechos de Discursos em fevereiro de 1937



Pergunta: O que é o estado Turiya?
Bhagavan: Existem apenas três estados, vigília, sonho e sono. Turiya não é um quarto estado, ele é o que sublinha esses três. Mas as pessoas não o compreendem de imediato. Por isso, é dito que esse é o quarto estado e é a única Realidade. Na verdade ele não está à parte de tudo, pois forma o substrato de todos os acontecimentos, ele é a única verdade e é o seu próprio Ser. Os três estados aparecem como fenômenos fugazes sobre ele e depois se afundam para dentro dele. Portanto, eles são irreais. As imagens em um cinema são apenas sombras passando sobre a tela. Elas tem seu aparecimento, movem-se para frente e para trás, mudam de uma para outra, dessa forma são irreais, enquanto que a tela o tempo todo mantém-se inalterada. Da mesma forma, numa pintura: as imagens são irreais e a tela é real. Assim também é conosco: o mundo dos fenômenos, dentro ou fora, é apenas um fenômeno passageiro e não é independente de nosso Ser. Somente o hábito de olhar para eles como sendo reais e localizados fora de nós é que é responsável por deixar escondido o nosso verdadeiro Ser e aparente todo o restante. A única Realidade sempre presente, o Ser, ao ser encontrado, fará todas as outras coisas irreais desaparecerem, deixando como resíduo o conhecimento de que elas não são nada além do Ser. Turiya é apenas um outro nome para o Ser. Cientes dos estados de vigília, sonho e sono, continuamos inconscientes do nosso próprio Ser. No entanto, o Ser está aqui e agora, é a única Realidade. Não há nada mais. Enquanto dura a identificação com o corpo o mundo parece estar fora de nós. Apenas realize o Ser e ele não estará mais fora.
P: Eu consigo entender a unidade na variedade, mas não consigo percebê-la.
B: Porque você está na variedade você diz que entende a unidade, que tem flashes da realidade, que se lembra dela, etc., você considera esta variedade como sendo real. Por outro lado, a Unidade é a realidade e a variedade é falsa. A variedade deve ir antes que a unidade se revele, antes que se revele a sua realidade. Ela é sempre Real. Ela não envia flashes de seu ser nesta variedade falsa. Pelo contrário, esta variedade obstrui a verdade.
P: A graça é necessária para a remoção da ignorância.
B: Com certeza. Mas a Graça está o tempo todo aí. A Graça é o Ser. Não é algo a ser adquirido. Tudo o que é necessário é conhecer sua existência. Por exemplo, o sol é só brilho. Ele não vê escuridão. Ao passo que as pessoas falam da escuridão fugindo do sol enquanto ele se aproxima. Da mesma forma, a ignorância também é um fantasma e não é real. Devido à sua irrealidade, ao descobrirmos sua natureza irreal, se diz que ela foi removida. Novamente, o sol está lá e também está brilhando. Você está rodeado pela luz solar. Ainda assim, para você conhecer o sol você tem de voltar seus olhos na direção dele e olhar para ele. Da mesma forma, a Graça só é encontrada através de práticas, embora esteja aqui e agora.
P: Espero eu, que pelo constante desejo de me render, uma Graça crescente seja experimentada.
B: Renda-se de uma vez por todas e acabe com os desejos. Enquanto o senso de ser o fazedor é mantido existem os desejos; isso também é a personalidade. Se isso for embora o Ser será descoberto brilhando de maneira pura. A sensação de ser o fazedor é aprisionamento, e não as próprias ações. "Aquietai-vos e sabeis que Eu sou Deus." Aqui, quietude é a rendição total, sem nenhum vestígio de individualidade. A quietude prevalecerá e não haverá agitação da mente. A agitação da mente é a causa do desejo, do sentimento de ser o fazedor e da personalidade. Se ela é interrompida, há serenidade. Desse modo, "Saber" significa "Ser". E não é um conhecimento relativo envolvendo a tríade - conhecimento, sujeito e objeto.
P: Após o retorno da consciência-corpo ...
B: O que é a consciência-corpo? Diga-nos isso primeiro. Quem é você à parte da consciência? O corpo é encontrado porque há a consciência-corpo que surge da "consciência-eu", que novamente surge da Consciência. Consciência → 'consciência-eu' → consciência-corpo → corpo. Há sempre a consciência e nada mais que isso. O que você está agora considerando ser a consciência-corpo deve-se à sobreposição. Se houvesse somente a consciência e nada além dela, o significado da Escritura 'Atmanastu kamaya bhavati priyam sarvam' - (Todos são queridos por causa do amor do Ser) se tornaria claro.

sábado, 17 de abril de 2010

Nisargadatta Maharaj - Conhece-te a Ti mesmo



Pergunta: Qual é o seu estado no momento presente?
Maharaj: Um estado de não-experiência. Nele, todas as experiências estão incluídas.
P: Você pode entrar na mente e no coração de outro homem e partilhar das experiências dele?
M: Não. Essas coisas requerem treinamento especial. Eu sou como um negociante de trigo. Sei pouco sobre pães e bolos. Mesmo o gosto de um mingau de trigo eu não conheço. Mas sobre o grão de trigo eu sei tudo e conheço muito bem. Eu conheço a fonte de toda a experiência. Mas as inúmeras formas particulares que a experiência pode assumir eu não conheço. Nem preciso conhecer. De momento a momento o pouco que preciso saber para viver a minha vida, de alguma forma eu venho a saber.
P: Sua existência particular e a minha existência particular existem na mente de Brahma?
M: O universal não tem conhecimento do particular. A existência como uma pessoa é uma questão pessoal. Uma pessoa existe no tempo e no espaço, tem nome e forma, começo e fim, o universal inclui todas as pessoas e o absoluto é a raiz de tudo e está além de tudo.
P: Eu não estou preocupado com a totalidade. Minha consciência pessoal e a sua consciência pessoal - qual é o elo entre as duas?
M: Qual pode ser o elo entre dois sonhadores?
P: Eles podem sonhar um com o outro.
M: Isso é o que as pessoas estão fazendo. Todo mundo imagina os “outros” e busca uma ligação com eles. O buscador é o elo, não há nenhum outro.

P: Certamente deve haver algo em comum entre os muitos pontos de consciência que nós somos.
M: Onde estão os muitos pontos? Em sua mente. Você insiste que seu mundo é independente da sua mente. Como pode ser? Seu desejo de conhecer a mente das outras pessoas é devido a você não conhecer a sua própria. Primeiro conheça sua própria mente e você verá que a questão das outras mentes não surgirá de modo algum, pois não há outras pessoas. Você é o fator comum, a única ligação entre as mentes. Existência é consciência, o "eu sou" se aplica a todos.
P: A Realidade Suprema (Parabrahman) pode estar presente em todos nós. Mas de quê ela serve para nós?
M: Você é como um homem que diz: "Eu preciso de um lugar onde guardar minhas coisas, mas de quê serve o espaço para mim? Ou “eu preciso de leite, chá, café ou refrigerante, mas de água eu não tenho nenhuma necessidade”. Você não vê que a Suprema Realidade é o que torna tudo possível? Mas se você perguntar de que ela serve para você, eu devo responder: 'De nada'. Em questões da vida diária o conhecedor do real não tem nenhuma vantagem: ao invés disso, ele talvez tenha desvantagens, estando livre da ganância e do medo, ele não se protege. A própria idéia de lucrar é estranha para ele, ele abomina acréscimos, sua vida é um constante despojar-se, compartilhar, doar-se.
P: Se não há nenhuma vantagem em ganhar o Supremo, então por que se preocupar com isso?
M: Há um problema apenas quando você se agarra a alguma coisa. Quando você não se prende a nada, nenhum problema surge. O abandono do menor significa a obtenção do maior. Abandone tudo e você ganha tudo. Então a vida torna-se o que ela deveria ser: a radiação pura de uma fonte inesgotável. Nessa luz o mundo parece vago como um sonho.
P: Se meu mundo é apenas um sonho e você é uma parte dele, o que você pode fazer por mim? Se o sonho não é real, não tendo existência, como a realidade pode afetá-lo?
M: Enquanto dura, o sonho tem existência temporária. É o seu desejo de mantê-lo que cria o problema. Deixe-o ir. Pare de imaginar que o sonho é seu.

P: Você parece tomar por garantido que pode haver um sonho sem um sonhador e que eu me identifico com o sonho criado por minha própria doce vontade. Mas eu sou o sonhador e o sonho também. Quem é que vai parar de sonhar?
M: Deixe o sonho desenrolar-se até o fim. Você não pode evitá-lo. Mas você pode olhar para o sonho como um sonho, recusar-lhe o carimbo da realidade.
P: Aqui estou eu, sentado diante de você. Eu estou sonhando e você está me assistindo falar em meu sonho. Qual é o elo entre nós?
M: A minha intenção de acordar você é o elo. Meu coração quer que você acorde. Eu vejo você sofrer em seu sonho e sei que você deve acordar para acabar com sua tristeza. Quando você vê seu sonho como sonho, você acorda. Mas em seu sonho propriamente dito, não estou interessado. Basta para mim saber que você precisa acordar. Você não precisa trazer o seu sonho a uma conclusão definida, ou torná-lo nobre, ou feliz, ou bonito, tudo que você precisa é perceber que você está sonhando. Pare de imaginar, pare de acreditar. Veja as contradições, as incongruências, a falsidade e a tristeza do estado humano, a necessidade de ir além. Dentro da imensidão do espaço flutua um minúsculo átomo de consciência e nele o universo inteiro está contido.
P: Existem afeições no sonho que parecem reais e permanentes. Elas desaparecem ao acordarmos?
M: No sonho você ama uns e não outros. Ao acordar você descobre que você é o próprio amor, abrangendo a todos. O amor pessoal, não importa o quão intenso e genuíno, invariavelmente limita, o amor na liberdade é o amor a todos.
P: As pessoas vêm e vão. Amamos a quem encontramos, não podemos amar a todos.
M: Quando você é o próprio amor, você está além do tempo e dos números. Ao amar um você ama todos, ao amar todos, você ama a cada um. Um e todos não são exclusivos.

P: Você diz que você está em um estado atemporal. Isso significa que o passado e o futuro estão abertos para você? Você conheceu Vashishta Muni, o Guru de Rama?
M: A questão está no tempo e refere-se ao tempo. Mais uma vez você está me perguntando sobre o conteúdo de um sonho. A atemporalidade está além da ilusão do tempo, ela não é uma extensão no tempo. Aquele que chamava-se Vashishta conhecia Vashishta. Estou além de todos os nomes e formas. Vashishta é um sonho em seu sonho. Como posso conhecê-lo? Você está muito preocupado com o passado e o futuro. É tudo devido ao seu desejo de continuar, é para proteger-se contra a extinção. E como você deseja continuar, você quer que os outros lhe façam companhia, daí a sua preocupação com a sobrevivência deles. Mas o que você chama de sobrevivência é apenas a sobrevivência de um sonho. A morte é preferível a isso. Há uma chance de acordar.
P: Você está ciente da eternidade, portanto não está preocupado com a sobrevivência.
M: É o contrário. Liberdade de todos os desejos é a eternidade. Todos os apegos implicam o medo, pois todas as coisas são passageiras e o medo torna a pessoa uma escrava. Essa liberdade do apego não vem com a prática, ela é natural quando a pessoa conhece seu verdadeiro ser. O amor não se apega; apego não é amor.
P: Então não há maneira de obter o desapego?
M: Não há nada a se ganhar. Abandone todas as fantasias e conheça a si mesmo como você é. O auto-conhecimento é desapego. Todo desejo é devido a uma sensação de insuficiência. Quando você sabe que não lhe falta nada, que tudo o que existe é você e é seu, os desejos cessam.
P: Para me conhecer devo praticar a consciência?
M: Não há nada para se praticar. Para conhecer a si mesmo, seja você mesmo. Para ser você mesmo, pare de imaginar-se sendo isto ou aquilo. Apenas seja. Deixe a sua verdadeira natureza emergir. Não perturbe a sua mente com procura.

P: Vai levar muito tempo se eu apenas esperar pela auto-realização.
M: Pelo quê você tem de esperar quando isso já está aqui e agora? Você só tem de olhar e ver. Olhe para você mesmo, em seu próprio ser. Você sabe que você é e você gosta disso. Abandone toda imaginação, isso é tudo. Não confie no tempo. Tempo é morte. Quem espera, morre. A vida é agora apenas. Não fale comigo sobre o passado e o futuro, eles existem apenas na sua mente.

P: Você também morrerá.
M: Eu já estou morto. A morte física não fará nenhuma diferença no meu caso. Eu sou o ser atemporal. Eu estou livre de desejo ou medo, porque eu não me lembro do passado ou imagino o futuro. Onde não há nomes e formas, como pode haver desejo e medo? Com a ausência de desejo vem a atemporalidade. Estou seguro porque o que não é, não pode tocar o que é. Você se sente inseguro porque você imagina o perigo. Naturalmente, o seu corpo, como tal, é complexo e vulnerável e precisa de proteção. Mas você não. Quando você realizar o seu próprio ser inatacável, você estará em paz.
P: Como posso encontrar paz quando o mundo sofre?
M: O mundo sofre por razões muito válidas. Se você quiser ajudar o mundo, você deve estar além da necessidade de ajuda. Então, todas as suas ações, bem como as não-ações irão ajudar o mundo da forma mais eficaz.

P: Como pode a não-ação ser útil, quando as ações são necessárias?
M: Sempre que é necessário agir, a ação acontece. O homem não é o ator. Sua ação é estar ciente do que está acontecendo. Sua própria presença é ação. A janela é a ausência da parede e ela dá o ar e a luz porque ela é vazia. Esteja vazio de todo o conteúdo mental, de toda imaginação e esforço, e a própria ausência de obstáculos fará a realidade invadir. Se você realmente quiser ajudar uma pessoa, mantenha-se afastado. Se você está emocionalmente comprometido em ajudar, vai falhar em ajudar. Você pode estar muito ocupado e muito feliz com o seu caráter caridoso, mas não terá feito muito. Um homem é realmente ajudado quando ele não está mais necessitando de ajuda. Todo o resto é apenas futilidade.
P: Não há tempo suficiente para sentar e esperar que a ajuda aconteça. É preciso fazer alguma coisa.

M: De todo jeito - faça. Mas o que você pode fazer é limitado, apenas o Ser é ilimitado. Dê ilimitadamente de si mesmo. Tudo o mais você pode dar em pequenas medidas apenas. Somente você é imensurável. Ajudar é a sua própria natureza. Mesmo quando você come e bebe você ajuda seu corpo. Para si mesmo, você não precisa de nada. Você é puro doar, sem começo, sem fim, inesgotável. Quando você vê tristeza e sofrimento, fique com eles. Não se apresse em agir. Nem a aprendizagem nem a ação podem realmente ajudar. Fique com a tristeza e revele as suas raízes - ajudar a entender é a verdadeira ajuda.
P: Minha morte está se aproximando.
M: O seu corpo é que tem um tempo curto, não você. O tempo e o espaço estão apenas na mente. Você não é limitado. Apenas compreenda a si mesmo, isso em si é a eternidade.

sexta-feira, 9 de abril de 2010

Jalaluddin Rumi - O Rubi do Nascer do Sol / Água da sua Fonte / Você Esfrega o Chão / Cada Nota / Granito e Taça de Vinho



Na primeira hora da manhã,


um pouco antes do amanhecer, o amante e a amada acordam


e tomam um gole de água.



Ela pergunta, “Você ama mais a mim ou a si mesmo?


Realmente, diga a verdade absoluta.”



Ele diz, “Não sobrou nada de mim.


Sou como um rubi erguido para o nascer do sol.


Ele ainda é uma pedra, ou um mundo


de vermelhidão? Ele não resiste


à luz do sol.”



Foi assim que Hallaj disse, eu sou Deus,


e disse a verdade!



O rubi e o nascer do sol são um.


Seja corajoso e discipline-se.



Torne-se completamente audição e orelha,


e use como brinco este sol-rubi.



Trabalhe, continue cavando o seu poço.


Não pense sobre largar o trabalho.


A água está lá em algum lugar.



Submeta-se a uma prática diária.


Sua lealdade a isso


é uma campainha na porta.



Continue tocando, e a alegria que está dentro


eventualmente abrirá uma janela


e olhará para fora para ver quem está lá.


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O que há na luz daquela vela


que abriu e consumiu-me tão rapidamente?



Volte, meu amigo! A forma do nosso amor


não é uma forma criada.



Nada pode me ajudar além daquela beleza.


Lembro-me de um amanhecer



em que minha alma ouviu algo


de sua alma. Eu bebi água



da sua fonte e senti


a correnteza me levar.


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O senhor da beleza entra na alma


conforme um homem caminha num pomar


na primavera.



Vem em mim daquele jeito de novo!



Acende a lâmpada


no olho de José. Cura a tristeza


de Jacó. Embora você nunca tenha partido,


venha e sente aqui e pergunte,


“Por que você está tão confuso?”



Como uma idéia nova na mente de um artista,


você forma as coisas antes delas surgirem.



Você varre o chão como o homem


que zela o portão.


Quando você esfrega


uma forma deixando-a limpa, ela se torna


o que ela realmente é.



Você guarda seu silêncio perfeitamente


como uma bolsa de água que não vaza.



Você vive onde Shams vive,


porque seu coração-asno foi forte o bastante para levá-lo até lá


_____________________________________


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Conselhos não ajudam os amantes!


Eles não são o tipo de riacho da montanha


no qual você pode construir uma represa.



Um intelectual não sabe


o que o ébrio está sentindo!



Não tente adivinhar qual é a próxima coisa


que aqueles perdidos dentro do amor irão fazer!



Alguém no comando abandonaria todo seu poder,


se recebesse uma baforada do vinho almiscarado


do quarto onde os amantes


estão fazendo sabe-se lá o quê!



Um deles tenta cavar um buraco através de uma montanha.


Um foge das honras acadêmicas.


Outro ri de bigodes famosos!



A vida congela se ela não consegue ter um gosto


deste bolo de amêndoas.



As estrelas erguem-se girando


toda noite aturdidas de amor.



Elas se cansariam desse revolver,


se não estivessem nesse estado.



Elas diriam,


“Quanto tempo mais temos que fazer isto!”



Deus apanha a flauta de bambu do mundo e sopra.


Cada nota é uma necessidade surgida através de cada um de nós,


uma paixão, uma dor ardente.



Lembre-se dos lábios


de onde o sopro da respiração se originou,


e deixe sua nota ser clara.


Não tente terminá-la.


Seja sua nota.


Vou lhe mostrar como isso é o suficiente.



Suba no telhado esta noite


nesta cidade da alma.



Que todos subam em seus telhados


e cantem suas notas!



Cantem alto!


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Você é granito.


Eu sou uma taça de vinho vazia.



Você sabe o que acontece quando nos tocamos!


Você ri do mesmo modo que o sol nascendo ri


de uma estrela que desaparece nele.



O amor abre meu peito e o pensamento


retorna para seus confins.



A paciência e as considerações racionais se vão.


Apenas as paixões ficam, choramingando e febris.



Alguns homens caem na estrada como restos descartados.


Então, totalmente indiferentes, na manhã seguinte



eles saem galopando com novos propósitos. O amor


é a realidade e a poesia é o tambor



que nos chama para ele. Não fique reclamando


sobre a solidão! Deixe abrir uma fenda na linguagem


medrosa desse assunto fazendo-a flutuar para longe.



Que o sacerdote desça de sua torre,


e não volte para lá novamente.

terça-feira, 6 de abril de 2010

Meher Baba - O Amor


A vida e o amor são inseparáveis um do outro. Onde há vida, há amor. Mesmo a consciência mais rudimentar está sempre tentando romper seus limites e experimentar algum tipo de unidade com outras formas. Embora cada forma esteja separada das outras formas, na realidade, são todas as formas da mesma unidade da vida. O sentimento latente por essa realidade interior escondida, indiretamente se faz sentir até mesmo no mundo da ilusão através da atração que uma forma tem por outra forma. A lei da gravitação, a qual todos os planetas e as estrelas estão sujeitos, é à sua maneira um tênue reflexo do amor que permeia todas as partes do universo. Mesmo as forças de repulsão, na verdade, são expressões do amor, pois as coisas são repelidas umas das outras porque são mais fortemente atraídas para outras coisas.



Repulsão é uma consequência negativa da atração positiva. As forças de coesão e de afinidade, que prevalecem na própria constituição da matéria, são expressões positivas do amor. Um exemplo flagrante do amor nesse nível é encontrado na atração que o ímã exerce sobre o ferro. Todas essas formas de amor são do tipo mais baixo, uma vez que estão necessariamente condicionadas pela consciência rudimentar em que elas aparecem. No mundo animal o amor se torna mais explícito na forma de impulsos conscientes que são direcionados para diferentes objetos no ambiente. Esse amor é instintivo e toma a forma do satisfazer a desejos diferentes através da apropriação de objetos convenientes. Quando um tigre tenta devorar um cervo, ele está em um sentido muito real apaixonado pelo cervo. A atração sexual é outra forma de amor neste nível. Todas as expressões de amor, nesta fase, têm uma coisa em comum, ou seja, todas elas procuram satisfazer um impulso ou desejo físico por meio do objeto de amor.



O amor humano é muito mais elevado que todas essas formas inferiores de amor, porque os seres humanos têm a consciência plenamente desenvolvida. Embora o amor humano seja contínuo com as formas inferiores subumanas de amor, de certa forma ele é diferente delas. Pois, daqui por diante as suas operações devem ser executadas lado a lado com um novo fator, que é a razão. Às vezes o amor humano se manifesta como uma força que está separada da razão e é paralela a ela. Às vezes manifesta-se como uma força que se mistura à razão e entra em conflito com ela. Finalmente, ele se expressa como um componente do conjunto harmonizado onde o amor e a razão foram equilibrados e fundidos em uma unidade integral.



Assim, o amor humano pode entrar em três tipos de combinação com a razão. No primeiro tipo, a esfera do pensamento e a esfera do amor são mantidas o mais separadas possível, ou seja, a esfera do amor é praticamente inacessível para a operação da razão, e ao amor é permitido pouco ou nenhum acesso à esfera do pensamento. A completa separação entre esses dois aspectos do espírito, naturalmente, nunca é possível. Mas quando há um funcionamento alternado do amor e da razão (oscilante em sua predominância), temos o amor que não deixa de ser iluminado pela razão ou a razão que não deixa de ser vivificada pelo amor.



No segundo tipo, o amor e a razão estão simultaneamente operando, mas eles não trabalham em harmonia um com o outro. Embora esse conflito gere confusão, é uma fase necessária na evolução do estado superior onde existe uma verdadeira síntese do amor e da razão. No terceiro tipo de amor, essa síntese entre o amor e a razão é um fato consumado, com o resultado que tanto o amor quanto a razão são transformados tão completamente, que precipitam o surgimento de um novo nível de consciência que, em comparação com a consciência humana normal, é melhor descrito como superconsciência.



O amor humano faz a sua aparição na matriz da consciência-ego, que tem desejos incontáveis. O amor é colorido por esses fatores de muitas maneiras. Assim como temos uma variedade de desenhos em constante mudança em um caleidoscópio através de várias combinações de elementos simples, encontramos uma variedade qualitativa quase sem limites na escala do amor devido a novas combinações de fatores. E assim como existe uma infinidade de tonalidades de cores em flores diferentes, existem diversas diferenças delicadas no amor humano.



O amor humano é cercado por uma série de fatores obstrutivos, como a paixão, a luxúria, a ganância, a raiva e a inveja. Num certo sentido, mesmo esses fatores obstrutivos ou são formas inferiores de amor ou subprodutos inevitáveis dessas formas inferiores de amor. Paixão, luxúria e cobiça podem ser encarados como formas pervertidas e inferiores de amor. Na paixão uma pessoa está enamorada de um objeto sensual; na luxúria ela desenvolve um desejo por sensações em relação a ele, e na cobiça ela deseja possuir esse objeto. Dessas três formas de amor inferior, a cobiça tem uma tendência de se estender do objeto original para os meios de obtê-lo. Assim, uma pessoa torna-se ávida por dinheiro, poder ou fama, que podem ser instrumentos para a posse de diferentes objetos ansiados. A raiva e o ciúme passam a existir quando essas formas inferiores de amor são negadas ou ameaçadas de serem negadas.



Essas formas inferiores de amor obstruem a liberação do amor puro. A corrente do amor nunca pode tornar-se clara e uniforme até que seja desembaraçada dessas formas limitantes e pervertidas de amor inferior. As formas mais baixas são o inimigo da forma mais elevada. Se a consciência é pega no ritmo das formas inferiores, ela não pode emancipar-se dos sulcos auto-criados, encontrando dificuldades para sair deles e avançar adiante. Assim, as formas inferiores de amor continuam a interferir com o desenvolvimento da forma mais elevada e tem que ser abandonadas a fim de permitir o aparecimento desimpedido da forma mais elevada de amor.





A emersão do amor superior de dentro da concha do amor inferior é ajudada pelo exercício constante da discriminação. Portanto, o amor tem de ser cuidadosamente distinguido dos fatores obstrutivos da paixão, luxúria, cobiça e raiva. Na paixão, a pessoa é uma vítima passiva da magia da atração concebida pelo objeto. No amor há uma apreciação ativa do valor intrínseco do objeto do amor. O amor é também diferente da luxúria. Na luxúria há uma dependência de um objeto sensual e uma consequente subordinação espiritual de si para com ela, enquanto que o amor coloca a pessoa numa relação direta e coordenada com a realidade por trás da forma. Portanto, a luxúria é experimentada como sendo pesada e o amor como sendo leve. Na luxúria há um estreitamento da vida e no amor não há uma expansão do ser. Ter amado alguém é como adicionar uma outra vida à sua própria. Sua vida é, por assim dizer, multiplicada, e você praticamente vive em dois centros. Se você ama o mundo inteiro, do mesmo modo você vive no mundo todo; mas na luxúria há um refluxo da vida para baixo e uma sensação geral de dependência desesperada por uma forma que é considerada uma outra. Assim, na luxúria há a acentuação da separação e do sofrimento, enquanto que no amor há o sentimento de unidade e de alegria. A luxúria é dissipação, o amor é restauração. A luxúria é um desejo dos sentidos, o amor é a expressão do espírito. Luxúria busca satisfação, mas o amor experimenta satisfação. Na luxúria há excitação e no amor há tranquilidade.



O amor é igualmente diferente da cobiça (ganância). A cobiça é a possessividade em todas as suas formas grosseiras e sutis. Ela visa se apropriar de pessoas e de objetos grosseiros, bem como de coisas abstratas e intangíveis tais como fama e poder. No amor, a anexação de outra pessoa à vida individual da outra está fora de questão, e há uma efusão livre e criativa que aviva e reabastece o ser do amado independentemente de quaisquer expectativa para si. Temos o paradoxo de que a cobiça, que visa a apropriação de outro objeto, de fato conduz a um resultado oposto de colocar o ser sob a tutela do objeto. Enquanto que o amor, que só visa dar-se para o objeto, de fato leva a uma incorporação espiritual do amado no próprio ser do amante. Na cobiça o ser tenta possuir o objeto, mas ele próprio é possuído pelo objeto. No amor, o ser oferece-se para o amado sem reservas, mas nesse próprio ato ele descobre que ele incluiu o amado em seu próprio ser.



Paixão, luxúria e cobiça constituem uma doença espiritual, que muitas vezes torna-se mais virulenta pelos sintomas agravantes da raiva e do ciúme. O amor puro, num contraste nítido, é a floração da Perfeição espiritual. O amor humano está tão amarrado por essas condições limitantes que o aparecimento espontâneo de amor puro vindo de dentro, torna-se impossível. Assim, quando tal amor puro surge no aspirante, é sempre um presente. O amor puro surge no coração do aspirante, em resposta à descida da graça de um mestre perfeito. Quando o amor puro é recebido como um presente do Mestre pela primeira vez, ele se aloja na consciência do aspirante como uma semente num solo favorável; e no curso do tempo a semente se desenvolve em uma planta e depois em uma árvore adulta. A descida da graça do Mestre está condicionada, no entanto, pela preparação espiritual preliminar do aspirante. Esta preparação preliminar para a graça nunca está completa até que o aspirante tenha construído em sua composição espiritual alguns atributos divinos. Por exemplo, quando uma pessoa evita falar mal dos outros e pensa mais nos pontos positivos dos outros do que em seus pontos fracos, e quando ela pode praticar a tolerância suprema e deseja o bem para os outros, mesmo às custas de si mesma, ela está pronta para receber a graça do mestre. Um dos maiores obstáculos que impede essa preparação espiritual do aspirante é a preocupação. Quando, com um esforço supremo, este obstáculo da preocupação for ultrapassado, um caminho será pavimentado para o cultivo dos atributos divinos que constituem a preparação espiritual do discípulo. Tão logo o discípulo esteja pronto, a graça do Mestre descende; quanto ao Mestre, que é o oceano do amor divino, ele está sempre à espreita por uma alma na qual sua graça irá dar frutos. O tipo de amor que é despertado pela graça do Mestre é um privilégio raro. A mãe que está disposta a sacrificar tudo e morrer por seu filho e o mártir que está preparado para desistir de sua própria vida pelo seu país, são de fato extremamente nobres, mas não necessariamente eles provaram esse puro amor nascido através da graça do Mestre. Mesmo os grandes yogis que sentam-se em cavernas e nos cumes das montanhas e estão completamente absorvidos em profundo Samadhi (em transe meditativo) não têm necessariamente esse amor precioso.



O amor puro despertado pela graça do Mestre é mais valioso do que qualquer outro estímulo que possa ser utilizado pelo aspirante. Esse amor não só combina em si o mérito de todas as disciplinas, mas supera-as todas em sua eficácia para conduzir o aspirante ao objetivo. Quando o amor nasce, o aspirante tem apenas um desejo, que é ser unido com o Amado divino. Essa retirada da consciência de todos os outros desejos leva à pureza infinita; portanto, nada purifica o aspirante mais completamente do que esse amor. O aspirante está sempre disposto a oferecer tudo para o amado divino e nenhum sacrifício é difícil demais para ele. Todos os seus pensamentos estão afastados de si e passam a ser exclusivamente centrados no Amado divino. Através da intensidade desse amor sempre crescente, ele finalmente rompe as algemas do ego e se une com o Amado. Essa é a consumação do amor. Quando, desse modo, o amor encontrou a sua fruição, ele tornou-se divino. O amor divino é qualitativamente diferente do amor humano. O amor humano é para os muitos no Um e o amor divino é para o Um nos muitos. O amor humano leva a inúmeras complicações e emaranhamentos, mas o amor divino leva à integração e à liberdade. No amor divino o aspecto pessoal e o impessoal são igualmente equilibrados; no amor humano, os dois aspectos estão em ascendência alternada. Quando a nota pessoal for predominante no amor humano, ela leva à cegueira total para o valor intrínseco de outras formas.



Quando, como num sentido de dever, o amor é predominantemente impessoal, ele muitas vezes torna a pessoa rígida, fria e mecânica. Uma sensação de dever vem para o indivíduo como uma restrição externa sobre o comportamento, mas no amor divino há liberdade irrestrita e espontaneidade sem limites. O amor humano, no seu aspecto pessoal e impessoal é limitado, o amor divino com sua fusão do aspecto pessoal e impessoal é infinito em ser e expressão.



Mesmo o tipo mais elevado de amor humano está sujeito às limitações da natureza individual, que persiste até o “sétimo plano de involução da consciência”*. O amor divino surge depois do desaparecimento da mente individual e é livre dos empecilhos da natureza individual. No amor humano a dualidade do amante e do amado persiste, mas no amor divino o amante e o amado se tornam um. Nesta fase o aspirante sai do domínio da dualidade e se torna um com Deus; pois Deus É o Amor Divino. Quando o amante e o Amado são um, esse é o fim e o começo. É pelo amor que todo o universo veio à existência, e é por causa do amor que ele é mantido. Deus descende ao reino da Ilusão porque a aparente dualidade do Amado e do amante é eventualmente contributiva para Sua apreciação consciente de Sua própria divindade. O desenvolvimento do amor é condicionado e sustentado pela tensão da dualidade. Deus tem de sofrer uma aparente diferenciação em uma multiplicidade de almas, a fim de exercer o jogo do amor. As almas são as próprias formas Dele, e em relação a elas, de uma só vez Ele assume o papel do divino amante e do divino Amado. Como o Amado, Ele é o objeto real e o final de apreciação das almas. Como o divino Amante, Ele é o salvador real e definitivo das almas, chamando-as de volta para si próprio. Assim, apesar de todo o mundo da dualidade ser apenas uma ilusão, esta ilusão veio a ser por um propósito significativo. O amor é o reflexo da unidade de Deus no mundo da dualidade. Constitui toda a importância da criação. Se o amor fosse excluído da vida, todas as almas no mundo assumiriam completa externalidade umas às outras, e as únicas relações e contatos possíveis, de tal mundo sem amor, seriam superficiais e mecânicas. É por causa do amor que os contatos e as relações entre as almas individuais se tornam significativos. É o amor que dá sentido e valor a todos os acontecimentos no mundo da dualidade. Mas enquanto o amor dá significado para o mundo da dualidade, é ao mesmo tempo um desafio permanente à dualidade. Quando o amor reúne força, ele gera uma inquietação criativa e se torna a principal força motriz daquela dinâmica espiritual que finalmente consegue recuperar a unidade original de Ser da consciência.


*o último e mais elevado estágio que a consciência pode atingir, de acordo com Meher Baba

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Farid ud-Din Attar - O Vale do Amor



“Depois do primeiro vale”, continuou a poupa, “encontra-se o vale do amor. Para entrar nele deve-se mergulhar inteiramente no fogo; o que digo!?, deve-se ser o próprio fogo, pois de outra forma não se poderia viver ali. O verdadeiro amante deve de fato parecer-se com o fogo; é necessário que ele tenha o rosto inflamado, que seja ardente e impetuoso como o fogo. Para amar não se deve ter segundas intenções; deve-se estar disposto a atirar prazerosamente cem mundos ao fogo; não há de conhecer nem a fé nem a infidelidade, não é preciso nem dúvida nem certeza. Neste caminho não há diferença entre o bem e o mal.


Ó tu que vives na despreocupação! Este discurso não poderia tocar-te; tu o rejeitas, teus dentes não podem mordê-lo. Aquele que age com lealdade aposta dinheiro de verdade, arrisca sua cabeça para unir-se ao Amigo. Os demais contentam-se com a promessa que se lhes faça para amanhã; porém somente o amante recebe o prêmio de verdadeiro valor. Se aquele que se engaja na via espiritual não consome a si mesmo por completo, como poderá ser libertado da tristeza que o oprime? Enquanto toda a essência não for radicalmente consumida, poderás fazer de teu coração um mostruário de rubis e vendê-lo? O falcão é presa do fogo da agitação enquanto não atinge seu objetivo. Se o peixe cai do oceano para a praia, ele se agita até retornar à água.


Neste vale o amor é representado pelo fogo e sua fumaça é a razão. Quando o amor vem, a razão foge o mais rapidamente possível. A razão não pode coabitar com a loucura do amor; o amor não tem nada a ver com a razão humana. Se adquirisses uma visão realmente clara do mundo invisível, só então poderias conhecer a fonte do amor misterioso que te anuncio. A existência do amor é, folha por folha, completamente destruída pela própria embriaguez do amor. Se possuísses a visão espiritual, os átomos do mundo visível também te seriam desvelados; mas se olhas com o olho da inteligência humana, jamais compreenderás o amor assim como ele é. Somente um homem experiente e livre pode sentir esse amor espiritual. Pois bem, és tu que não tens a experiência requerida, e ademais, não estás verdadeiramente enamorado. Tu estás morto! Como estarias pronto para o amor? Seria necessário para aquele que se compromete nessa via possuir milhares de corações vivos, a fim de poder sacrificá-los às centenas a cada instante.”




O Hodja Enamorado




O amor levou um hodja pelos caminhos da miséria; ele errava sem lugar e sem família, desgraçado por causa do amor que experimentava por um jovem vendedor de cerveja. O excesso desse amor transformou-se em loucura, e a infâmia que disso resultou teve ressonâncias. Todos os objetos, imóveis e escravos que possuía, ele os vendeu para comprar cerveja daquele moço. Quando mais nada restava a esse homem que havia perdido seu coração e caído na indigência, seu amor cresceu ainda cem vezes mais. Mesmo quando lhe davam todo o pão que queria ele ainda continuava faminto, porém contente da vida, porque cada bocado que recebia trocava por cerveja; permanecia faminto, a fim de beber em um instante cem copos de cerveja. Um dia alguém lhe perguntou: “Tu, cujo estado é desolador, o que é o amor? Desvela-me esse segredo.” O hodja respondeu: “O amor é tal que deves vender a mercadoria de cem mundos para comprar cerveja.”


Enquanto o homem não agir dessa maneira, conhecerá o verdadeiro sentido do amor?



Outra história sobre Majnun



Os pais de Laila jamais permitiram que Majnun entrasse em sua tribo; porém Majnun, ébrio de amor, pediu emprestada a pele de um cordeiro a um pastor que estava no deserto onde a tribo de Laila levantava suas tendas. Ele curvou então sua cabeça, cobriu-a com essa pele e tomou assim a aparência de um cordeiro. Depois Majnun disse ao pastor: “Eu te suplico, em nome de Deus! Deixa-me entre tuas ovelhas. Leva teu rebanho para perto de Laila para que eu possa sentir o perfume daquela que amo, e, escondido de minha amiga sob esta pele, possa desfrutar de sua presença.”


Se pudesses sentir tal amor por um instante, tu serias digno de pertencer à humanidade até a raiz de cada um de teus cabelos. Ai! Tu não sentes a dor amorosa dos homens espirituais, ignoras a boa sorte das pessoas do jardim espiritual.


Majnum foi sob essa pele ao encontro de sua amiga, escondido entre as ovelhas. Ao ver Laila, foi invadido por tal alegria que acabou por desmaiar. Quando o amor produziu esse efeito sobre ele e a água (a honra) deixou seu rosto, o pastor tomou-o nos braços e levou-o para a sombra da planície; lançou água sobre a face desse jovem tão profundamente embriagado de amor, para que essa água acalmasse um pouco aquele fogo.


Dias depois, quando Majnun, ainda ébrio de amor, estava sentado com algumas pessoas no deserto, um dos membros dessa reunião lhe disse: “ Ó tu, que és bem nascido! Como podes estar sem roupas? Se desejares, eu te trarei agora mesmo a vestimenta que preferires.” - “Nenhuma vestimenta é digna de minha amiga”, respondeu Majnun, “assim, não há para mim roupa mais conveniente que a pele do cordeiro; ela serviu-me de ispand para afastar o mau olhado. Majnun vestiria com prazer ricas vestes de brocado tecido em ouro, porém agrada-lhe essa pele por meio da qual ele pode agradar Laila. Se é graças a essa pele que posso ver minha amiga, como poderia desejar outra vestimenta? É sob essa pele que meu coração tem notícias do amor; e, como não posso alcançar sua essência, essa pele permite-me ter ao menos uma idéia dela.”


É preciso que o amor te arranque da sabedoria, é necessário que ele transforme tuas inclinações. A menor coisa no aniquilamento dessas inclinações é dar tua vida e abandonar os prazeres vulgares. Se tens os elevados sentimentos de que falo, põe o pé neste caminho, pois não é um jogo jogar assim a própria vida.



O Árabe na Pérsia



Um árabe foi à Pérsia e admirou-se dos costumes que ali encontrou. Quando visitava o país, esse ignorante passou por acaso diante de uma casa de calândares e viu um punhado de gente turbada que havia abandonado os dois mundos e não dizia palavra. Todos sem mulher, sem dinheiro, mas de coração puro; todos isentos de mancha, um mais que o outro. Se pareciam com ladrões sujos, e eram no entanto mais limpos que qualquer um que o mundo pudesse enxergar, e apesar de parecerem mergulhados na embriaguês, o êxtase que conheciam não é de se beber. Cada um deles tinha nas mãos uma garrafa de vinho turvo, que havia tido o cuidado de encher antes de sentar-se. Logo que o árabe viu essas pessoas sentiu-se inclinado por elas: seu espírito e seu coração detiveram-se no grande caminho de sua vida. Quando os calândares viram-no assim destituído de honra, de razão e de espírito, disseram-lhe todos: “Entra, ó ninguém!” Ele então entrou, por bem ou por mal. Assim foi, e eis tudo. Tornou-se libertino como os outros. Embriagado pelo efeito de um só copo de vinho ele apagou-se, renunciou a si mesmo e seu vigor foi aniquilado. Esse homem tinha muitos objetos de valor, muito ouro e prata, que um dos calândares tomou-lhe num instante. Um outro deu-lhe ainda mais vinho e depois jogaram-no para fora daquela casa inteiramente nu. Então o árabe viu-se obrigado a vagar, tonto, pobre, com a alma transtornada e os lábios secos, até chegar a seu país. Os árabes lhe disseram: “O que se passou contigo?” Onde está teu ouro e tua prata? Talvez tenhas adormecido e fostes roubado. Tinhas dinheiro e agora estás pobre e na agitação; fizeste mal em ir à Pérsia, não dizes palavra e pareces tão diferente. Explica o que te aconteceu, para que conheçamos a situação em que te encontras.” - “Enquanto vagava cheio de orgulho pelo caminho”, ele respondeu, “ encontrei-me de repente entre calândares. De nada sei além disso, a não ser que meu ouro e minha prata se foram e que perdi tudo.” Sua mente estava em outro lugar e tudo que ouvia parecia-lhe tagarelice inútil e absurda. Pediram-lhe que descrevesse aquela gente, e ele contou: “ Eles disseram simplesmente: Entra.”