segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

Ramana Maharshi - Self-enquiry (Atma-Vichara)


O primeiro pensamento a surgir na mente é o pensamento "eu". Todos os outros inumeráveis pensamentos surgem apenas depois do pensamento "eu" e têm nele sua origem. Em outras palavras, apenas depois do pronome de primeira pessoa “eu” surgir, é que os pronomes de segunda e terceira pessoa, “tu” e “ele”, ocorrem para a mente; estes não subsistem sem aquele.
Como todos os outros pensamentos só podem surgir depois do aparecimento do pensamento "eu", e como a mente nada mais é do que um conglomerado de pensamentos, é apenas voltando a atenção para o pensamento "eu", através da inquirição “Quem sou eu?”, que a mente será extinta. Além disso, o pensamento "eu", implícito na investigação “Quem sou eu?”, destruirá todos os outros pensamentos, como uma vareta que quando usada para avivar uma fogueira, é também consumida no final.
Você não precisa eliminar nenhum falso “eu”. Como pode o “eu” eliminar a si mesmo? Tudo o que você precisa fazer é encontrar a Fonte do “eu”, e permanecer lá. O seu esforço só pode levá-lo até esse ponto. A partir daí o Transcendental vai tomar conta de si mesmo. Você não pode fazer mais nada então. Nenhum esforço pode chegar até Ele.
O pensamento “eu” é como um fantasma que, apesar de ser impalpável, surge simultaneamente com o corpo, vive e desaparece junto com ele. A consciência “eu sou o corpo/este é meu corpo” é o falso eu. Abandone-a. Você pode fazer isso buscando a fonte do sentimento “eu”. O corpo não diz “eu sou”. É você que diz “eu sou o corpo”. Descubra o que é esse “eu”; busque sua fonte e ele desaparecerá.

domingo, 28 de dezembro de 2008

Ramana Maharshi - Um verso


Pode haver espaço, pode haver tempo, exceto para mim mesmo?
O espaço e o tempo me atam apenas se sou o corpo.
Eu não estou em nenhuma parte, eu sou sem tempo.
Eu existo em toda parte e sempre.

quarta-feira, 24 de dezembro de 2008

Nisargadatta Maharaj - Dia 8 de Novembro de 1980


Pergunta: Por que é que nós naturalmente parecemos pensar em nós mesmos como indivíduos separados?
Maharaj: Seus pensamentos sobre individualidade não são realmente seus próprios pensamentos, são todos pensamentos coletivos. Você pensa que você é a pessoa que tem os pensamentos, mas de fato os pensamentos surgem dentro da consciência. Conforme nosso conhecimento espiritual cresce, nossa identificação com um corpo-mente individual diminui, e nossa consciência expande-se na consciência universal. A força da vida continua a atuar, mas seus pensamentos e ações já não são limitados a um indivíduo. Transformam-se na manifestação total. É como a ação do vento - o vento não sopra para nenhum indivíduo em particular, mas para a manifestação total.
Q: Como um indivíduo, é possível retornar à fonte?
M: Não como um indivíduo, o conhecimento “eu sou” deve retornar à sua própria fonte. Agora, a consciência identificou-se com uma forma. Mais tarde, ela compreende que não é essa forma e segue adiante. Em alguns casos ela pode alcançar o espaço, e muito frequentemente, pára ali. Em pouquíssimos casos ela alcança sua fonte real, além de todo condicionamento.
É difícil abandonar essa inclinação de identificar o corpo como sendo o 'Ser' (Self). Eu não estou falando com um indivíduo, estou falando para a consciência. É a consciência que deve procurar sua fonte. Daquele estado de não-ser surge o sentido de existência. Ele surge tão quietamente quanto o crepúsculo, com apenas uma sensação de “eu sou” e então de repente o espaço está lá. No espaço, o movimento começa com o ar, o fogo, a água, e a terra. Todos estes cinco elementos são justamente você. De sua consciência tudo isto aconteceu. Não há nenhum indivíduo. Há somente você, o funcionamento total é você, a consciência é você. Você é a consciência, todos os títulos dos deuses são os seus nomes, mas identificado ao corpo você se entrega ao tempo e à morte - você está impondo isso a você mesmo. Eu sou o universo total. Quando eu sou o universo total não tenho necessidade de nada porque eu sou todas as coisas. Mas abarrotei eu mesmo em uma coisa pequena, um corpo; fiz de mim um fragmento e tornei-me necessitado de coisas. Eu preciso de tantas coisas sendo um corpo. Na ausência de um corpo, você existe; quando não tinha um corpo você existia? Você estava lá ou não? Alcance esse estado que é e era anterior ao corpo. Sua natureza verdadeira está aberta e livre, mas você a encobre, você dá a ela várias formatações.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Sr. Ouspensky - Cada coisa é atravessada por todas as matérias que existem no universo


Toda a matéria do mundo que nos rodeia, o alimento que comemos, a água que bebemos, o ar que respiramos, as pedras de que são construídas as nossas casas, nossos próprios corpos – cada coisa é atravessada por todas as matérias que existem no universo. Não é necessário estudar cientificamente o Sol para descobrir a matéria do mundo solar, essa matéria existe em nós mesmos e é o resultado da divisão de nossos átomos, do mesmo modo temos em nós mesmos as matérias de todos os mundos. O homem é no sentido pleno dessa palavra, um universo em miniatura. Todas as matérias de que é constituído o Universo estão nele. As mesmas forças, as mesmas leis que governam a vida do universo, agem nele. É por isso que ao estudarmos o homem, podemos estudar o universo inteiro, exatamente do mesmo modo que, estudando o mundo, podemos estudar o homem.

Al Ghazali - O peregrino e a caravana

A alma deveria tomar conta do corpo, assim como o peregrino no seu caminho para Meca toma conta do seu camelo, mas se o peregrino passa todo seu tempo alimentando e adornando seu camelo, a caravana o deixará para trás e ele irá perecer no deserto.

Sr. Ouspensky - Record of meetings

Pergunta: A lembrança de si era uma característica do antigo conhecimento esotérico?
Ouspensky: Sempre, em toda a parte. Apenas algumas vezes, nas escolas religiosas, por exemplo, foi designada por um nome diferente. Isso não é arbitrário. É uma etapa necessária em nosso desenvolvimento, não uma tarefa imposta arbitrariamente. É preciso passar por ela e só se pode passar de uma forma.
Pergunta: Cristo alguma vez falou sobre ela – com quais palavras?
Ouspensky: Em cada página. Palavras diferentes. Por exemplo, ‘Não durmai’, ‘Vigiai’ – todo o tempo.
Pergunta: Se a identificação é uma perturbação emocional, o que causa esta perturbação. Por que é assim?
Ouspensky: Qualquer coisa, qualquer coisa no mundo pode causá-la. É difícil dizer o por quê. Pode ser um número excessivo de ‘eus’, falta de controle se quiser. Mas ‘o por quê’ não é tão interessante. Não estudamos o por quê. Estudamos o 'como'. Não podemos saber por que, ou sabemos apenas algumas vezes. Não temos controle; não sabemos que não temos controle e muitas outras coisas. Isso causa identificação. Nascemos rodeados de pessoas que sempre estão identificadas e por imitação inconsciente, nos tornamos iguais a elas.
Pergunta: Você disse que a Natureza era contrária ao desenvolvimento do homem. O desenvolvimento do homem é antinatural, não é?
Ouspensky: Sim, de certo modo. Os níveis são diferentes. A natureza criou o homem parcialmente desenvolvido, e por assim dizer, o deixou aí. Isso significa que a Natureza, a Natureza mais próxima, por assim dizer, necessita dele como ele é. Ao mesmo tempo a Natureza o criou com uma possibilidade de desenvolvimento, isto significa que ela pode usar o homem desenvolvido para algum propósito. As duas coisas são naturais – o fato de que o homem é parcialmente desenvolvido e o fato de que ele pode se desenvolver.
Pergunta: Você disse há um tempo atrás que vivemos sob 48 leis. Quais são elas?
Ouspensky: A Terra está sob 48 leis. Gravidade, coisas assim. Muitas, muitas leis sob as quais vive a Terra – movimento, leis físicas, leis químicas.
Pergunta: Você disse que à medida que progredimos podemos eliminar algumas delas.
Ouspensky: Eu disse que a Terra vive sob 48 leis. O homem vive sob muito, muito mais do que 48. Algumas conhecemos – leis físicas, biológicas. Depois vêm as leis muito simples – a ignorância, por exemplo. Não conhecemos a nós mesmos, isso é uma lei. Se começamos a conhecer a nós mesmos, ficamos livres de uma lei. Não podemos aprender ‘esta é uma lei, esta outra lei, esta uma terceira lei’. Para muitas delas não temos nomes. Todas as pessoas vivem sob a lei da identificação. Essa é uma lei. Aqueles que começam a lembrar de si mesmos podem se livrar da lei da identificação. Dessa forma podemos conhecer essas leis.

Siddharameshwar Maharaj - Toda aparência é ilusão


Toda a aparência é ilusão (Maya) e o “presenciador” é Brahman. O que é visto, ou seja, a aparência, é falso, e o que vê é Brahman. Há uma declaração nos Vedas que diz que existem somente duas entidades, aquilo é visto e Aquele que vê. O Vedanta declara isso de maneira contundente. Neste mundo não há nada além do observador e do observado. Aquele que reside no coração de cada um é Brahman, e Ele é “Real”.
Quem se refugia no que é visto, perece; e quem se refugia em Brahman, alcança o estado Dele. Se você concentrar a atenção no visto (no mundo objetivo), você será destruído assim como aquilo que é visto (o mundo objetivo). A pergunta é, se aquilo que é visto não é verdadeiro, por que é visível, então? O que é visto é falso, porque tudo o que é visto é a magia criada pelo olho. É por isso que não é verdadeiro. No espelho vemos um rosto, isso implica que parecem existir dois rostos; significa então, que hajam dois “você”? O fato é que “você” é somente um, mas, entretanto, parecem existir dois. Um pintor pinta quadros com tinta e diz: “esta é uma montanha, este é o Sr. Vishnu, esta é a Deusa Laskmi”. Você aceita isso como real? Você é o criador. O que na realidade é madeira (a tela), aceitamos como se fosse carne. É o milagre do olho. Aquele que adorar o ‘Si mesmo Real’ desvendará o próprio ‘Si mesmo Real’. Este mundo mortal é feito de terra e será reduzido a poeira apenas. O corpo humano vem da maternidade e vai para o túmulo. Devemos comer o interior do côco e jogar a casca. Aquele que come a casca, consegue só quebrar os dentes.

quarta-feira, 17 de dezembro de 2008

Jalaluddin Rumi - Pegue a pérola da concha

Saiba que a forma exterior passa, mas o
Mundo do Significado permanece para sempre.
Quanto tempo te enamorarás do formato do jarro?
Deixe de lado o formato do jarro: Vá buscar água!
Tendo visto a forma, não percebes o significado.
Se és sábio, pega a pérola da concha.

Site - Philosophia Perennis

Site com muitos textos relacionados à verdadeira espiritualidade - Philokalia, Sufismo, Vedanta, Quarto Caminho - em Português e Espanhol

terça-feira, 16 de dezembro de 2008

La Tzu - Tao Te Ching

O Tao de que se pode falar não é o verdadeiro e eterno Tao.
O nome que pode ser dito não é o verdadeiro nome.
O que não tem nome é a origem do Céu e da Terra
E o nomear é a mãe de todas as coisas.
Sem a intenção de o considerar,
Podemos apreender o mistério e suas sutilezas
Através da sua ausência de forma.
Tentando considerá-lo, só podemos ver sua manifestação
Nas formas que definem o limite das coisas.
Ambos provêm da mesma fonte e são o mesmo.
Diferem devido apenas ao aparecimento dos nomes.
São o mistério mais profundo, a porta para todos os mistérios.

Nisargadatta Maharaj - O Ser permanece além da mente

Pergunta: Quando era criança, com muita frequência eu experimentava estados de felicidade completa, próximos ao êxtase. Mais tarde, esses estados acabaram mas, desde que vim para a Índia, eles reapareceram, particularmente desde que encontrei você. Ainda assim, apesar de serem maravilhosos, esses estados não duram. Chegam e se vão, e não se sabe quando voltarão.

Maharaj: Como pode haver algo estável em uma mente que em si mesma não é estável?

P: Como podemos estabilizar a mente?

M: Como poderia uma mente inconstante fazer-se estável? Certamente não é possível. A natureza da mente é vagar. Tudo o que você pode fazer é colocar o foco da consciência além da mente.

P: Como isso é feito?

M:Evite todos os pensamentos exceto um: o pensamento “eu sou”. A mente irá rebelar-se a princípio, mas, com paciência e perseverança, ela cederá e permanecerá quieta. Uma vez que você esteja quieto, as coisas começarão a acontecer espontaneamente e de forma muito natural, sem nenhuma interferência de sua parte.

P: Posso evitar essa longa batalha com minha mente?

M: Sim, você pode. Simplesmente viva sua vida como vier, mas sempre alerta, vigilante, permitindo que tudo ocorra da maneira que ocorrer, fazendo as coisas naturais de um modo também natural, sofrendo, gozando, como a vida se apresentar. Essa também é uma maneira de viver.

P: Bom, então posso casar-me, ter filhos, levar um negócio, ser feliz ...

M: Claro que sim. Você pode ser feliz ou não; aceite-a calmamente.

P: Mas eu quero felicidade.

M: Não se pode encontrar a verdadeira felicidade nas coisas que mudam e morrem. O prazer e a dor se alternam inexoravelmente. A felicidade procede do Ser e só pode ser encontrada no Ser. Encontre seu Ser Real (swarupa) e tudo chegará com ele.

P: Se meu Ser real é cheio de paz e de amor por que sou tão inquieto?

M: O seu Ser Real não é inquieto, mas o reflexo dele na mente parece assim, já que a própria mente é inquieta. É como o reflexo da lua na água agitada pelo vento. O vento do desejo move a mente, e o “eu”, que não é senão um reflexo do Ser na mente, parece mutável. Mas essas idéias de movimento, de inquietude, de prazer e dor, estão todas na mente. O Ser está além da mente, consciente, mas desapegado.

P: Como alcançá-lo?

M: Você é o Ser, aqui e agora. Deixe a mente em paz, seja consciente e despreocupado e você compreenderá que permanecer alerta, mas desapegado, observando como os fatos vão e vêm, é um aspecto de sua verdadeira natureza.

P: Quais são os outros aspectos?

M: Os aspectos são infinitos em número. Compreenda um e você compreenderá todos.

P: Diga-me algo que possa ajudar-me.

M: Você sabe melhor o que precisa!

P: Estou inquieto. Como posso obter paz?

M: Para que você necessita de paz?

P: Para ser feliz.

M: Você não é feliz agora?

P: Não, não sou.

M: O que o torna infeliz?

P: Tenho o que não quero e quero o que não tenho.

M: Por que não inverter? Queira o que você tem e não se preocupe com o que não tem.

P: Eu quero o que é agradável e não quero o que é doloroso.

M: Como é que você sabe o que é agradável e o que não é?

P: Através de experiências passadas, certamente.

M: Guiado pela memória, você tem perseguido o agradável e tentado escapar do desagradável. Você tem tido êxito?

P: Não, não tenho tido. O agradável não dura. A dor sempre volta.

M: Que dor?

P: O desejo de prazer, o medo da dor, ambos são estados de sofrimento. Existe um estado de puro prazer?

M: Cada prazer, físico ou mental, necessita um instrumento. Os instrumentos físicos e mentais são materiais, portanto, se desgastam e se esgotam. O prazer que proporcionam é, necessariamente, limitado em intensidade e duração. A dor é o pano de fundo de todos os prazeres. Você os deseja porque sofre. Por outro lado, a própria busca do prazer é a causa da dor. É um circulo vicioso.

P: Posso ver o mecanismo de minha confusão, mas não vejo a saída.

M: O próprio exame do mecanismo mostra a saída. Afinal de contas, a confusão está só na mente, a qual nunca se rebelou totalmente contra a confusão nem chegou a combatê-la. Ela só se rebelou contra a dor.

P: Então, tudo o que posso fazer é permanecer confuso?

M: Esteja alerta. Investigue, observe, pergunte, aprenda tudo quanto possa sobre a confusão, como funciona, qual é o seu efeito em você e nos demais. Ao ver claramente a confusão, você se libertará dela.

P: Quando olho para mim mesmo, vejo que meu desejo mais forte é criar um monumento, construir algo que dure mais que eu. Inclusive quando penso em um lar – esposa e filhos – é porque ele é sólido, duradouro, uma prova para mim mesmo.

M: Certo, construa um monumento para si. Como quer fazer isso?

P: Não importa o que eu construa, desde que seja permanente.

M: Certamente, você pode ver por si mesmo que nada dura. Tudo fica gasto, quebra e se dissolve. O próprio alicerce sobre o qual você constrói irá ceder um dia. O que você pode construir que sobreviva a tudo?

P: Intelectualmente, verbalmente, estou ciente de que tudo é transitório. Ainda assim, meu coração quer permanência. Quero criar algo duradouro.

M: Então você deve construir sobre algo duradouro. O que você tem que seja duradouro? Nem seu corpo nem sua mente durarão. Você tem que buscar em outra parte.

P: Desejo permanência, mas não a encontro em nenhum lugar.

M: Não é você mesmo permanente?

P: Eu nasci e morrerei.

M: Você pode dizer verdadeiramente que você não existia antes de nascer, e poderá dizer depois da morte: 'agora já não existo?' Você não pode dizer, pela sua própria experiência, que você não existe. Só pode dizer: “eu sou” (eu existo). Os outros também não podem dizer-lhe que “você não é”.

P: Não há “eu sou” no sono.

M: Antes de fazer afirmações tão incisivas, examine cuidadosamente seu estado desperto. Cedo você descobrirá que ele está cheio de intervalos onde a mente fica em branco. Perceba o quão pouco você se lembra, mesmo quando está totalmente desperto. Você não pode dizer que não estava consciente durante o sono. Você apenas não se lembra. Uma lacuna na memória não é necessariamente uma lacuna na consciência.

P: Posso chegar a recordar meu estado no sono profundo?

M: Certamente! Ao eliminar os intervalos de inadvertência durante as horas de vigília, gradualmente você eliminará o grande intervalo de inadvertência mental que você chama sono. Você estará ciente de estar dormindo.

P: Mas o problema da permanência, da continuidade do ser, não é resolvido.

M: A permanência é uma mera idéia, nascida da ação do tempo. Por sua vez, o tempo depende da memória. Você chama de permanência uma memória contínua através do tempo ilimitado. Você quer eternizar a mente, o que não é possível.

P: Então, que é o eterno?

M: Aquilo que não muda com o tempo. Você não pode eternizar algo transitório, apenas o imutável é eterno.

P: Estou familiarizado com o sentido geral do que você diz. Não anseio mais conhecimento, tudo o que quero é paz.

M: Você pode ter toda a paz que quiser, basta pedir.

P: Estou pedindo.

M: Você deve pedir com um coração não dividido e deve viver uma vida íntegra.

P: Como?

M: Desapegue-se de tudo aquilo que deixa sua mente inquieta. Renuncie tudo que perturbe a paz dela. Se você quer paz, mereça-a.

P: Certamente, todo mundo merece paz.

M: Só a merecem aqueles que não a perturbam.

P: De que modo eu perturbo a paz?

M: Sendo escravo de seus desejos e temores.

P: Inclusive quando são justificados?

M: As reações emocionais nascidas da ignorância ou da inadvertência nunca são justificadas. Busque uma mente clara e um coração limpo. Tudo o que você necessita é permanecer tranqüilamente alerta, investigando a natureza real de si mesmo. Esse é o único caminho para a paz.

terça-feira, 9 de dezembro de 2008

Meher Baba - Sparks of the Truth


Deus é a eterna fonte da vida e do poder. As diferentes almas no mundo compartilham dessa vida e poder em vários níveis de acordo com sua proximidade espiritual a Deus. Quanto mais próximos estamos de Deus ou da verdade, menos separados nos sentimos e maior é nossa vida e nosso poder. Aqueles que se tornam um com Deus são o infinito reservatório de todo o poder, vida, sabedoria e felicidade. Mas os outros compartilham igualmente tudo isso em um grau limitado, de acordo com sua estação no universo. Se o mestre que realizou Deus for comparado a uma central de energia elétrica principal onde a eletricidade é gerada, as outras almas podem ser comparadas a centrais secundárias ou a baterias de armazenamento que recebem e conservam um grau limitado de eletricidade e também podem usá-la dentro dos limites de suas respectivas capacidades .

Meher Baba - O começo e o fim da criação

Enquanto a mente humana não experimenta diretamente a realidade final assim como ela é, a mente é frustrada em toda tentativa de explicar a origem do propósito da criação. O passado remoto parece ser carregado de insondável mistério e o futuro parece ser um livro completamente lacrado. A mente humana pode no máximo fazer conjecturas brilhantes sobre o passado e o futuro do universo, pois ela está limitada pelo feitiço de Maya. Ela não pode nem chegar ao conhecimento final desses pontos e nem permanecer satisfeita com a ignorância sobre eles.
“De onde?” e “Para onde?” são os dois questionamentos perpétuos e pungentes que tornam a mente humana divinamente inquieta. A mente humana não pode reconciliar-se ao infinito regresso na sua busca pela origem do mundo, nem pode reconciliar-se às infindáveis mudanças sem objetivo. A evolução é ininteligível se não tem uma causa inicial e é desprovida de qualquer significado se ela como um todo não levar a algum fim.
As próprias questões “De onde?” e “Para onde?” pressupõem o começo e o fim desta criação evolutiva. O começo da evolução é o começo do tempo e o fim da evolução é o fim do tempo. A evolução tem tanto começo quanto fim, porque o tempo também os têm. Entre o começo e o fim deste mundo mutável existem muitos ciclos, mas há, dentro e através desses ciclos, uma continuidade da evolução cósmica. O término real do processo evolucionário é chamado Mahapralaya, ou a grande aniquilação do mundo, quando o mundo torna-se o que ele era no início, digamos, Nada. O Mahapralaya do mundo pode ser comparado ao sono de uma pessoa. Assim como o variado mundo das experiências desaparece completamente para o indivíduo que está em sono profundo, o cosmos objetivo inteiro, que é a criação de Maya, se esvai dentro do nada na hora do Mahapralaya. É como se o universo realmente nunca tivesse existido.
Mesmo durante seu período evolucionário o universo é em si mesmo nada além de imaginação. De fato, há apenas uma realidade indivisível e eterna, e ela não tem começo e nem fim. Está além do tempo. Do ponto de vista dessa realidade atemporal, todo o processo do tempo é puramente imaginário. E os bilhões de anos que passaram e os bilhões que vão passar não tem o valor de nem mesmo um segundo. É como se eles nunca tivessem existido.
Portanto, o múltiplo universo evolutivo não pode ser entendido como sendo um resultado real desta Realidade única. Se ele fosse um resultado dessa realidade única, a Realidade seria ou um termo relativo ou um ser composto, o que ela não é. A realidade única é absoluta.
A Realidade única inclui em si mesma toda a existência. Ela é tudo, mas não tem nada como sua sombra. A idéia da existência que tudo inclui implica que ela não deixa nada fora do seu ser. Quando você analisa a idéia do Ser (da existência), você chega por implicação à idéia do que não existe. Essa idéia da não existência, ou do Nada ajuda você a definir claramente a idéia do Ser. O aspecto complementar do Ser é, portanto o não-ser ou o Nada. Mas o Nada não pode ser olhado como tendo sua própria existência separada e independente. Em si mesmo ele não é nada. Nem pode, em si mesmo, ser a causa de algo. O universo múltiplo e evolutivo não pode ser o resultado do nada tomado por si mesmo, e temos visto que ele também não pode ser o resultado da Realidade Una.
Como, então, o universo múltiplo e evolutivo surge?
O múltiplo e evolutivo universo surge da mistura da Realidade Una e do Nada. Ele brota do Nada, quando esse Nada é colocado contra o plano de fundo da Realidade Una. Mas isso não deve ser considerado como significando que o universo é parcialmente o resultado da Realidade Una, ou que ele tem um elemento de Realidade.
É um resultado do Nada e é nada. Ele só parece ter existência. Sua existência aparente é devido à Realidade Una, que está, nesse caso, atrás do Nada. Quando o Nada é adicionado à Realidade Una, o resultado é o múltiplo e evolutivo universo. A Realidade Una que é infinita é absoluta, não sofre nenhuma modificação, portanto. É absoluta e como tal não é afetada de forma alguma por nenhuma adição ou subtração. A Realidade Una permanece o que ela era, completa e absoluta em si mesma, não preocupada e não conectada com o panorama da criação que brota do Nada. Esse Nada pode ser comparado com o valor do zero na matemática. Em si mesmo não tem valor positivo, mas quando é adicionado aos outros números dá origem a outros valores. Da mesma maneira o múltiplo e evolutivo universo brota do Nada quando ele é combinado com a Realidade Una.
Todo o processo evolucionário está dentro do domínio da imaginação. Quando em imaginação o oceano uno da realidade fica aparentemente perturbado, surge o múltiplo mundo dos centros separados de consciência. Isso implica na divisão básica da vida - no ser e no não-ser, ou no “eu” e seu ambiente. Devido ao falso caráter incompleto desse ser limitado (que é apenas uma parte imaginada de uma totalidade realmente indivisível), a consciência não pode permanecer contente com a identificação eterna com ele. Portanto, a consciência fica presa na armadilha numa inquietude incessante, forçando-se a tentar a identificação com o não-ser. Essa porção de não-ser, ou o meio, com o qual a consciência identifica-se, torna-se afiliada ao ser na forma de “meu”. E essa porção do não-ser com a qual ela não identifica-se, torna-se o meio irredutível que inevitavelmente cria um limite e uma oposição ao ser. Portanto, a consciência não chega ao término da sua dualidade limitante, mas em sua transformação. Enquanto a consciência está sujeita ao trabalho da contaminada imaginação, ela não pode ter sucesso em dar um fim a essa dualidade. Todas as tentativas variadas que ela faz para a assimilação do não-ser (ou dos arredores, ou do meio) resultam meramente na substituição da dualidade inicial por outras inumeráveis formas novas da mesma dualidade. A aceitação e a rejeição de certas porções do meio expressam a si mesmas respectivamente como “querer” e “não querer”, dando assim origem aos opostos do prazer e da dor, do bem e do mal e assim por diante. Mas nem aceitação nem rejeição podem levar à libertação da dualidade, e a consciência encontra-se, portanto, engajada numa oscilação incessante de um oposto ao outro. O processo inteiro da evolução do individuo é caracterizado por essa oscilação entre os opostos.
A evolução do indivíduo limitado está completamente determinada pelos sanskaras acumulados por ele através das eras e embora seja tudo parte da imaginação, o determinismo é completo e automático.
Toda ação e experiência, não importa o quão efêmera, deixa para trás uma impressão no corpo mental. Essa impressão é uma modificação objetiva do corpo mental; e como o corpo mental permanece o mesmo, as impressões acumuladas pelo indivíduo são capazes de persistir por várias vidas.
Quando os sanskaras acumulados começam então a se expressar (em vez de meramente permanecerem latentes no corpo mental), eles são experimentados como desejos, isto é, eles são tomados como sendo subjetivos.
O objetivo e o subjetivo são os dois aspectos dos sanskaras: o primeiro é o estado passivo de latência, e o segundo é um estado ativo de manifestação.
Através da fase ativa, os sanskaras acumulados determinam cada experiência e ação do ser limitado. Assim como vários metros de filme têm de passar no projetor do cinema para mostrar uma ação breve na tela, muitos sanskaras estão frequentemente envolvidos em determinar uma única ação do ser limitado. Através de tais expressões e satsfação em experiências, os sanskaras são gastos. Os sanskaras fracos são gastos mentalmente e os mais fortes são gastos sutilmente na forma de desejos e experiência imaginativa; aqueles sanskaras que são poderosos são gastos fisicamente ao expressarem-se através de ações corporais. Embora esse consumo dos sanskaras prossiga continuamente, ele não resulta na libertação dos sanskaras, porque novos sanskaras estão inevitavelmente sendo criados - não apenas através das ações das pessoas, mas até mesmo pelo próprio processo de consumo. Então, a carga de sanskaras segue aumentando, e o indivíduo encontra-se indefeso diante do problema de se livrar do fardo. Os sanskaras depositados por experiências e ações específicas, tornam a mente suscetível a experiências e ações similares. Porém, depois de alcançado um certo ponto, essa tendência é contraposta e impedida por uma reação natural que consiste numa completa comutação para seu oposto direto, abrindo espaço para a operação dos sanskaras opostos.
Muito frequentemente, os dois opostos formam partes da mesma e única corrente de imaginação. Por exemplo, uma pessoa pode primeiro experimentar que é um escritor famoso – com riqueza, fama, família e todas a coisas agradáveis da vida – e depois na mesma vida, pode experimentar que perdeu sua fortuna, fama, família e todas as coisas agradáveis da vida. As vezes parece que uma corrente de imaginação não contém os dois opostos na mesma vida. Por exemplo, um homem pode experimentar durante sua vida que é um poderoso rei sempre vitorioso nas batalhas. Nesse caso ele tem que balancear essa experiência experimentando derrotas ou algo parecido na próxima vida, vivendo mais uma vida para completar sua corrente de imaginação. A compulsão puramente psicológica dos sanskaras está assim sujeita à necessidade mais profunda da alma em conhecer a si mesma.
Suponha que uma pessoa matou alguém nesta vida. Isso deposita no seu corpo mental os sanskaras de assassinato. Se a consciência viesse a ser determinada simplesmente e apenas por essa tendência inicial criada por esses sanskaras, ele seguiria matando os outros indefinidamente ad infinitum, cada vez reunindo momentuns seguintes dos atos subseqüentes do mesmo tipo. Não haveria escape desse determinismo recorrente, se não fosse pelo fato de que a lógica da experiência provê um impedimento necessário para isso. A pessoa logo percebe o caráter incompleto da experiência de um oposto, e, inconscientemente, busca restaurar o equilíbrio perdido indo para o outro oposto.
Assim, o individuo que teve a experiência de matar desenvolve uma necessidade psicológica e uma susceptibilidade por ser morto. Ao matar outra pessoa ele apreciou apenas uma porção da situação total na qual ele é um partido, ou seja, a parte do matador. A parte complementar da situação total (isto é, o papel de ser morto) permanece para ele não entendida e estranha, embora, tenha se introduzido na sua experiência. Surge assim, a necessidade de completar a experiência atraindo para si mesmo o oposto daquilo que ele experimentou pessoalmente e a consciência tem uma tendência de atender essa nova necessidade urgente. Uma pessoa que matou logo desenvolverá uma tendência a ser morto para cobrir a situação inteira através de experiência pessoal.
A pergunta que surge aqui é: quem aparecerá para matá-lo na próxima vida? Pode ser a mesma pessoa que foi morta na vida anterior, ou pode ser alguma outra pessoa com sanskaras similares. Em conseqüência da ação e da interação entre os indivíduos, entram em ação as ligações ou os laços “sanskaricos” e quando o indivíduo adota um novo corpo físico, pode ser entre aqueles que têm laços sanskaricos anteriores ou entre aqueles que têm sanskaras similares.
Mas o ajuste da vida é tal, que torna possível o jogo livre da dualidade evolutiva. Como o fio do tear do tecelão, a mente humana move-se dentro de dois extremos, desenvolvendo a trama e o tecido do pano da vida. O desenvolvimento da vida espiritual é melhor representado não como uma linha reta, mas como um curso em zigue-zague. Considere a função das duas margens de um rio. Se não houvesse nenhuma margem, as águas do rio iriam se dispersar, tornando impossível que o rio alcançasse seu destino. Da mesma maneira, a força-vida dissipar-se-ia de inumeráveis e infinitas maneiras, se não estivesse confinada entre os dois pólos dos opostos. Essas margens do rio da vida são melhor observadas não como duas linhas paralelas, mas como duas linhas convergentes que se encontram no ponto da Liberação. A quantidade de oscilação torna-se cada vez menor conforme o indivíduo aproxima-se do objetivo e cede completamente quando realiza o objetivo. É como o movimento de uma boneca que tem seu centro de gravidade na base, fazendo com que ela tenha a tendência de ficar parada quando sentada. Se for agitada, ela continua a balançar de um lado para o outro por algum tempo, mas a cada movimento ela cobre uma extensão mais curta, e por fim, a boneca estaciona. No caso da evolução cósmica, tal parada da alternação entre os opostos significa Mahapralaya, e na evolução espiritual do indivíduo, significa a Libertação.
O degrau da dualidade para a não dualidade não é meramente um caso de diferença no estado de consciência. Quando os dois são qualitativamente diferentes, a diferença entre eles é infinita. O primeiro é um estado de não-Deus e o segundo é um estado de Deus. Essa infinita diferença constitui o abismo entre o sexto plano de consciência e o sétimo. Os seis planos inferiores de involução da consciência* estão separados uns dos outros por um tipo de vale. Mas embora a diferença entre eles seja grande, não é infinita pois todos estão igualmente sujeitos à bipolaridade da experiência limitada, consistindo na alternância entre os opostos. A diferença entre o primeiro plano e o segundo, o segundo e o terceiro e assim por diante até o sexto plano, é grande mas não infinita. Segue-se que, estreitamente falando, nenhum dos seis planos da dualidade pode ser entendido como estando realmente mais perto do sétimo plano do que qualquer outro. A diferença entre qualquer um dos seis planos e o sétimo plano é infinita, assim como a diferença entre o sexto e o sétimo plano é infinita. O progresso através dos seis planos é o progresso na imaginação, mas a realização do sétimo plano é a cessação da imaginação e, portanto, o despertar do indivíduo na Consciência-Verdade. O progresso ilusório através dos seis planos não pode, entretanto, ser totalmente evitado. A imaginação tem que ser completamente exaurida antes que uma pessoa possa realizar a Verdade. Quando um discípulo tem um mestre perfeito, ele tem que atravessar todos os seis planos. O mestre pode levar o discípulo através dos planos interiores tanto com os olhos abertos ou sob um véu. Se o discípulo é levado sob a ação de uma venda e não está consciente dos planos que está passando, os desejos persistem até o sétimo plano; mas se é levado com os olhos abertos e está consciente dos planos que está passando, nenhum desejo resta a partir do quinto plano.
Se o mestre vem para trabalhar, ele frequentemente escolhe levar seus discípulos vendados, pois eles tenderão a ser mais ativamente úteis para o trabalho do mestre quando levados vendados do que com os olhos abertos.
O cruzamento através dos planos é caracterizado pelo desembaraçar dos sanskaras. Esse processo deve ser cuidadosamente distinguido daquele do despendimento. No processo de despendimento, os sanskaras tornam-se dinâmicos e liberam-se em ação ou experiência. Isso não leva à emancipação final dos sanskaras, sendo que as incessantes novas acumulações de sanskaras mais do que substituem os que foram despendidos, e o próprio despendimento é responssável pelos sanskaras seguintes. No processo de desembaraçamento, entretanto, os sanskaras são enfraquecidos e aniquilados pela chama do anseio pelo infinito.
O anseio pelo Infinito pode ser a causa de muito sofrimento espiritual. Não há comparação entre a agudez do sofrimento ordinário e a agudez do sofrimento espiritual que uma pessoa tem que passar enquanto cruza os planos. O primeiro é o efeito dos Sanskaras, e o segundo é o efeito do desembaraçamento. Quando o sofrimento físico chega ao seu clímax, a pessoa fica inconsciente e então tem alívio dele, mas não há tal alívio mecânico para o sofrimento espiritual. Sofrimento espiritual, entretanto, não se torna entediante, pois também é misturado com um tipo de prazer. O anseio pelo infinito fica acentuado e agudo até que chega em seu clímax, então gradualmente começa a esfriar. Enquanto esfria, a consciência não desiste de maneira nenhuma do anseio pelo infinito, mas continua buscando seu objetivo de realizar o Infinito. Esse estado de anseio esfriado, porém latente, é preliminar à realização do Infinito. O anseio nesse estágio é o instrumento para aniquilar todos os outros desejos e está pronto para ser minado pela insondável quietude do contentamento infinito. Antes do anseio pelo Infinito ser suprido pela realização do Infinito, a consciência tem que passar do sexto para o sétimo plano. Tem que passar da dualidade para a não-dualidade. Ao invés de vagar em imaginação, ela tem de chegar ao fim da imaginação.
O Mestre entende a realidade una como sendo a única Realidade e o Nada como sendo meramente sua sombra. Para ele, o tempo é engolido na eternidade. Como ele percebeu o aspecto atemporal da Realidade, ele está além do tempo e carrega no seu ser tanto o início como o fim do tempo. Ele permanece não mobilizado pelo processo temporal que consiste na ação e na interação dos muitos. A pessoa ordinária não conhece nem o começo nem o fim da criação. Assim, ela é derrotada pela marcha dos eventos, os quais parecem grandes por causa da falta de perspectiva apropriada enquanto ele está capturado pelo tempo. Ela olha para todas as coisas em termos da possível satisfação ou insatisfação dos seus sanskaras. Ela fica, portanto, profundamente perturbada pelos acontecimentos deste mundo. Todo universo objetivo aparece para ela como sendo uma limitação que não é bem-vinda e que tem que ser superada ou tolerada.
O Mestre, por outro lado, está livre da dualidade e dos sanskaras característicos da dualidade. Ele está livre de toda limitação. A tempestade e stress do universo não afetam o seu Ser. Todo o alvoroço do mundo, com seus processos construtivos e destrutivos, não pode ter importância especial para ele. Ele adentrou no santuário da verdade, que é a morada daquele significado eterno que é refletido apenas fraca e parcialmente nos valores transitórios da criação sempre em mudança. Ele compreende dentro de seu Ser toda existência, e olha para toda a peça da manifestação como meramente um jogo.

sexta-feira, 28 de novembro de 2008

Goethe

Segure firme o presente.
Cada situação, não, cada momento é de um valor infinito,
Pois é o representante de toda a eternidade.
J.W. Goethe

quinta-feira, 27 de novembro de 2008

terça-feira, 25 de novembro de 2008

Jalaluddin Rumi - A hora da união

De toda a parte chega o segredo de Deus.
Eis que todos correm, desconcertados
Dele, porque em todas as almas sedentas, chega o grito do aguadeiro.
Todos bebem o leite da generosidade divina
E querem agora conhecer o seio de sua fonte.
Apartados, anseiam por ver o momento do encontro e da união.
A cada nascer do sol oram juntos: muçulmanos, cristãos, judeus.
Abençoado todo aquele em cujo coração ressoa o grito celeste que chama,
'Vem. Limpa bem teus ouvidos e recebe nítida essa voz'.
O som do céu chega como um sussurro.
Não manches teus olhos com a face dos homens.
Vê que chega o imperador da vida eterna.
Se te turvaram os olhos,
Lava-os com lágrimas, pois nelas encontrarás a cura de teus males.
Acaba de chegar do Egito uma caravana de Açúcar.
E já se ouvem os sinos e os passos cansados.
Silêncio. Eis que chega o rei que vai completar o poema.

Gurdjieff - Liberdade


Liberdade leva à liberdade. Isso é verdade. Não verdade entre aspas, mas no sentido real. A verdade não é apenas teoria, nem apenas palavras, ela pode ser realizada, percebida. A liberdade de que falo é o objetivo de todas as escolas, de todas as religiões de todos os tempos. É algo muito grande. Todos consciente ou inconscientemente querem liberdade. Existem dois tipos de liberdade: a maior e a menor. Você não pode atingir a liberdade maior até que tenha atingido a liberdade menor. A liberdade maior é a liberação de nós mesmos das influências externas e a menor, das influências internas.
Para nós iniciantes a liberdade menor é uma coisa muito grande; ela não está ligada à nossa dependência das influências externas. A escravidão interior vem de muitas fontes; depende de muitas coisas independentes; às vezes de uma coisa às vezes de outra. Existem tantas, que se tivéssemos que lutar contra cada uma separadamente para podermos nos livrar delas, metade da vida não seria suficiente. Portanto devemos encontrar meios, um método de trabalho, que nos capacite destruir simultaneamente o maior número possível de inimigos dentro de nós, dos quais vêm essas influências. Dentre esses inimigos, dois dos principais são a vaidade e o amor -próprio ou auto-orgulho. Num certo ensinamento eles são chamados de emissários ou representantes do demônio, e por uma razão ou outra são referidos como Madame Vaidade e Mister Amor-Próprio.

Meher Baba - A Prece do Arrependimento (8 de Novembro de 1952)



Nos arrependemos, ó mais piedoso Deus, por todos os nossos pecados;
Por cada pensamento que foi falso, injusto ou impuro;
Por cada palavra dita que não deveria ter sido dita;
Por cada ação feita que não deveria ter sido feita;
Nos arrependemos por cada ação, palavra e pensamento
Inspirados pelo egoísmo;
E por cada ação, palavra e pensamento inspirados pelo rancor.
Nos arrependemos mais especialmente por cada pensamento luxurioso,
Por cada ação luxuriosa; Por cada mentira, por toda hipocrisia;
Por cada promessa feita mas não cumprida;
E por toda calúnia e insulto.
Mais especialmente também, nos arrependemos por cada ação
Que tenha trazido ruína aos outros;
Por cada palavra e ação que tenha causado dor aos outros;
Ou por cada desejo que os outros sentissem dor.
Em sua piedade ilimitada, pedimos que nos perdoe, ó Deus,
Por todos esses pecados cometidos por nós;
E pedimos para nos perdoar por nossas constantes falhas
Em pensar, falar e agir de acordo com tua vontade.

Meher Baba - O Propósito da Criação

Consciente ou inconscientemente, cada criatura viva procura uma coisa. Nas formas inferiores de vida e nos seres humanos menos avançados, a busca é inconsciente; em seres humanos avançados, é consciente. O objeto da busca é chamado por muitos nomes: felicidade, paz, liberdade, verdade, perfeição, auto-realização, realização de Deus e união com Deus. Essencialmente, é uma busca por tudo isso, mas de uma maneira especial. Todos têm momentos de felicidade, lampejos da verdade, experiências fugazes de união com Deus; o que querem realmente é tornar isso permanente, estabelecer uma realidade imutável no meio da constante mudança. Esse é um desejo natural, baseado fundamentalmente em uma memória (que pode ser ofuscada ou clara, de maneira análoga à evolução da alma individual que pode ser elevada ou não elevada) de sua unidade essencial com Deus. Pois cada coisa viva é uma manifestação parcial de Deus, condicionada somente por sua falta de conhecimento de sua própria natureza verdadeira. O todo da evolução, de fato, é uma evolução da divindade inconsciente para a divindade consciente, em que Deus propriamente dito, essencialmente eterno e imutável, assume uma variedade infinita de formas, aprecia uma variedade infinita de experiências e transcende uma variedade infinita de limitações auto-impostas. A evolução do ponto de vista do criador é um esporte divino, no qual o incondicionado testa a infinitude de seu conhecimento, poder e contentamento absolutos no meio de todas as circunstâncias. Mas a evolução do ponto de vista da criatura, com seu conhecimento limitado, poder limitado, capacidade limitada para apreciar o contentamento, é um épico de descanso e esforço alternados, alegria e tristeza, amor e ódio - até que na pessoa aperfeiçoada Deus equilibra os pares de opostos, e a dualidade é transcendida. Então a criatura e o criador se reconhecem como um; a imutabilidade é estabelecida no meio da mudança e a eternidade é experimentada dentro do tempo. Deus conhece-se como Deus, imutável essencialmente, infinito na manifestação, sempre experimentando o contentamento supremo da auto-realização numa continua ciência fresca de si mesmo por si mesmo. Esta realização deve ocorrer e ocorre somente no meio da vida, pois somente no meio da vida é que a limitação pode ser experimentada e transcendida, e onde a liberdade subseqüente à limitação pode ser apreciada.

Meher Baba - Discursos - Deus e o Indivíduo

Deus é infinito. Ele está além dos opostos do bem e do mal, certo e errado, virtude e vício, nascimento e morte, prazer e sofrimento. Tais aspectos duais não pertencem a Deus. Se você toma Deus como uma entidade separada, Ele se torna um termo na existência das relações.
Assim como o bem é a contraparte do mal, Deus se torna a contraparte de Não-Deus; e o Infinito passa a ser olhado como o oposto do finito. Quando você fala do infinito e do finito, você está se referindo a eles como dois; e assim, o Infinito se torna a segunda parte da dualidade. Mas o infinito pertence à ordem não-dual de ser. Se o infinito é visto como a contraparte do finito, estritamente falando, ele já não é infinito, mas sim, uma espécie de finito; pois está fora do finito como seu oposto, tornando-se assim, limitado. Já que o infinito não pode ser a segunda parte do finito, a existência aparente do finito é falsa. Apenas o infinito existe. Deus não pode ser levado ao nível da dualidade. Há somente um ser na realidade, que é a Alma Universal. A existência do finito ou do limitado é somente aparente ou imaginária.
Você é infinito. Você está realmente em toda a parte. Mas você pensa que você é o corpo, e, portanto, considera-se limitado. Se pensa que é o corpo, você não conhece sua verdadeira natureza. Se olhasse para dentro de si e experimentasse sua própria alma em sua verdadeira natureza, você perceberia que você é infinito e além de toda criação. Entretanto, você se identifica com o corpo. Essa falsa identificação é devida à ignorância, que se torna efetiva por meio da sua mente. Uma pessoa comum pensa que ela é o corpo físico. Um indivíduo espiritualmente avançado pensa que ele é o corpo sutil. O Santo pensa que é o corpo mental. Porém, em nenhum deles a alma tem auto-conhecimento direto. Não é um caso de pensamento puro que está de todo isento de ilusão.
A alma enquanto alma é infinita –independente da mente ou do corpo– porém, devido à ignorância, a alma entra no domínio da mente e torna-se um “pensador”. Às vezes identifica-se com o corpo e às vezes com a mente. Do ponto de vista limitado de uma pessoa que não foi além do domínio de Maya, existem inúmeros indivíduos. Parece que existem tantos indivíduos quanto o número de mentes e corpos. De fato, existe apenas uma alma universal, mas o indivíduo pensa que ele é diferente dos outros indivíduos. A mesma e única alma está definitivamente por trás das mentes dos indivíduos aparentemente diferentes, e através deles, tem as várias experiências da dualidade. O Um dentro dos muitos passa a experimentar a Si mesmo como um dentre muitos. Isso deve-se à imaginação ou ao falso pensar. O pensamento torna-se falso por causa da interferência dos Sanskaras (impressões) acumulados durante o processo da evolução da consciência.

A função da consciência é pervertida pela operação dos Sanskaras, que se manifestam através dos desejos. Por muitas vidas, a consciência está continuamente sendo oprimida pelos efeitos posteriores das experiências. A percepção da alma é limitada por essas consequências.
O pensamento da alma não pode romper a barreira criada pelos sanskaras, e a consciência torna-se uma indefesa prisioneira das ilusões projetadas por seu próprio pensar falso. Essa falsificação do pensamento está presente não apenas em casos onde a consciência está parcialmente desenvolvida, mas também no homem, onde ela está completamente desenvolvida. A evolução progressiva da consciência desde o estágio de pedra culmina no homem. A história da evolução é a história do desenvolvimento gradual da consciência. O fruto da evolução é a consciência completa, que é característica do homem. Porém, mesmo essa consciência completa é como um espelho coberto de poeira. Devido às operações dos sanskaras, ela não fornece conhecimento claro e verdadeiro da natureza da alma. Embora totalmente desenvolvida, ela não produz a verdade, mas uma construção imaginativa, sendo que seu livre funcionamento está impedido pelo peso dos sanskaras. Ademais, ela não pode se estender além da gaiola criada pelos seus desejos, ficando portanto, limitada em seu campo de ação. As fronteiras nas quais a consciência pode mover-se é prescrita pelos sanskaras, e o funcionamento da consciência é também determinado pelos desejos. Como a meta dos desejos é a auto-satisfação, toda consciência torna-se auto-centrada e individualizada. A individualização da consciência pode num certo sentido ser entendida como o efeito do turbilhão de desejos. A alma é capturada pela rede dos desejos e não pode sair da individualidade circunscrita constituída por esses desejos. Ela imagina essas barreiras e torna-se auto-hipnotizada. Ela olha para si mesma como limitada e separada dos outros indivíduos. Fica enredada na existência dualística e imagina um mundo de diversa desunião composto de muitos indivíduos com suas respectivas mentes e corpos.

Quando os raios do sol são passados por um prisma eles se dispersam e tornam-se separados por causa da refração. Se cada um desses raios tivesse consciência, eles iriam considerar a si mesmos como separados dos outros raios, esquecendo inteiramente que na fonte e no outro lado do prisma eles não tinham existência separada. Da mesma maneira, o ser único descende ao domínio de Maya e assume uma multiplicidade que de fato não existe. A desunião dos indivíduos não existe na verdade, apenas na imaginação. A alma universal una imagina desunião em si mesma, e dessa divisão surge o pensamento de “eu” e “meu” como opostos a “você” e “seu.” Embora na verdade a alma seja uma unidade indivisível e absoluta, ela aparece como diversas, dividida devido ao trabalho da sua própria imaginação. Imaginação não é uma realidade. Mesmo no seu vôo mais alto, é um afastamento da verdade. A alma não é nada além da verdade. A experiência que ela acumula em termos do ego individualizado é tudo imaginação. É uma má compreensão da alma. Da imaginação da alma universal nascem muitos indivíduos. Isso é Maya, ou Ignorância. Lado a lado com o nascimento da individualidade limitada e separada, também vem à existência o universo objetivo. Como a individualidade tem uma existência separada não na realidade, mas, apenas na imaginação, o universo objetivo também não tem realidade separada e independente. É o ser universal aparecendo no segundo papel da manifestação através desses atributos.
Quando a alma descende ao domínio de Maya, ela toma para si as limitações da existência múltipla. Essa auto-limitação da alma pode ser vista como seu auto-sacrificio no altar da consciência. Embora ela eternamente permaneça o mesmo absoluto infinito, ela sofre um tipo de contração atemporal através da sua aparente descida ao mundo do tempo, da variedade, e da evolução. O que realmente evolui, entretanto, não é a própria alma, é apenas a consciência que, devido às suas limitações, dá origem à individualidade limitada.
A história da individualidade limitada é uma história do desenvolvimento de um embaraço triplo com a mente, a energia e a matéria (o corpo).
A dualidade prevalece em todos esses domínios e a alma fica presa nisso, embora, em sua essência ela seja além da dualidade. A dualidade implica a existência de opostos limitando-se e equilibrando-se um ao outro através de tensão mútua. Bem e mal, virtude e vício, são exemplos de tais opostos. A alma ignorante capturada na rede da dualidade está nas garras tanto do bem quanto do mal. A dualidade do bem e do mal surge devido à ignorância mas, uma vez presa nela, a alma fica sob seu controle. Durante a evolução de um embaraço triplo com a matéria (corpo), a energia e a mente, a alma ignorante está continuamente nas garras dos desejos. Ela quer o bom e o mau do mundo grosseiro, quer o bom e o mau do mundo sutil e quer o bom e o mau do mundo mental. E devido a essa distinção de bom e mau, o querer torna-se bom e mau. As vontades, portanto vêm a ser inevitavelmente limitadas pela perpétua tensão dos opostos. Isso faz surgir uma infindável oscilação de um estado a outro sem chegar ao estado ilimitado, que pode apenas ser descoberto no aspecto imutável e eterno da vida. O infinito é para ser visto além do domínio da dualidade. Isso se torna possível apenas quando a consciência pode emergir da individualidade limitada ao romper a barreira dos sanskaras.
Temos visto que o campo possível para a consciência é limitado pelos sanskaras. Essa limitação cria uma divisão da psique humana em duas partes. Uma parte cai no campo da consciência e a outra parte além dela. A parte inconsciente, em sua extensão total é idêntica ao poder que existe atrás da matéria. É referida como Deus pelas religiões ortodoxas. A realidade final, que é representada simbolicamente por tais conceitos, pode ser conhecida completamente somente trazendo o inconsciente para a consciência. Uma extensão da consciência consiste em estar consciente daquilo que era anteriormente uma parte do inconsciente. A conquista progressiva do inconsciente pelo consciente culmina na consciência consumada, que é ilimitada no seu campo de ação e livre em sua função. Entre esse estado mais elevado de consciência e a consciência limitada -embora completa- da média da humanidade, existem aproximadamente quarenta e nove graus de consciência iluminada. Eles marcam os estágios importantes da iluminação crescente. A distância entre a consciência nublada da média da humanidade e a consciência inteiramente iluminada de um mestre perfeito é criada pelos sanskaras que causam o egoísmo. Eles podem ser removidos por um caráter perfeito, pela devoção e pelo serviço altruísta, mas os melhores resultados nesse sentido, são alcançados com a ajuda de um mestre perfeito.
O avanço espiritual não consiste no desenvolvimento futuro da consciência (pois ela já está totalmente desenvolvida no homem) mas consiste na Emancipação da consciência das amarras dos sanskaras. Embora em sua essência a consciência seja a mesma em todos os diferentes estados da existência, ela nunca pode ser consumada a menos que reflita o conhecimento do infinito sem a menor sombra da ignorância, e também, que cubra toda a extensão da criação, iluminando desse modo as diferentes esferas da existência.
Toda vez que vai dormir, você fica inconscientemente unido com a realidade infinita. Essa unificação envolve a extensão da inconsciência sobre a consciência. Ela portanto, faz uma ponte sobre o abismo entre a inconsciência e a consciência. Porém, estando inconsciente dessa união,
você não tira nenhum benefício disso conscientemente. É por essa razão que você ao acordar novamente do sono profundo, fica ciente do mesmíssimo indivíduo banal e começa a agir e experimentar exatamente como agia e experimentava antes de dormir. Se sua união com a suprema realidade tivesse sido uma união consciente, você teria despertado dentro de uma vida completamente nova e infinitamente rica.
Um mestre perfeito está conscientemente unido com a realidade infinita. No caso dele, o abismo entre a consciência e a inconsciência é transposto, não por uma extensão da inconsciência sobre a consciência (como numa pessoa que aprecia o sono profundo), mas pela extensão da consciência sobre a inconsciência. O crescimento e a diminuição da consciência é aplicável apenas ao indivíduo limitado. No caso de um mestre perfeito, a conquista do inconsciente pelo consciente é final e permanente, e, portanto, seu estado de Auto-conhecimento é contínuo e inquebrantável e permanece o mesmo todo o tempo sem nenhuma diminuição. A partir daí você pode ver que o mestre perfeito nunca dorme no sentido ordinário da palavra. Quando descansa seu corpo ele não experimenta uma lacuna em sua consciência.

No estado de perfeição, a consciência total torna-se consumada pelo desaparecimento de todos os obstáculos à Iluminação. A conquista do inconsciente pelo consciente é completa, e a pessoa habita continuamente na plena chama da Iluminação ou como que unificada com a Iluminação.
Ela se torna a própria Iluminação. Enquanto uma pessoa permanece sob o domínio da dualidade e olha para as experiências diversas como sendo reais e finais, ela não atravessou o domínio da Ignorância. No estado de compreensão final, uma pessoa percebe que o Infinito, que é um sem um segundo, é a única Realidade. O Infinito penetra e inclui toda existência, não deixando nada como seu rival. Uma pessoa que tem tal realização atingiu o estado mais elevado de consciência. Nesse estado, a consciência total, que é o fruto da evolução, é retida; mas as limitações dos sanskaras e dos desejos são completamente transcendidas. A individualidade limitada, que é criação da Ignorância, é transformada na Individualidade divina, que é ilimitada. A ilimitável consciência da Alma Universal torna-se individualizada nesse foco sem gerar nenhuma forma de ilusão. A pessoa está livre de todos os desejos auto-centrados e torna-se o canal do fluir espontâneo da vontade suprema e universal, que expressa a divindade.
A Individualidade torna-se ilimitada através do desaparecimento da Ignorância. Uma vez que não está prejudicada pela separação de Maya e confundida em sua realidade, ela aprecia o estado de Liberação no qual há consciência sem objeto, Ser puro e uma alegria límpida. Tal pessoa não tem mais nenhuma das ilusões que deixam perplexos e desconcertados os homens. Num certo sentido ela está morta. O ego pessoal, que é a fonte do sentido de separação, foi aniquilado para sempre. Mas num outro sentido, ela está livre para sempre com amor insuperável e contentamento eterno. Tem poder e sabedoria infinitos e o universo inteiro para ela é um campo para seu trabalho espiritual de aperfeiçoar a humanidade.

sexta-feira, 21 de novembro de 2008

P. D. Ouspensky - O Quarto Caminho



PSICOLOGIA DA EVOLUÇÃO POSSÍVEL AO HOMEM

SUMÁRIO
Introdução 1
PRIMEIRA CONFERÊNCIA 3
SEGUNDA CONFERÊNCIA 23
TERCEIRA CONFERÊNCIA 41
QUARTA CONFERENCIA 53
QUINTA CONFERÊNCIA 67

INTRODUÇÃO

Durante anos recebi numerosas cartas de meus leitores. Todos perguntavam-me o que tinha feito depois de escrever meus livros, publicados em inglês em 1920 e 1931, mas redigidos desde 1910 e 1912.
Nunca podia responder a essas cartas. Só para tentar fazê-lo, necessitaria de livros inteiros. Porém, quando meus correspondentes moravam em Londres, onde me instalara em 1921, organizava, em sua intenção, ciclos de conferências, nas quais tentava responder às suas perguntas. Explicava-lhes o que descobrira depois de haver escrito meus dois livros e em que direção se engajara o meu trabalho.
Em 1934 escrevi cinco conferências preliminares que davam uma idéia geral do objeto de meus estudos, bem como das linhas de trabalho que seguia comigo determinado número de pessoas. Reunir tudo isso numa única conferência e mesmo em duas ou três era totalmente impossível; por isso, advertia sempre ser inútil assistir a uma ou duas conferências, mas serem necessárias no mínimo cinco, ou talvez dez, para se ter uma idéia da orientação do meu trabalho. Essas conferências continuaram desde então e, durante todo esse período, corrigi-as e reescrevi-as várias vezes.
No conjunto, achei essa organização geral satisfatória. Liam-se cinco conferências, estando eu presente, ou então ausente. Os ouvintes podiam fazer perguntas e, se tentavam seguir os conselhos e indicações que lhes eram dados — e que diziam respeito sobretudo à observação de si e a certa disciplina interior —, adquiriam rapidamente, pela prática, uma compreensão mais do que suficiente do que eu fazia.
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É claro que sempre reconheci não serem cinco conferências o bastante e. nas conversações seguintes, retomava os dados preliminares para desenvolvê-los, tentando fazer ver aos ouvintes sua própria posição diante do novo conhecimento.
Tornou-se evidente para mim que, para muitos dentre eles, a principal dificuldade era dar-se conta de que tinham realmente ouvido coisas novas, quero dizer, coisas que nunca tinham ouvido antes.
Sem confessá-lo a si mesmos, tentavam sempre negar em pensamento a novidade do que tinham ouvido e esforçavam-se, qualquer que fosse o assunto, em retraduzir tudo em sua linguagem habitual. Naturalmente, não podia levar isso em conta. Sei que não é fácil reconhecer que estamos ouvindo coisas novas. Estamos de tal maneira habituados às velhas cantigas, aos velhos refrões, que há muito deixamos de esperar, deixamos até de crer que possa existir alguma coisa nova. E, quando ouvimos formular idéias novas, tomamo-las por velhas idéias ou pensamos que podem ser explicadas ou interpretadas com o auxílio de velhas idéias. De fato, é tarefa árdua compreender a possibilidade e a necessidade de idéias realmente novas; isso requer tempo e revisão de todos os valores correntes.
Não posso assegurar que, desde o início, encontrarão aqui idéias novas, isto é, idéias das quais nunca tenham ouvido falar. Mas, se tiverem paciência, não tardarão a notá-las, e desejo-lhes, então, que não as deixem escapar e cuidem para não interpretá-las da velha maneira.
Nova lorque, 1945
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PRIMEIRA CONFERÊNCIA

Vou falar do estudo da psicologia, mas devo preveni-los de que a psicologia a que me refiro é muito diferente do que possam conhecer por esse nome. Antes de tudo, devo dizer que nunca, no curso da história, a psicologia se encontrou em nível tão baixo. Perdeu todo contato com sua origem e todo o seu sentido, a tal ponto que hoje é difícil definir o termo “psicologia”, isto é, precisar o que é a psicologia e o que ela estuda. E isto, apesar de, no curso da história, jamais se ter visto tantas teorias psicológicas nem tantos livros sobre psicologia.
A psicologia é, às vezes, chamada uma ciência nova. Nada mais falso. Ela é, talvez, a ciência mais antiga; infelizmente, em seus aspectos essenciais, é uma ciência esquecida. Como definir a psicologia? Para compreender isso, é preciso dar-se conta de que, exceto nos tempos modernos, a psicologia jamais existiu com seu próprio nome. Por vários motivos, sempre foi suspeita de apresentar tendências falsas e subversivas, de caráter religioso, político ou moral, e sempre teve que se ocultar sob diferentes disfarces.
Durante milênios, a psicologia existiu com o nome de filosofia. Na Índia, todas as formas de Ioga, que são essencialmente psicologia, são descritas como um dos seis sistemas de filosofia. Os ensinamentos sufis, que são, antes de tudo, de ordem psicológica, são considerados em parte religiosos, em parte metafísicos. Na Europa, até pouco tempo atrás, nos últimos anos do século XIX, muitas obras de psicologia eram citadas como obras de “filosofia”. E embora quase todas as subdivisões da filosofia, tais como a lógica, a teoria do conhecimento, a ética e a
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estética, refiram-se ao trabalho do pensamento humano ou ao dos sentidos, considerava-se a psicologia inferior à filosofia e relacionada somente com os aspectos mais baixos ou mais triviais da natureza humana. Ao mesmo tempo que subsistia com o nome de filosofia, a psicologia permaneceu por mais tempo ainda associada a uma ou outra religião. Isso não significa que religião e psicologia jamais tenham sido uma única e mesma coisa, nem que a relação entre religião e psicologia tenha sido sempre reconhecida. Mas não há dúvida de que quase todas as religiões conhecidas — evidentemente não falo das pseudo-religiões modernas —desenvolveram
esta ou aquela espécie de ensinamento psicológico, acompanhado, muitas vezes, de certa prática, de modo que freqüentemente o estudo da religião comportava, já por si mesmo, o da psicologia.
Na literatura religiosa mais ortodoxa de diferentes países e diversas épocas encontram-se excelentes obras sobre psicologia. Por exemplo, esta compilação de autores que datam dos primeiros tempos do cristianismo e que se conhece pelo título geral de Philokalia, livros que ainda hoje estão em uso na igreja oriental, onde são reservados principalmente para a instrução dos monges.
No tempo em que a psicologia estava ligada à filosofia e à religião, ela existia também sob a forma de Arte. Poesia, Tragédia, Escultura, Dança, a própria Arquitetura, eram meios de transmissão do conhecimento psicológico. Certas catedrais góticas, por exemplo, eram essencialmente tratados de psicologia.
Na antiguidade, antes que a filosofia, a religião e a arte adotassem as formas independentes sob as quais as conhecemos hoje, a psicologia encontrava sua expressão nos Mistérios, tais como os do Egito e da Grécia antiga. Mais tarde, desaparecidos os Mistérios, a psicologia sobreviveu a eles sob a forma de ensinamentos simbólicos, que ora se encontravam ligados à religião da época, ora não, tais como a Astrologia, a Alquimia, a Magia e, entre os mais modernos, a Maçonaria, o Ocultismo e a Teosofia.
Aqui é indispensável observar que todos os sistemas e doutrinas psicológicos, tanto os que existiram ou existem abertamente,
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como aqueles que permaneceram ocultos ou disfarçados, podem dividir-se em duas categorias principais.
Primeira: as doutrinas que estudam o homem tal como o encontram ou tal como o supõem ou imaginam. A “psicologia científica” moderna, ou o que se conhece por esse nome, pertence a essa categoria. Segunda: as doutrinas que estudam o homem não do ponto de vista do que ele é ou parece ser, mas do ponto de vista do que ele pode chegar a ser, ou seja, do ponto de vista de sua
evolução possível. Estas últimas são, na realidade, as doutrinas originais ou, em todo caso, as mais antigas e as únicas que podem fazer compreender a origem esquecida da psicologia e sua
significação.
Quando tivermos reconhecido como é importante, no estudo do homem, o ponto de vista de sua evolução possível, compreenderemos que a primeira resposta à pergunta: o que é psicologia? deveria ser: psicologia é o estudo dos princípios, leis e fatos relativos à evolução possível do homem.
Nestas conferências, colocar-me-ei exclusivamente em tal ponto de vista. Nossa primeira pergunta será: o que significa a evolução do homem? E a segunda: ela exige condições especiais?
Devo dizer, antes de tudo, que não poderíamos aceitar as concepções modernas sobre a origem do homem e sua evolução passada. Devemos dar-nos conta de que nada sabemos sobre essa origem e de que carecemos de qualquer prova de uma evolução física ou mental do homem.
Muito ao contrário, se tomarmos a humanidade histórica, isto é, a dos dez ou quinze mil últimos anos, podemos encontrar sinais inconfundíveis de um tipo superior de humanidade, cuja presença pode ser demonstrada por múltiplos testemunhos e monumentos da antiguidade, os quais os homens atuais seriam incapazes de recriar ou imitar. Quanto ao “homem pré-histórico” ou a essas criaturas de aspecto semelhante ao homem e, todavia, tão diferentes dele, cujos ossos se encontram, às vezes, em depósitos do período
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glacial ou pré-glacial, podemos aceitar a idéia muito plausível de que essas ossadas pertenciam a um ser bem distinto do homem, desaparecido há muito tempo. Ao negar a evolução passada do homem, devemos recusar-lhe toda possibilidade de uma evolução mecânica futura, isto é, de uma evolução que se operaria por si só, segundo as leis da hereditariedade e da seleção, sem esforços conscientes por parte do homem e sem que este tenha compreendido sequer a possibilidade de sua evolução.
Nossa idéia fundamental é a de que o homem, tal qual o conhecemos, não é um ser acabado. A natureza o desenvolve até certo ponto e logo o abandona, deixando-o prosseguir em seu desenvolvimento por seus próprios esforços e sua própria iniciativa, ou viver e morrer tal como nasceu, ou, ainda, degenerar e perder a capacidade de desenvolvimento.
No primeiro caso, a evolução do homem significará o desenvolvimento de certas qualidades e características interiores que habitualmente permanecem embrionárias e que não podem se desenvolver por si mesmas. A experiência e a observação mostram que esse desenvolvimento só é possível em condições bem definidas, que exige esforços especiais por parte do próprio homem, e uma ajuda suficiente por parte daqueles que, antes dele, empreenderam um trabalho da mesma ordem e chegaram a um certo grau de desenvolvimento ou, pelo menos, a um certo conhecimento dos métodos. Devemos partir da idéia de que sem esforços a evolução é impossível e de que, sem ajuda, é igualmente impossível.
Depois disso, devemos compreender que, no caminho do desenvolvimento, o homem deve tornar-se um ser diferente e devemos estudar e conceber de que modo e em que direção deve o homem converter-se num ser diferente, isto é, o que significa um ser diferente. Depois, devemos compreender que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes. A evolução é questão de esforços pessoais e, em relação à massa da humanidade, continua a ser exceção rara. Isso talvez possa parecer
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estranho, mas devemos dar-nos conta não só de que a evolução é rara, mas também que se torna cada vez mais rara.
Isso, naturalmente, provoca numerosas perguntas: Que significa esta frase: “No caminho da evolução o homem deve tornar-se um ser diferente”? O que quer dizer “um ser diferente”? Quais são essas qualidades e características interiores que podem ser desenvolvidas no homem e como chegar até elas? Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tornar-se seres diferentes? Por que semelhante injustiça?
Tentarei responder a essas perguntas, começando pela última. Por que nem todos os homens podem desenvolver-se e tomar-se seres diferentes? A resposta é muito simples. Porque não o desejam. Porque nada sabem a respeito e ainda que se lhes diga, não o compreenderão antes de uma longa preparação. A idéia essencial é que, para tornar-se um ser diferente, o homem deve desejá-lo intensamente e por muito tempo. Um desejo passageiro ou vago, nascido de uma insatisfação no que diz respeito às condições exteriores, não criará um impulso suficiente.
A evolução do homem depende de sua compreensão do que pode adquirir e do que deve dar para isso. Se o homem não o desejar, ou não o desejar com bastante intensidade e não fizer os esforços necessários, jamais se desenvolverá. Não há, pois, injustiça alguma nisso. Por que haveria de ter o homem o que não deseja? Se o homem fosse forçado a tomar-se um ser diferente, quando está satisfeito com o que é, aí sim, haveria injustiça.
Perguntemo-nos, agora, o que significa um ser diferente. Se examinarmos todos os dados que podemos reunir sobre essa questão, encontraremos sempre a afirmação de que, ao tornar-se um ser diferente, o homem adquire numerosas qualidades novas
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e poderes que antes não possuía. Essa afirmação é comum a todas as doutrinas que admitem a idéia de um crescimento interior do homem. Isso, porém, não basta. As descrições, ainda que as mais detalhadas, desses novos poderes não nos ajudarão de modo algum a compreender como aparecem nem de onde vem.
Falta um elo nas teorias geralmente admitidas, mesmo naquelas de que acabo de falar e que têm por base a idéia da possibilidade de uma evolução do homem. A verdade é que antes de adquirir novas faculdades ou novos poderes, que não conhece e ainda não possui, o homem deve adquirir faculdades e poderes que tampouco possui, mas que se atribui, isto é, que crê conhecer e crê ser capaz de usar e de usar até com maestria.
Esse é o “elo que falta”, e aí está o ponto de maior importância. No caminho da evolução, definido como um caminho baseado no esforço e na ajuda, o homem deve adquirir qualidades que crê já possuir, mas sobre as quais se ilude. Para compreender isso melhor, para saber que faculdades novas, que poderes insuspeitados pode o homem adquirir e quais são aqueles que imagina possuir, devemos partir da idéia geral que o homem tem de si mesmo. E encontramo-nos, de imediato, ante um fato importante.
O homem não se conhece. Não conhece nem os próprios limites, nem suas possibilidades. Não conhece sequer até que ponto não se conhece.
O homem inventou numerosas máquinas e sabe que, às vezes, são necessários anos de sérios estudos para poder servir-se de uma máquina complicada ou para controlá-la. Mas, quando se trata de si mesmo, ele esquece esse fato, ainda que ele próprio seja uma máquina muito mais complicada do que todas aquelas que inventou. Está cheio de idéias falsas sobre si mesmo.
Antes de tudo, não se dá conta de que ele é realmente uma máquina.
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O que quer dizer: “O homem é uma máquina”? Quer dizer que não tem movimentos independentes, seja interior, seja exteriormente. É uma máquina posta em movimento por influências exteriores e choques exteriores. Todos os seus movimentos, ações, palavras, idéias, emoções, humores e pensamentos são provocados por influências exteriores. Por si mesmo, é tão-somente um autômato com certa provisão de lembranças de experiências anteriores e certo potencial de energia em reserva. Devemos compreender que o homem não pode fazer nada.
O homem, porém, não se apercebe disso e se atribui a capacidade de fazer. Ë o primeiro dos falsos poderes que se arroga.
Isso deve ser compreendido com toda a clareza. O homem não pode lazer nada. Tudo o que crê fazer, na realidade, acontece. Isso acontece exatamente como “chove”, “neva” ou “venta”.
Infelizmente, não há em nosso idioma verbos impessoais que possam ser aplicados aos atos humanos. Devemos, pois, continuar a dizer que o homem pensa, lê, escreve, ama, detesta, empreende guerras, combate, etc. Na realidade, tudo isso acontece. O homem não pode pensar, falar nem mover-se como quer. É uma marionete, puxada para cá e para lá por fios invisíveis. Se compreender isso, poderá aprender mais coisas sobre si mesmo e talvez, então, tudo comece a mudar para ele. Mas, se não puder admitir nem compreender sua profunda mecanicidade, ou não quiser aceitá-la como um fato, não poderá aprender mais nada e as coisas não poderão mudar para ele.
O homem é uma máquina, mas uma máquina muito singular. Pois, se as circunstâncias se prestarem a isso, e se bem dirigida, essa máquina poderá saber que é uma máquina. E se se der conta disso plenamente, ela poderá encontrar os meios para deixar de ser máquina. Antes de tudo, o homem deve saber que ele não é um, mas múltiplo. Não tem um Eu único, permanente e imutável. Muda continuamente. Num momento é uma pessoa, no momento
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seguinte outra, pouco depois uma terceira e sempre assim, quase indefinidamente. O que cria no homem a ilusão da própria unidade ou da própria integralidade é, por um lado, a sensação que ele tem de seu corpo físico; por outro, seu nome, que em geral não muda e, por último, certo número de hábitos mecânicos implantados nele pela educação ou adquiridos por imitação. Tendo sempre as mesmas sensações físicas, ouvindo sempre ser chamado pelo mesmo nome e, encontrando em si hábitos e inclinações que sempre conheceu, imagina permanecer o mesmo.
Na realidade não existe unidade no homem, não existe um centro único de comando, nem um “Eu’, ou ego, permanente Eis aqui um esquema geral do homem:
eu
eu eu eu
eu eu eu eu eu
eu eu eu eu eu eu
eu eu eu eu eu eu eu eu
eu eu eu eu eu eu
eu eu eu eu eu
eu eu eu
eu
Nota do digitador: No esquema original Lia-se a palavra EU inscrita em vários quadrados inscritos em um círculo.

Cada pensamento, cada sentimento, cada sensação, cada desejo, cada “eu gosto” ou “eu não gosto”, é um “eu”. Esses eus” não estão ligados entre si, nem coordenados de modo algum. Cada um deles depende das mudanças de circunstâncias exteriores e das mudanças de impressões.
Tal “eu” desencadeia mecanicamente toda uma série de outros eus”. Alguns andam sempre em companhia de outros. Não existe aí, porém, nem ordem nem sistema.
Alguns grupos de “eus” têm vínculos naturais entre si. Falaremos desses grupos mais adiante. Por enquanto, devemos tratar de compreender que as ligações de certos grupos de “eus”
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constituem-se unicamente de associações acidentais, recordações fortuitas ou semelhanças completamente imaginárias. Cada um desses “eus” não representa, em dado momento, mais que uma ínfima parte de nossas funções, porém cada um deles crê representar o todo. Quando o homem diz “eu”, tem-se a impressão de que fala de si em sua totalidade, mas, na realidade, mesmo quando crê que isso é assim, é só um pensamento passageiro, um humor passageiro ou um desejo passageiro. Uma hora mais tarde, pode tê-lo esquecido completamente e expressar, com a mesma convicção, opinião, ponto de vista ou interesses opostos. O pior é que o homem não
se lembra disso. Na maioria dos casos, dá crédito ao último “eu” que falou, enquanto este permanece, ou seja, enquanto um novo “eu” — às vezes sem conexão alguma com o precedente — ainda não tenha expressado com mais força sua opinião ou seu desejo. E agora, voltemos às outras perguntas. O que se deve entender por “desenvolvimento”? E o que quer dizer tornar-se um ser diferente? Em outras palavras, qual é a espécie de mudança possível ao homem? Quando e como se inicia essa mudança?
Já dissemos que a mudança deve começar pela aquisição desses poderes e capacidades que o homem se atribui, mas que, na realidade, não possui. Isso significa que, antes de adquirir qualquer poder novo ou qualquer capacidade nova, o homem deve desenvolver nele as qualidades que crê possuir e sobre as quais ele cria para si as maiores ilusões.
O desenvolvimento não pode se basear na mentira a si mesmo, nem no enganar-se a si mesmo. O homem deve saber o que é seu e o que não é seu. Deve dar-se conta de que não possui as qualidades que se atribui: a capacidade de fazer, a individualidade ou a unidade, o Ego permanente, bem como a consciência e a vontade. E é necessário que o homem saiba disso, pois enquanto imaginar possuir essas qualidades, não fará os esforços necessários para adquiri-las, da mesma maneira que um homem não
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comprará objetos preciosos, nem estará disposto a pagar um preço elevado por eles, se acreditar que já os possui. A mais importante e a mais enganosa dessas qualidades é a consciência. E a mudança no homem começa por uma mudança em sua maneira de compreender a significação da consciência e continua com a aquisição gradual de um domínio da consciência. Que ‘é a consciência? Na linguagem comum, a palavra “consciência” é quase sempre empregada como equivalente da palavra “inteligência”, no sentido de atividade mental.
Na realidade, a consciência no homem é uma espécie muito particular de “tomada de conhecimento interior” independente de sua atividade mental — é, antes de tudo, uma tomada de conhecimento de si mesmo, conhecimento de quem ele é, de onde está e, a seguir, conhecimento do que sabe, do que não sabe, e assim por diante. Só a própria pessoa é capaz de saber se está consciente ou não em dado momento. Certa corrente de pensamento da psicologia européia provou, aliás, há muito tempo, que só o próprio homem pode conhecer certas coisas sobre si mesmo. Só o próprio homem, pois, é capaz de saber se a sua consciência existe ou não, em dado momento. Assim, a presença ou a ausência de consciência no homem não pode ser provada pela observação de seus atos exteriores. Como acabo de dizer, esse fato foi estabelecido
há muito, mas nunca se compreendeu realmente sua importância, porque essa idéia sempre esteve ligada a uma compreensão da consciência como atividade ou processo mental.
O homem pode dar-se conta, por um instante, de que, antes desse mesmo instante, não estava consciente; depois, esquecera essa experiência e, ainda que a recorde, isso não será a consciência. Será apenas a lembrança de uma forte experiência. Quero, agora, chamar-lhes a atenção para outro fato perdido de vista por todas as escolas modernas de psicologia.
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É o fato de que a consciência no homem jamais é permanente, seja qual for o modo como é encarada. Ela está presente ou está ausente. Os momentos de consciência mais elevados criam a memória. Os outros momentos, o homem simplesmente os esquece. É justamente isso que lhe dá, mais que qualquer outra coisa, a ilusão de consciência contínua ou de “percepção de si” contínua.
Algumas modernas escolas de psicologia negam inteiramente a consciência, negam até a utilidade de tal termo; isso, porém, não passa de paroxismo de incompreensão. Outras escolas, se é possível chamá-las assim, falam de “estados de consciência”, quando se referem a pensamentos, sentimentos, impulsos motores e sensações. Tudo isso tem como base o erro fundamental de se confundir consciência com funções psíquicas. Falaremos disso mais adiante.
Na realidade, o pensamento moderno, na maioria dos casos, continua a crer que a consciência não possui graus. A aceitação geral, ainda que tácita, dessa idéia, embora em contradição com numerosas descobertas recentes, tornou impossível muitas observações sobre as variações da consciência. O fato é que a consciência tem graus bem visíveis e observáveis, em todo caso visíveis e observáveis por cada um em si mesmo.
Primeiro, há o critério da duração: quanto tempo se permaneceu consciente? Segundo, o da freqüência: quantas vezes se tornou consciente? Terceiro, o da amplitude e da penetração: do que se estava consciente? Pois isso pode variar muito com o crescimento interior do homem.
Se considerarmos apenas os dois primeiros desses três pontos, poderemos compreender a idéia de uma evolução possível da consciência. Essa idéia está ligada a um fato essencial, perfeitamente conhecido pelas antigas escolas psicológicas, tais como a dos autores da Philokalia, porém completamente ignorado pela filosofia e pela psicologia européias dos dois ou três últimos séculos.
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É o fato de que, por meio de esforços especiais e de um estudo especial, a pessoa pode tornar a consciência contínua e controlável. Tentarei explicar como a consciência pode ser estudada. Tome um relógio e olhe o ponteiro grande, tentando manter a percepção de si mesmo e concentrar-se no pensamento “eu sou Pedro Ouspensky”, por exemplo, “eu estou aqui neste momento”. Tente pensar apenas nisso, siga simplesmente o movimento do ponteiro grande,
permanecendo consciente de si mesmo, de seu nome, de sua existência e do lugar em que você está. Afaste qualquer outro pensamento. Se for perseverante, poderá fazer isso durante dois minutos. Tal é o limite da sua consciência. E se tentar repetir a experiência logo a seguir, irá achá-la mais difícil que da primeira vez.
Essa experiência mostra que um homem, em seu estado normal, pode, mediante grande esforço, ser consciente de uma coisa (ele mesmo) no máximo durante dois minutos. A dedução mais importante que se pode tirar dessa experiência, se realizada corretamente, é que o homem não é consciente de si mesmo. Sua ilusão de ser consciente de si mesmo é criada pela memória e pelos processos do pensamento. Por exemplo, um homem vai ao teatro. Se tem esse hábito, não tem consciência especial de estar ali enquanto ali está. E, não obstante, pode ver e observar; o espetáculo pode interessá-lo ou aborrecer-lhe; pode lembrar-se do espetáculo, lembrar-se das pessoas com quem se encontrou, e assim por diante.
De volta à casa, lembra-se de haver estado no teatro e, naturalmente, pensa ter estado consciente enquanto lá se encontrava. De forma que não tem dúvida alguma quanto à sua consciência e não se dá conta de que sua consciência pode estar totalmente ausente, mesmo quando ele ainda age de modo razoável, pensa e observa.
De maneira geral, o homem pode conhecer quatro estados de consciência, que são: o sono, o estado de vigília, a consciência de si e a consciência objetiva
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Mesmo tendo a possibilidade de conhecer esses quatro estados de consciência, o homem só vive, de fato, em dois desses estados: uma parte de sua vida transcorre no sono e a outra, no que se chama “estado de vigília”, embora, na realidade, esse último difira muito pouco do sono.
Na vida comum o homem nada sabe da “consciência objetiva” e não pode ter nenhuma experiência dessa ordem. O homem se atribui o terceiro estado de consciência, ou “consciência de si”, e crê possuí-lo, embora, na realidade, só seja consciente de si mesmo por lampejos, aliás muito raros; e, mesmo nesses momentos, é pouco provável que reconheça esse estado, dado que ignora o que implicaria o fato de realmente possuí-lo. Esses vislumbres de consciência ocorrem em momentos excepcionais, em momentos de perigo, em estados de intensa emoção, em circunstâncias e situações novas e inesperadas; ou também, às vezes, em momentos bem simples onde nada de particular ocorre. Em seu estado ordinário ou “normal”, porém, o homem não tem qualquer controle sobre tais momentos de consciência.
Quanto à nossa memória ordinária ou aos nossos momentos de memória, na realidade, nós só nos recordamos de nossos momentos de consciência, embora não saibamos que isso é assim.
O que significa a memória no sentido técnico da palavra — todas as diferentes espécies de memória que possuímos —explicá-lo-ei mais adiante. Hoje, só desejo atrair sua atenção para as observações que tenham podido fazer a respeito de sua memória. Notarão que não se recordam das coisas sempre da mesma maneira. Algumas coisas são recordadas de forma muito viva, outras permanecem vagas e existem aquelas de que não se recordam em absoluto. Sabem apenas que aconteceram. Ficarão muito surpresos quando constatarem como se recordam de pouca coisa. E é assim, porque só se recordam dos momentos em que estiveram conscientes.
Assim, para voltar a esse terceiro estado de consciência, podemos dizer que o homem tem momentos fortuitos de consciência de si, que deixam viva lembrança das circunstâncias em que eles ocorreram. O homem, entretanto, não tem nenhum poder sobre tais momentos. Aparecem e desaparecem por si
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mesmos, sob a ação de condições exteriores, de associações acidentais ou de lembranças de emoções. Surge esta pergunta: é possível adquirir o domínio desses momentos fugazes de consciência, evocá-los mais freqüentemente, mantê-los por mais tempo ou, até, torná-los permanentes?
Em outros termos, é possível tornar-se consciente? Esse é o ponto essencial e é preciso compreender, desde o início do nosso estudo, que esse ponto escapou completamente, até em teoria, a todas as escolas modernas de psicologia, sem exceção. De fato, por meio de métodos adequados e esforços apropriados, o homem pode adquirir o controle da consciência, pode tornar-se consciente de si mesmo, com tudo o que isso implica. Entretanto, o que isso implica não podemos sequer imaginá-lo em nosso estado atual.
Só depois de bem compreendido esse ponto, é possível empreender um estudo sério da psicologia. Esse estudo deve começar pelo exame dos obstáculos à consciência em nós mesmos,
porquanto a consciência só pode começar a crescer quando pelo menos alguns desses obstáculos forem afastados. Nas conferências seguintes, falarei desses obstáculos. O maior deles é nossa
ignorância de nós mesmos e nossa convicção ilusória de nos conhecermos, pelo menos até certo ponto, e de podermos contar conosco mesmo, quando, na realidade, não nos conhecemos em absoluto e de modo algum podemos contar conosco, nem sequer nas menores coisas.
Devemos compreender agora que “psicologia” significa verdadeiramente o estudo de si. Esta é a segunda definição de psicologia. Não se pode estudar a psicologia como se estuda a astronomia, quer dizer, fora de si próprio.
Ao mesmo tempo, uma pessoa deve estudar-se como estudaria qualquer máquina nova e complicada. É necessário conhecer as peças dessa máquina, suas funções principais, as condições para um trabalho correto, as causas de um trabalho defeituoso e uma porção de outras coisas difíceis de descrever sem
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uma linguagem especial que, aliás, é indispensável conhecer para ficar em condições de estudar a máquina.
A máquina humana tem sete funções diferentes:
1 a) O pensamento (ou o intelecto).
2 a) O sentimento (ou as emoções).
3 a) A função instintiva (todo o trabalho interno do organismo).
4•~) A função motora (todo o trabalho externo do organismo, o movimento no espaço,
etc.).
5•a) O sexo (função dos dois princípios, masculino e feminino, em todas as suas
manifestações).
Além dessas cinco funções, existem duas outras para as quais a linguagem corrente não tem nome e que aparecem somente nos estados superiores de consciência: uma, a Junção emocional superior, que aparece no estado de consciência de si, e outra, a Junção intelectual superior, que aparece no estado de consciência objetiva. Como não estamos nesses estados de consciência, não podemos estudar essas funções nem experimenta -las; só conhecemos sua existência de modo indireto, por meio daqueles que passaram por essa experiência.
Na antiga literatura religiosa e filosófica de diferentes povos, encontram-se múltiplas alusões aos estados superiores de consciência e às funções superiores de consciência. É tanto mais difícil compreender essas alusões porque não fazemos nenhuma distinção entre os estados superiores de consciência. O que chamamos samadhi, estado de êxtase, iluminação ou, em obras mais recentes, “consciência cósmica”, pode referir-se ora a um, ora a outro — às vezes a experiências de consciência de si, às vezes a experiências de consciência objetiva. E, por estranho que possa parecer, temos mais material para avaliar o mais elevado desses estados, a consciência objetiva, do que para aquilatar o estado intermediário, a consciência de si, embora o primeiro só possa ser alcançado depois desse último.
Deve o estudo de si começar pelo estudo das quatro primeiras funções: intelectual, emocional, instintiva e motora. A função sexual só pode ser estudada muito mais tarde, depois de essas quatro funções terem sido suficientemente compreendidas.
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Ao contrário do que afirmam certas teorias modernas, a função sexual vem realmente depois das outras, quer dizer, aparece mais tarde na vida, quando as quatro primeiras funções já se tiverem manifestado plenamente: está condicionada por elas. Por conseguinte, o estudo da função sexual será útil, apenas quando as quatro primeiras funções forem conhecidas em todas as suas manifestações. Ao mesmo tempo, é preciso compreender bem que qualquer irregularidade ou anomalia séria na função sexual torna impossível o desenvolvimento de si e, até, o estudo de si.
Tratemos, agora , de compreender as quatro primeiras funções.
O que entendo por “função intelectual” ou “função do pensamento”, suponho que seja claro para vocês. Nela estão compreendidos todos os processos mentais: percepção de impressões, formação de representações e conceitos, raciocínio, comparação, afirmação, negação, formação de palavras, linguagem, imaginação, e assim por diante. A segunda função é o sentimento ou as emoções: alegria, tristeza, medo, surpresa, etc. Ainda que estejam seguros de bem compreender como e em que as emoções diferem dos pensamentos, aconselhá-los-ia a rever todas as suas idéias a esse respeito. Confundimos pensamentos e sentimentos em nossas maneiras habituais de ver e de falar. Entretanto, para começar a estudar-se a si mesmo, é necessário estabelecer claramente a diferença entre eles.
As duas funções seguintes, instintiva e motora, reter-nos-ão por mais tempo, pois nenhum sistema de psicologia comum distingue nem descreve corretamente essas duas funções. As palavras “instinto” e “instintivo” são empregadas geralmente num sentido errôneo e, freqüentemente, sem sentido algum. Em particular, atribui-se ao instinto manifestações exteriores que são, na realidade, de ordem motora e, às vezes, emocional. A Junção instintiva, no homem, compreende quatro espécies de funções:
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1 a) Todo o trabalho interno do organismo, toda a fisiologia por assim dizer: a digestão e a assimilação do alimento, a respiração e a circulação do sangue, todo o trabalho dos órgãos internos, a construção de novas células, a eliminação de detritos, o trabalho das glândulas endócrinas, e assim por diante.
2 a) Os “cinco sentidos”, como são chamados: a visão, a audição, o olfato, o paladar e o tato; e todos os demais, como o sentido de peso, de temperatura, de secura ou de umidade, etc., ou seja, todas as sensações indiferentes, sensações que não são, por si mesmas, nem agradáveis nem desagradáveis.
3 a) Todas as emoções físicas, quer dizer, todas as sensações físicas que são agradáveis ou desagradáveis; todas as espécies de dor ou de sensações desagradáveis, por exemplo, um sabor ou um odor desagradável, e todas as espécies de prazer físico, como os sabores e os odores agradáveis, e assim por diante.
4 a) Todos os reflexos, até os mais complicados, tais como o riso e o bocejo; todas as espécies de memória física, tais como a memória do gosto, do olfato, da dor, que são, na realidade, reflexos internos. A Junção motora compreende todos os movimentos exteriores, tais como caminhar, escrever, falar, comer, e as lembranças que disso restam. À função motora pertencem também movimentos que a linguagem corrente qualifica de “instintivos”, como o de aparar um objeto que cai, sem pensar nisso. A diferença entre a função instintiva e a função motora é muito clara e fácil de compreender; basta recordar que todas as funções instintivas, sem exceção, são inatas e não é necessário aprendê-las para utilizá-las; ao passo que nenhuma das funções de movimento é inata e é necessário aprendê-las todas; assim, a criança aprende a nadar, aprendemos a escrever ou a desenhar.
Além dessas funções motoras normais, existem ainda estranhas funções de movimento, que representam o trabalho inútil da máquina humana, trabalho não previsto pela natureza, mas que ocupa um vasto lugar na vida do homem e consome grande quantidade de sua energia. São: a formação dos sonhos, a imaginação,
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o devaneio, o falar consigo mesmo, o falar por falar e, de maneira geral, as manifestações incontroladas e incontroláveis. As quatro funções — intelectual, emocional, instintiva e motora — devem, antes de tudo, ser compreendidas em todas as suas manifestações; depois, é preciso observá-las em si mesmo. Essa observação de si, que deve ser feita a partir de dados corretos, com prévia compreensão dos estados de consciência e das diferentes funções, constitui a base do
estudo de si, isto é, o início da psicologia.
Ë muito importante recordar que, enquanto observamos as diferentes funções, cumpre observar ao mesmo tempo sua relação com os diferentes estados de consciência.
Tomemos os três estados de consciência — sono, estado de vigília, lampejos de consciência de si — e as quatro funções:
pensamento, sentimento, instinto e movimento.
Quando aprendermos a observar esses resultados e a diferença entre eles, compreenderemos a relação correta entre as funções e os estados de consciência.
Mas, antes de considerar as diferenças que apresenta uma função segundo o estado de consciência, é preciso compreender que a consciência de um homem e as funções de um homem são dois fenômenos de ordem completamente diferente, de natureza totalmente diferente, dependentes de causas diferentes, e que um pode existir Sem o outro.
As Junções podem existir sem a consciência e a consciência pode existir sem as Junções. Essas quatro funções podem manifestar-se no sono, mas suas manifestações são então desconexas e destituídas de qualquer fundamento. Não podem ser utilizadas de maneira alguma; funcionam automaticamente.
No estado de consciência de vigília ou de consciência relativa, elas podem, até certo ponto, servir para nossa orientação. Seus resultados podem ser comparados, verificados, retificados e, embora possam criar numerosas ilusões, só contamos no entanto com elas em nosso estado ordinário e devemos usá-las na medida em que podemos. Se conhecêssemos a quantidade de observações falsas, de falsas teorias, de falsas deduções e conclusões feitas nesse estado, cessaríamos completamente de crer em nós mesmos. Entretanto, os homens não se dão conta de quanto as suas observações e teorias podem ser enganadoras e continuam a crer nelas. E é isso o que impede os homens de observarem os raros momentos em que suas funções se manifestam sob o efeito dos lampejos do terceiro estado de consciência, ou seja, da consciência de si.
Tudo isso significa que cada uma das quatro funções pode manifestar-se em cada um dos três estados de consciência. Os resultados, todavia, diferem inteiramente.
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Quando aprendemos a observar estes resultados e a diferença entre eles, compreenderemos a relação correta entre as funções e os estados de consciência. Mas, antes de considerar as diferenças que apresenta uma função segundo o estado de consciência, é preciso compreender que a consciência de um homem e as funções de um homem são dois fenômenos de ordem completamente diferente ,de natureza totalmente diferente, dependentes de causas diferentes, e que um pode existir sem o outro. As funções podem existir sem a consciência e a consciência pode existir sem as funções.
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SEGUNDA CONFERÊNCIA

Continuamos nosso estudo do homem por um exame mais detalhado dos diferentes estados de consciência. Como já disse, existem quatro estados de consciência possíveis para o homem: o “sono”, a “consciência de vigília”, a ‘‘consciência de si e a ‘‘consciência objetiva’’; mas o homem vive apenas em dois desses estados, em parte no sono e em parte no que às vezes se denomina
“consciência de vigília”. É como se possuísse uma casa de quatro andares, mas só vivesse nos dois andares inferiores.
O primeiro dos estados de consciência, o mais baixo, é o sono. um estado puramente subjetivo e passivo. O homem está rodeado de sonhos. Todas as suas funções psíquicas trabalham sem direção alguma. Não há lógica, não há continuidade, não há causa nem resultado nos sonhos. Imagens puramente subjetivas, ecos de experiências passadas ou ecos de vagas percepções do momento, ruídos que chegam ao adormecido, sensações corporais tais como ligeiras dores, sensação de tensão muscular, atravessam o espírito sem deixar mais que um tênue vestígio na memória e quase sempre sem deixar sinal algum.
O segundo grau de consciência aparece quando o homem desperta. Este segundo estado, o estado no qual nos encontramos neste momento, quer dizer, no qual trabalhamos, falamos, imaginamos que somos seres conscientes, denominamo-lo freqüentemente “consciência lúcida” ou “consciência desperta”, quando na realidade deveria ser chamado “sono desperto” ou “consciência relativa”. Este último termo será explicado mais adiante. Aqui é preciso compreender que o primeiro estado de consciência, o sono, não se dissipa quando aparece o segundo estado,
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isto é, quando o homem desperta. O sono permanece, com todos os seus sonhos e impressões; só que, para a pessoa, ao sono se acrescenta uma atitude crítica para com suas próprias impressões, pensamentos mais bem coordenados e ações mais disciplinadas. E, em decorrência da vivacidade das impressões sensoriais, dos desejos e dos sentimentos — em particular do sentimento de contradição ou de impossibilidade, cuja ausência é total no sono —‘ os sonhos tornam-se invisíveis, tal como a lua e as estrelas tornam-se invisíveis à claridade do sol. Porém, todos estão presentes e freqüentemente exercem sobre o conjunto de nossos pensamentos, sentimentos e ações, uma influência cuja força supera, às vezes, a das percepções reais do momento.
A esse respeito devo dizer que não me refiro aqui ao que, na psicologia moderna, se chama “subconsciente” ou “pensamento subconsciente”. São simplesmente expressões errôneas, termos equivocados que não significam nada e não se referem a nenhum fato real. Em nós, nada é subconsciente de maneira permanente, já que nada em nós é consciente de modo permanente, e não existe “pensamento subconsciente” pela simples razão de que não há “pensamento consciente”. Mais tarde verão como este erro se produziu, como esta falsa terminologia pôde aparecer e ser admitida quase em toda parte.
Voltemos, todavia, aos estados de consciência que existem de fato. O primeiro é o sono. O segundo é o “sono desperto” ou consciência relativa O primeiro, como disse, é um estado puramente subjetivo. O segundo é menos subjetivo; o homem já distingue entre o “eu" e o “não-eu", ou seja, entre seu corpo e os objetos que diferem de seu corpo, e pode conhecer a posição e as qualidades deles. Mas não se poderia dizer que, nesse estado, o homem esteja desperto, visto que permanece poderosamente influenciado pelos sonhos e, de fato, vive mais nos sonhos que na realidade. Todos os absurdos e todas as contradições dos homens e da vida humana em geral se explicam, se compreendermos que os homens vivem no sono, agem no sono e não sabem que estão dormindo. É útil lembrar que tal é realmente a significação interior de numerosos ensinamentos antigos. O mais bem conhecido de
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nós é o Cristianismo, ou o ensinamento dos Evangelhos, onde todas as explicações da vida humana se baseiam na idéia de que os homens vivem no sono e devem, antes de tudo, despertar-se; no entanto, quase nunca essa idéia é compreendida como deveria ser, ou seja, no presente caso, ao pé da letra. Entretanto, toda a questão é saber como um homem pode despertar. O ensinamento dos Evangelhos exige o despertar, mas não diz como despertar.
O estudo psicológico da consciência mostra que é somente a partir do momento em que o homem vê que está adormecido que se pode dizer dele que está a caminho do despertar. Jamais poderá despertar-se antes de ter visto que está adormecido.
Esses dois estados, sono e sono desperto, são os dois únicos estados em que vive o homem. Além deles, o homem poderá conhecer dois outros estados de consciência, mas estes só lhe são acessíveis depois de dura e prolongada luta. Esses dois estados superiores de consciência são denominados consciência de si” e “consciência objetiva. Admite-se geralmente que possuimos a consciência de si, que somos conscientes de nós mesmos ou, pelo menos, que podemos ser conscientes de nós mesmos no instante em que desejarmos; mas, na realidade, a “consciência de si” é um estado que nós nos atribuímos sem o menor direito. Quanto à “consciência objetiva”, é um estado do qual nada sabemos.
A consciência de si é um estado no qual o homem se torna objetivo em relação a si mesmo e a consciência objetiva é um estado no qual ele entra em contato com o mundo real ou objetivo, do qual está atualmente separado pelos sentidos, pelos sonhos e pelos estados subjetivos de consciência.
Outra definição dos quatro estados de consciência pode ser estabelecida de acordo com as possibilidades que eles oferecem de se conhecer a verdade. No primeiro estado de consciência, o sono, nada podemos saber da verdade. Ainda que cheguem até nós percepções OU sentimentos reais, estes se mesclam aos sonhos; e, nesse estado de sono, não podemos distinguir os sonhos da realidade.
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No segundo estado de consciência, isto é, no sono desperto, só podemos conhecer uma verdade relativa — de onde o termo consciência relativa. No terceiro estado de consciência, ou seja, no estado de consciência de si, podemos conhecer toda a verdade sobre nós mesmos.
No quarto estado, que é o estado de consciência objetiva, o homem se encontra em condições de conhecer toda a verdade sobre todas as coisas, pode estudar “as coisas em si mesmas”, o mundo tal como e Esse estado está tão longe de nós, que não podemos sequer pensar nele de maneira justa, e temos que nos esforçar por compreender que só podemos ter lampejos de consciência objetiva no estado plenamente realizado de consciência de si. No estado de sono podemos ter lampejos de consciência relativa. No estado de consciência relativa podemos ter vislumbres de consciência de si. Mas, se quisermos ter períodos mais longos de consciência de si, e não apenas breves clarões, devemos compreender que eles não podem surgir por si só. Exigem um ato de vontade. Isso quer dizer que a freqüência e a duração dos momentos de consciência de si dependem do poder que se tem sobre si mesmo. Por conseguinte, isso significa que consciência e vontade são quase uma única e mesma coisa ou, em todo caso, aspectos de uma mesma coisa.
Agora, devemos compreender que o primeiro obstáculo no caminho do desenvolvimento da consciência de si no homem é sua convicção de que já a possui ou, pelo menos, de que pode tê-la no instante em que quiser. Ë muito difícil persuadir um homem de que não está consciente e de que não pode tornar-se voluntariamente consciente. E é particularmente difícil, porque aqui a natureza lhe “prega uma peça”.
Perguntem a um homem se está consciente ou digam-lhe que não está consciente, e ele responderá que está perfeitamente consciente e que é absurdo dizer que não o está, dado que os ouve e os compreende. E terá toda a razão, mas ao mesmo tempo equivocar-se-á completamente. Esta é a peça que a natureza lhe prega. Terá razão, porque a pergunta ou a observação o terá
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tornado vagamente consciente por um instante. No instante seguinte, a consciência terá desaparecido. Mas lembrar-se-á do que vocês lhe disseram, do que respondeu e certamente acreditará estar consciente. Na realidade, a aquisição da consciência de si supõe um trabalho árduo e prolongado. Como poderia um homem submeter-se a tal trabalho, se pensa já possuir a própria coisa que lhe prometem como resultado de um trabalho árduo e prolongado? Naturalmente, o homem não empreenderá esse trabalho e não o considerará uma necessidade, enquanto não tiver adquirido a convicção de que não possui nem a consciência de si, nem tudo o que com ela se relaciona, isto é, a unidade ou individualidade, o “Eu” permanente e a vontade.
Isso nos leva à questão das escolas. Com efeito, os métodos de desenvolvimento da consciência de si, da unidade, do “Eu” permanente e da vontade só podem ser dados por escolas especiais. Devemos compreendê-lo claramente. Os homens, no nível da consciência relativa, não podem descobrir esses métodos por si mesmos; e tais métodos não podem ser descritos nos livros, nem ensinados nas escolas comuns, pela simples razão de que são diferentes para cada indivíduo e de que não existe método universal igualmente aplicável a todos.
Em outras palavras, isso significa que os homens que querem mudar seu estado de consciência necessitam de uma escola. Mas, antes de tudo, devem dar-se conta de que precisam dela. Enquanto acreditarem poder fazer algo por si mesmos, não poderão tirar nenhum proveito de uma escola, ainda que a encontrem. As escolas existem somente para aqueles que precisam delas e sabem que precisam delas.
A noção de escola, o estudo das diferentes espécies de escolas que podem existir, o estudo dos princípios e métodos de escola ocupam um lugar muito importante no estudo da psicologia baseada na idéia de evolução; pois, sem escola, não pode haver evolução alguma. Ë até impossível dar o primeiro passo, pois ignora-se como fazê-lo. Menos ainda se pode continuar ou alcançar seja o que for.
Isso significa que depois de se ter desembaraçado da primeira ilusão, a de já possuir tudo o que se pode possuir, cumpre
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desembaraçar-se da segunda ilusão, a de poder obter algo por si mesmo, pois por si mesmo nada se pode obter. Estas conferências não são uma escola, nem sequer o começo de uma escola. Uma escola exige uma pressão de trabalho muito mais forte. Nestas conferências, porém, posso dar a
meus ouvintes algumas idéias sobre a maneira como as escolas trabalham e dizer-lhes de que modo se pode descobri-las. Já dei duas definições de psicologia.
Primeiro, disse que psicologia era o estudo das possibilidades de evolução do homem e, depois, que psicologia era o estudo de si. Queria dizer que só a psicologia cujo objeto é a evolução do homem é digna de ser estudada e que a psicologia que se ocupa de uma única fase do homem, sem nada conhecer das demais, é, evidentemente, incompleta e não pode ter valor algum, nem sequer de um ponto de vista puramente científico, isto é, do ponto de vista da experiência e da
observação. Com efeito, a fase atual , tal como a estuda a psicologia comum, não existe separadamente como tal e comporta numerosas subdivisões que vão desde as fases inferiores até as superiores. Além do mais, a própria experiência e a observação mostram que não se pode estudar a psicologia como se estuda qualquer outra ciência, sem relação direta alguma consigo mesmo. Cumpre começar o estudo da psicologia partindo de si.
Se confrontarmos, por um lado, o que podemos saber sobre a fase seguinte da evolução do homem — no curso da qual adquirirá a consciência, a unidade interior, um Eu permanente e a vontade — e, por outro, certos dados da observação de si que nos permitam reconhecer que não possuímos nenhum destes poderes e faculdades que nos atribuímos, tropeçaremos em nova dificuldade em nosso esforço para compreender a significação da psicologia. E sentiremos a necessidade de nova definição. As duas definições dadas na conferência anterior não são suficientes, porque o homem não sabe qual evolução lhe é permitida, não vê em que ponto se encontra atualmente e se atribui características que pertencem a fases superiores da evolução. De fato, ele não pode estudar-se, sendo incapaz de distinguir entre o imaginário e o real nele.
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O que é mentir? Em linguagem corrente, mentir quer, dizer deformar ou, em certos casos, dissimular a verdade ou o que se acredita ser a verdade. Tal espécie de mentira desempenha um papel muito importante na vida. Há, porém, formas muito piores de mentira, as que o homem diz
sem saber que mente. Já lhes disse que, em nosso estado atual, não podemos conhecer a verdade e que somente nos é dado conhecê-la no estado de consciência objetiva. Como podemos então mentir? Parece haver aí uma contradição, mas na realidade não existe nenhuma. Não podemos conhecer a verdade, mas podemos fingir conhecê-la. E mentir é isso. A mentira preenche nossa vida toda. As pessoas aparentam saber tudo sobre Deus, a vida futura, o universo, as origens do homem, a evolução, sobre todas as coisas, mas, na realidade, nada sabem, nem sequer sobre si mesmas. E, cada vez que falam de algo que não conhecem, como se o conhecessem, elas mentem. Por conseguinte, o estudo da mentira torna-se de importância primordial em psicologia.
Isso poderia até conduzir a esta terceira definição da psicologia: a psicologia é o estudo da mentira. A psicologia dá particular atenção às mentiras que o homem conta sobre si mesmo. Essas mentiras tornam muito difícil o estudo do homem. Tal como é, o homem não é um artigo
autêntico. Ë a imitação de algo e até mesmo uma péssima imitação. Imaginem que um sábio de um planeta distante receba da Terra amostras de flores artificiais, sem nada saber sobre as flores verdadeiras. Ser-lhe-á extremamente difícil defini-las, explicar sua forma, suas cores, os materiais de que são feitas — algodão, arame, papel colorido — e classificá-las de um modo qualquer. Com relação ao homem, a psicologia encontra-se em situação totalmente análoga. Ë
obrigada a estudar um homem artificial, sem conhecer o homem real. Ë evidente que não é fácil estudar um ser como o homem, que não sabe, ele próprio, o que é real e o que é imaginário nele mesmo. De modo que, a psicologia deve começar por estabelecer distinção entre o real e o imaginário do homem.
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É impossível estudar o homem como um todo, porquanto ele está dividido em duas partes: uma que, em certos casos, pode ser quase inteiramente real e outra que, em certos casos, pode ser quase inteiramente imaginária. Na maioria dos homens comuns, essas duas partes estão entremescladas e não é fácil distingui-las, se bem que cada uma delas esteja presente e cada uma possua significação e efeitos particulares. No sistema que estudamos, essas duas partes são chamadas essência e personalidade. A essência é o que é inato no homem.
A personalidade é o que é adquirido.
A essência é seu bem próprio, o que é dele. A personalidade é o que não é dele. A essência não pode perder-se, não pode ser modificada nem degradada tão rapidamente como a personalidade. A personalidade pode ser modificada quase por completo com uma mudança de circunstâncias; pode perder-se ou deteriorar-se facilmente. Se tento descrever o que é a essência, devo dizer, antes de tudo, que é a base da estrutura física e psíquica do homem. Por exemplo, um homem é por natureza o que se chama de bom marinheiro, outro não é; um tem ouvido musical, outro não tem; um tem o dom das línguas, outro carece dele. Eis aí a essência.
A personalidade é tudo o que pôde ser aprendido de um modo ou de outro — em linguagem corrente, “consciente” ou “inconscientemente”. Na maioria dos casos, “inconscientemente” significa por imitação, desempenhando a imitação, de fato, um papel muito importante na construção da personalidade. Mesmo nas funções instintivas que, por natureza, deveriam ser isentas de personalidade, existem geralmente muitos “gostos adquiridos”, isto é, toda espécie de “eu gosto” e “eu não gosto” artificiais, adquiridos todos por imitação ou imaginação. Esses “gosto” e “não gosto” artificiais desempenham um papel muito importante e desastroso na vida do homem. Por natureza, o homem deveria gostar do que é bom para ele e detestar o que é mau para ele. E assim é, enquanto a essência domina a personalidade, como deveria fazê-lo ou, dito de
outro modo, enquanto o homem é são e normal. Mas, quando a personalidade começa a dominar a essência
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e o homem já é menos são, começa a gostar do que é mau para ele e a detestar o que lhe é bom.
E aqui tocamos no que pode correr o risco de ser falseado, em primeiro lugar, nas relações entre a essência e a personalidade. Normalmente, a essência deve dominar a personalidade e a personalidade pode ser então muito útil. Mas, quando a personalidade domina a essência, isso acarreta os piores resultados.
Deve-se compreender que a personalidade é também necessária ao homem; não podemos viver sem personalidade, apenas com a essência. Mas a essência e a personalidade devem crescer paralelamente e jamais uma deve prevalecer sobre a outra. Casos em que a essência prevalece sobre a personalidade encontram-se entre as pessoas incultas; esses homens “simples”, como se diz, podem ser boníssimos e até inteligentes, mas são incapazes de desenvolver-se como aqueles cuja personalidade é mais desenvolvida.
Casos em que a personalidade prevalece sobre a essência encontram-se freqüentemente entre as pessoas cultas, e a essência permanece então num estado de semicrescimento ou de desenvolvimento incompleto. Desse modo, quando há desenvolvimento rápido e prematuro da personalidade, o crescimento da essência pode praticamente deter-se em idade muito tenra, e o resultado é que vemos homens e mulheres de aparência adulta, cuja essência, porém, permaneceu na idade de dez ou doze anos.
Inúmeras condiões da vida moderna favorecem esse subdesenvolvimento da essência.
Por exemplo, o empolgamento pelo esporte e, sobretudo, pela competição desportiva, pode muito bem deter o desenvolvimento da essência e às vezes até em idade tão tenra, que a essência nunca mais é capaz de erguer-se novamente. Isso mostra que a essência não pode ser encarada unicamente com relação à constituição física, no sentido simples desta noção. A fim de explicar mais claramente o que significa a essência, é necessário, uma vez mais, que eu volte ao estudo das funções.
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Disse, na primeira conferência, que o estudo do homem começa pelo estudo de quatro funções: intelectual, emocional, motora e instintiva. Segundo a psicologia comum e o pensamento comum, sabemos que as funções intelectuais são assumidas e controladas por determinado centro, que se chama “mente” ou “intelecto” ou “cérebro”. E isso é muito justo; entretanto, para que seja realmente justo, devemos compreender que as outras funções também são controladas por um cérebro, ou centro, particular a cada uma delas. Por conseguinte, do ponto de vista deste ensinamento, há quatro cérebros ou centros que controlam nossas ações ordinárias: o cérebro ou centro intelectual, o centro emocional, o centro motor e o centro instintivo. Quando os mencionarmos a seguir, chamá-los-emos sempre centros. Cada centro é completamente independente dos outros, possui sua esfera de ação particular, seus próprios poderes e suas próprias modalidades de desenvolvimento.
Os centros, isto é, sua estrutura, suas capacidades, seus lados fortes e seus pontos débeis pertencem à essência. Seu conteúdo, isto é, tudo o que cada um deles adquire, pertence à personalidade. O conteúdo dos centros será explicado mais adiante. Como já disse, para o desenvolvimento do homem, a personalidade é tão necessária quanto a essência, mas deve manter-se em seu lugar. Isso é quase impossível de se efetuar porque a personalidade está cheia de idéias falsas sobre si mesma. Não quer nunca permanecer em seu lugar, porque seu verdadeiro lugar é secundário e subordinado; não quer conhecer a verdade sobre si mesma, porque conhecer a verdade significaria abandonar a situação usurpada e ocupar a situação inferior que, na realidade, lhe compete. A falsa situação na qual se encontram a essência e a personalidade, uma em relação à outra, determina a falta de harmonia no estado atual do homem e o único meio de sair desse estado de desarmonia é o conhecimento de si.
Conhece-te a ti mesmo — este era o primeiro princípio e a primeira exigência de todas as antigas escolas de psicologia. Lembramo-nos ainda dessas palavras, mas perdemos sua significação. Pensamos que conhecermo-nos a nós mesmos quer dizer
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conhecermos nossas particularidades, nossos desejos, nossos gostos, nossas capacidades e nossas intenções, quando na realidade isso significa conhecermo-nos como máquinas, isto é, conhecermos a estrutura da nossa máquina, suas partes, as funções das diferentes partes, as condições que regem seu trabalho, e assim por diante. Compreendemos, em geral, que não podemos conhecer máquina alguma sem havê-la estudado. Devemos nos lembrar disso quando se trata de nós mesmos e devemos estudar nossa própria máquina como máquina que é. O meio de estudá-la é a observação de si. Não existe outro meio e ninguém pode fazer esse trabalho por nós. Devemos fazê-lo nós mesmos. Antes, contudo, devemos aprender como observar. Quero dizer que devemos compreender o lado técnico da observação, devemos saber que é necessário observar diferentes funções e distinguilas entre si, recordando ao mesmo tempo o que sabemos dos diferentes estados de consciência, do nosso sono e dos numerosos “eus” que existem em nós.
Tais observações darão resultado prontamente. Em primeiro lugar, o homem notará que não pode observar imparcialmente nada do que encontra em si mesmo. Certos traços lhe agradarão, outros lhe desagradarão, o irritarão ou mesmo lhe causarão horror. E não pode ser de outro modo. O homem não pode estudar-se como se fosse uma estrela longínqua ou curiosa espécie de fóssil. Naturalmente, gostará nele daquilo que favorece o seu desenvolvimento e detestará aquilo que torna esse desenvolvimento mais difícil ou até impossível. Isso quer dizer que muito pouco tempo depois de haver começado a observar-se, distinguirá em si os traços úteis e os traços prejudiciais, isto é, úteis ou prejudiciais do ponto de vista de um conhecimento possível de si mesmo, de um despertar possível, de um desenvolvimento possível. Discernirá nele o que pode tornar-se consciente e o que não pode e deve ser eliminado. Ao se observar, nunca deverá esquecer que o estudo de si é o primeiro passo no caminho de sua evolução possível.
Devemos, agora , examinar quais são esses traços prejudiciais que o homem encontra em si mesmo. De modo geral, são todas as manifestações mecânicas. Como já dissemos, a primeira é
mentir. A mentira é inevitável na vida
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mecânica. Ninguém pode escapar dela e, quanto mais cremos estar livres da mentira, mais ela nos tem em seu poder. A vida tal qual é hoje não poderia continuar sem a mentira. Mas, do ponto de vista psicológico, a mentira tem outro sentido. Significa falar de coisas que não conhecemos e que nem sequer podemos conhecer, como se as conhecêssemos e como se pudéssemos conhecê-las. Devem compreender bem que não me coloco num ponto de vista moral, seja qual for. Não
chegamos ainda à questão do que é bom e do que é mau em si. Coloco-me no simples ponto de vista prático, falo só do que é util ou prejudicial ao estudo de si e ao desenvolvimento de si.
Começando desse modo, o homem aprende muito depressa a descobrir os sinais pelos quais pode reconhecer em si mesmo as manifestações prejudiciais. Descobre que quanto mais controla uma manifestação, menos prejudicial ela é e que quanto menos a controla — por conseguinte, quanto mais mecânica ela é — mais prejudicial pode se tornar.
Ao compreender isso, o homem tem medo de mentir, não por razões morais, repito, mas porque não pode controlar sua mentira e porque a mentira o controla, isto é, controla suas outras funções. O segundo traço perigoso que encontra em si mesmo é a imaginação. Depois de ter começado a observar-se, chega bem depressa à conclusão de que o principal obstáculo à observação é a imaginação. Quer observar alguma coisa, mas em lugar disso é tomado pela imaginação e se esquece de observar. Não tarda a dar-se conta de que à palavra “imaginação” é dado um sentido fictício e de modo algum justificado: o de faculdade criadora ou seletiva. Percebe que a imaginação é uma faculdade destrutiva, que ele nunca pode controlá-la e que ela sempre o arrasta para longe de suas decisões mais, conscientes, numa direção aonde não tinha intenção de ir. A imaginação é quase tão perniciosa quanto a mentira; de fato, imaginar é mentir-se a si mesmo. O homem começa a imaginar algo para dar prazer a si mesmo e rapidamente começa a acreditar no que imagina, pelo menos em parte.
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Descobre-se ainda, às vezes até no início, quantas conseqüências perigosas pode ter a expressão das emoções negativas. Por “emoções negativas” designam-se todas as emoções de violência ou depressão: compaixão de si mesmo, cólera, suspeita, medo, contrariedade, aborrecimento, desconfiança, ciúme, etc. Comumente, aceita-se a expressão das emoções negativas como coisa inteiramente natural e até necessária. Freqüentemente as pessoas chamam-na “sinceridade”. Ë claro que isso nada tem a ver com sinceridade; é simplesmente sinal de debilidade no homem, sinal de mau caráter e de impotência de guardar para si seus próprios agravos. O homem compreende isso quando se esforça em opor-se a suas emoções negativas. E isso é uma lição nova para ele. Vê que não basta observar as manifestações mecânicas; é preciso resistir a elas, porque sem resistir-lhes, não pode observá-las. Sua aparição é tão rápida, tão familiar e tão imperceptível, que é impossível notá-las, se não fizermos esforços suficientes para criar-lhes obstáculos. Depois da expressão das emoções negativas, cada um pode descobrir em si mesmo e nos outros um traço mecânico curioso. Ë o fato de falar. Não há mal algum no próprio fato de
falar. Mas, em certas pessoas, e muito particularmente nas que menos se dão conta disso, falar converte-se realmente num vício. Falam o tempo todo, onde se encontrem, no trabalho, viajando, até dormindo. Não param nunca de falar, quando podem falar a alguém e, se não há ninguém, falam consigo mesmas. Também aí é necessário não só observar, mas resistir o mais possível. Se alguém se permite falar sem resistir, nada pode observar e os resultados das observações que faz evaporam-se imediatamente em tagarelice.
As dificuldades que o homem experimenta para observar essas quatro manifestações — mentir, imaginar, expressar emoções negativas e falar sem necessidade — mostrarlhe- ão sua completa mecanicidade e a própria impossibilidade em que se encontra de lutar contra essa mecanicidade sem ajuda, ou seja, sem um novo saber e sem assistência direta. Pois, mesmo que tenha recebido certas indicações, o homem se esquece de utilizá-las, se esquece de observar-se; em outras palavras, recai no sono e tem que ser sempre despertado.
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Essa queda perpétua no sono apresenta certos aspectos bem determinados, de que a psicologia comum nada sabe ou, pelo menos, que ela não pode nem classificar, nem definir. Esses aspectos necessitam de um estudo especial. São em número de dois: o primeiro denomina-se identificação.
A “identificação” é um estado curioso, no qual o homem passa mais da metade de sua vida.
O homem “identifica-se” com tudo: com o que diz, com o que sabe, com o que crê, com o que não crê, com o que deseja, com o que não deseja, com o que o atrai ou com o que o repele. Tudo o absorve. E é incapaz de separar-se da idéia, do sentimento ou do objeto que o absorve. Isso quer dizer que no estado de identificação o homem é incapaz de considerar imparcialmente o objeto de sua identificação. Ë difícil encontrar uma coisa, por pequena que seja, com a qual o homem não possa identificar-se. Ao mesmo tempo, no estado de identificação, o homem tem menos controle que nunca sobre suas reações mecânicas. Manifestações tais como a mentira, a imaginação, a expressão das emoções negativas e a tagarelice constante exigem a identificação. Não podem existir sem identificação. Se o homem pudesse libertar-se da identificação, libertar-se-ia de muitas manifestações inúteis e tolas. A identificação, seu verdadeiro sentido, suas causas e resultados são admiravelmente descritos na Philokalia, da qual falamos na primeira conferência. Mas, não se poderia encontrar na psicologia moderna o menor sinal de compreensão a esse respeito. Ë uma “descoberta psicológica” completamente esquecida. O segundo fator de sono é um estado muito próximo da identificação, chamado “consideração”. De fato, “considerar” é identificar-se com as pessoas. Ë um estado no qual o homem se preocupa constantemente com o que as pessoas pensam dele: tratam-no de acordo com seus méritos? Admiram-no o bastante? E assim até o infinito. A “consideração” desempenha um papel muito importante na vida de cada um, mas para certas pessoas converte-se em obsessão. Sua vida inteira está tecida de “consideração”, quer dizer, de preocupação, de dúvida e de suspeita. a ponto de não deixar lugar para mais nada.
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O mito do “complexo de inferioridade” e dos outros “complexos” nasceu desses fenômenos vagamente percebidos, mas não compreendidos, de “identificação” e de “consideração”.
A “identificação” e a “consideração” devem ambas ser observadas de maneira muito séria.
Só o pleno conhecimento que delas se possa ter permite enfraquecê-las. Se não se pode vê-las em si mesmo, pode-se facilmente observá-las nos outros. Mas é preciso que nos lembremos de que nós próprios não somos em nada diferentes dos outros. A esse respeito, todos os homens são iguais. Voltando ao que dizíamos há pouco, devemos esforçar-nos em ter uma idéia mais clara da
maneira pela qual o desenvolvimento do homem deve começar. E devemos compreender em que o estudo de si pode ajudar-nos nisso. Desde o início, encontramos uma dificuldade em nossa linguagem. Por exemplo, queremos falar do homem do ponto de vista da evolução. Mas a palavra “homem”, na linguagem comum, não admite variação alguma, gradação alguma. O homem que nunca está consciente e nem sequer suspeita disso, o homem que luta para tornar-se consciente, o homem que é plenamente consciente, tudo é a mesma coisa para a nossa linguagem. Num caso como no outro é sempre o “homem”. Para evitar essa dificuldade e para facilitar a classificação
das novas idéias que apresenta, este ensinamento divide o homem em sete categorias.
As três primeiras categorias estão praticamente no mesmo nível.
O homem n.0 1 é um homem no qual o centro instintivo ou o centro motor prevalece sobre os centros intelectual e emocional; dito de outro modo: é o homem físico.
O homem n.0 2 é um homem no qual o centro emocional prevalece sobre os centros
intelectual, motor e instintivo: e o homem emocional.
O homem n.0 3 é um homem no qual o centro intelectual prevalece sobre os centros
emocional, motor e instintivo: é o homem intelectual.
Na vida comum, só encontramos essas três categorias de homens. Cada um de nós, cada
um daqueles que conhecemos é
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um homem n.0 1, um homem n. 2 ou um homem n.0 3. Há categorias superiores de homens, mas nenhum de nós pertence, desde o nascimento, a essas categorias superiores. Os homens nascem todos n.”~ 1, 2 ou 3, e só podem atingir as categorias superiores passando por escolas.
O homem n.0 4 não nasceu como tal. E o produto de uma cultura de escola. Difere dos homens n.0’ 1, 2 ou 3, pelo conhecimento que tem de si mesmo, pela compreensão de sua própria situação e pelo fato de ter adquirido um centro de gravidade permanente. Esta última expressão significa que, para ele, a idéia de adquirir a unidade, a consciência, o “Eu” permanente e a vontade, isto é, a idéia de seu desenvolvimento, tornou-se mais importante que todos os seus outros interesses.
A essas características do homem n.0 4 ~, é preciso acrescentar que suas funções e seus centros estão mais bem equilibrados, e isto num nível que ele jamais teria podido atingir antes de haver trabalhado sobre si mesmo segundo os princípios e métodos de uma escola.
O homem n.0 5 é um homem que adquiriu a unidade e a consciência de si. E diferente do homem comum, pois já trabalha nele um dos centros superiores e possuí numerosas funções e poderes que o homem comum, os homens n.0’ 1, 2 ou 3, não possui. O homem n.0 6 é um homem que adquiriu a consciência objetiva. Outro centro superior trabalha nele. Possui um número muito maior de faculdades e poderes novos, que estão muito além do entendimento do homem comum.
O homem n.0 7 é um homem que alcançou tudo o que um homem pode alcançar. Tem um Eu permanente e uma vontade livre. Pode controlar, em si mesmo, todos os estados de consciência
e doravante não poderá perder absolutamente nada do que adquiriu. Segundo outra definição, é imortal nos limites do sistema solar. E muito importante compreender essa divisão do homem em sete categorias, pois ela encontra aplicação em todas as formas possíveis de estudo da atividade humana. Constitui, nas mãos daqueles que a compreendem, uma ferramenta das mais
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sólidas, um instrumento dos mais sutis, para definir manifestações que, sem ela, são impossíveis de definir. Tomem, por exemplo, os conceitos gerais de religião, de arte, de ciência e de filosofia.
Começando pela religião, podemos ver de imediato que há, forçosamente, uma religião do homem n.0 1, que abarca todas as formas de fetichismo, seja qual for o nome que se lhes dê; uma religião do homem n.0 2, isto é, uma religião de emoção, de sentimento, que às vezes chega até ao fanatismo, até às formas mais brutais da intolerância, até à perseguição dos hereges, e assim por diante; uma religião do homem n.0 3, religião teórica, escolástica, cheia de argúcias sobre as palavras, as formas, os rituais, que assumem mais importância que qualquer outra coisa; uma religião do homem n.0 4, isto é, do homem que trabalha no desenvolvimento de si; uma religião do homem n 5, ou seja, a religião de um homem que alcançou a unidade e pode ver e conhecer muitas coisas que os homens n.0’ 1, 2 ou 3 não podem ver nem conhecer; por fim, uma religião do homem n.0 6 e uma religião do homem n 7, sobre as quais não podemos conhecer absolutamente nada. A mesma divisão aplica-se à arte, à ciência e à filosofia. Deve haver uma arte do homem n.0 1, uma arte do homem n.0 2, uma arte do homem n.0 3; uma ciência do homem n.0 1, uma ciência do homem n 2, uma ciência do homem n.0 3, uma ciência do homem n.0 4, e assim por diante. Tentem encontrar exemplos por si mesmos.
Essa expansão dos conceitos aumenta muito nossas possibilidades de encontrar soluções justas para muitos de nossos problemas. E isso significa que este ensinamento nos dá a possibilidade de estudar uma nova linguagem — quero dizer, nova para nós — que nos vai permitir concatenar idéias de categorias diferentes que, na realidade, estão ligadas, e separar idéias que parecem pertencer à mesma categoria, mas que, na realidade, são diferentes. A divisão da palavra “homem” em sete denominações: homem n.0 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 7, com tudo o que daí decorre, é um exemplo dessa nova linguagem.
Temos assim uma quarta definição de psicologia: a psicologia é o estudo de uma nova linguagem. E essa nova linguagem
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é a linguagem universal que os homens se esforçam, às vezes, por descobrir ou inventar. A expressão “linguagem universal” ou “filosófica” não deve ser tomada como metáfora. Essa linguagem é universal no mesmo sentido em que os símbolos matemáticos são universais. Ademais, ela contém em si mesma todas as interpretações que dela os homens poderão dar. Vocês só conhecem ainda algumas palavras dessa linguagem, mas elas já lhes dão a possibilidade de pensar e falar com mais precisão do que lhes permite a linguagem comum, ainda que usem terminologias e nomenclaturas científicas ou filosóficas.
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TERCEIRA CONFERÊNCIA

A idéia de que o homem é uma máquina não é nova. E realmente o único ponto de vista científico possível, pois é baseado na experiência e na observação. Durante a segunda metade do século XIX, o que se chamava “psicofisiologia” dava uma definição muito boa da mecanicidade do homem. O homem era considerado incapaz de fazer qualquer movimento se não recebesse impressões exteriores. Os sábios dessa época sustentavam que, se fosse possível privar o homem, desde o nascimento, de qualquer impressão exterior ou interior, mas mantendo-o vivo, ele seria incapaz de fazer o menor movimento. Tal experiência, evidentemente, é impossível, mesmo com um animal, pois o próprio processo de manutenção da vida - respiração, alimentação, etc. — produziria toda sorte de impressões, que desencadeariam diferentes movimentos reflexos, despertando depois o centro motor.
Essa idéia, entretanto, é interessante, pois mostra claramente que a atividade da máquina depende de impressões externas e começa com reações a essas impressões. Na máquina, cada centro está perfeitamente adaptado para receber a espécie de impressões que lhe é própria e para responder a elas da maneira desejada. E, quando os centros trabalham corretamente, é possível calcular o trabalho da máquina. Pode-se prever e predizer muitos incidentes e reações que se produzirão na máquina. Pode-se estudá-los e até dirigi-los.
Infelizmente, os centros rarissimamente trabalham como deveriam, mesmo num homem considerado são e normal. Isso porque os centros estão feitos de tal modo que podem, até certo ponto, substituir-se mutuamente. No plano original da
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natureza, a finalidade era, sem dúvida alguma, assegurar desse modo a continuidade do funcionamento dos centros e criar uma salvaguarda contra possíveis interrupções do trabalho da máquina, porquanto em certos casos uma interrupção poderia ser fatal. Mas, nessas máquinas indisciplinadas que somos todos nós, a capacidade que têm os centros de trabalhar um pelo outro torna-se tão excessiva, que cada um deles raramente faz seu próprio trabalho. Quase a cada minuto, um ou outro centro abandona seu próprio trabalho e procura fazer o do outro, o qual, por sua vez, procura fazer o de um terceiro. Os centros, como já disse, podem substituir-se um ao outro até certo ponto, mas não completamente; e, nesse caso, trabalham, evidentemente, de maneira muito menos eficaz. Por exemplo, o centro motor pode, dentro de certos limites, imitar o trabalho do centro intelectual, mas só produzirá pensamentos muito vagos, muito desconexos, como nos sonhos e devaneios. Por sua vez, o centro intelectual pode trabalhar em lugar do centro
motor. Tente, por exemplo, escrever pensando em cada uma das letras e como formá-las.
Você pode tentar experiências semelhantes, tratando de servir-se do pensamento para fazer qualquer coisa que as mãos ou as pernas podem realizar sem a ajuda dele. Tente, por exemplo, descer uma escada observando cada movimento, ou executar um trabalho manual que lhe seja familiar, calculando e preparando em pensamento cada pequeno gesto; verá logo quão mais difícil se torna o trabalho e até que ponto o centro intelectual é mais lento e mais desajeitado que o centro motor.
Pode ainda constatá-lo quando aprende um novo tipo de movimento. Suponha que você aprenda a escrever à máquina ou empreenda qualquer tipo de trabalho físico que seja novo ou, então, tome o exemplo do soldado que se exercita no manejo do fuzil. Durante algum tempo, todos os seus movimentos dependerão do centro intelectual e só mais tarde passarão ao centro motor.
Todos conhecemos o alívio que se experimenta quando os movimentos já se tornaram automáticos, quando os ajustes foram feitos e quando não há mais necessidade de pensar nem calcular incessantemente cada movimento. Isso significa que os movimentos
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passaram para o centro motor, ao qual normalmente pertencem. O centro instintivo pode trabalhar pelo centro emocional e este pode, ocasionalmente, trabalhar por todos os outros centros. Em certos casos, o centro intelectual pode trabalhar em lugar do centro instintivo, embora sé possa fazer uma parte muito reduzida desse trabalho, a que se relaciona com os movimentos visíveis, os movimentos do tórax durante a respiração, por exemplo. E muito perigoso intervir nas funções normais do centro instintivo; é o caso da respiração artificial, descrita às vezes como “respiração dos iogues” e que sé deve ser empreendida sob a vigilância de um mestre competente e experimentado.
Voltando ao trabalho incorreto dos centros, devo dizer que preenche praticamente toda a nossa vida. Nossas impressões esmaecidas, nossas vagas impressões, nossa falta de impressões, nossa lentidão em compreender muitas coisas, freqüentemente a nossa identificação e consideração, mesmo a nossa mentira, tudo isso depende do trabalho incorreto dos centros.
A idéia do trabalho incorreto dos centros não entra em nossa maneira de pensar, nem em nossa compreensão comum; não vemos todo o mal que nos faz este trabalho incorreto, toda a energia que consome sem necessidade, todas as dificuldades que nos cria. Esse desconhecimento do trabalho incorreto de nossa máquina está habitualmente ligado à noção ilusória que temos de nossa unidade. Quando compreendemos até que ponto estamos divididos dentro de nós mesmos, começamos a dar-nos conta do perigo que representa este fato de uma parte de nós mesmos trabalhar em lugar de outra, sem que o saibamos.
O homem que deseja estudar-se e observar-se deverá, pois, estudar e observar não só o trabalho correto de seus centros, mas também o trabalho incorreto deles. E necessário conhecer todos os tipos de trabalho incorreto e seus traços característicos em determinados indivíduos. Sem conhecer as próprias imperfeições e defeitos, é impossível conhecer-se. E, além dos defeitos comuns a todos, cada um de nós tem seus defeitos particulares, próprios só de si mesmos, que devem ser estudados no momento oportuno.
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Como já fiz notar no início, a idéia de que o homem é uma máquina posta em ação por influências exteriores é uma idéia realmente científica. O que a ciência não sabe é que:
Primeiro: a máquina humana não atinge seu nível normal de atividade e trabalha muito abaixo desse nível, isto é, não dá toda a sua capacidade e não funciona com todas as suas partes.
Segundo: Apesar de numerosos obstáculos, a máquina humana é capaz de desenvolver-se e criar para si mesma níveis muito diferentes de receptividade e de ação. Cumpre-nos falar agora das condições necessárias ao desenvolvimento, pois deve-se recordar que, se o desenvolvimento é possível, é também muito raro e requer muitas condições exteriores e interiores.
Quais são essas condições?
A primeira é que o homem deve compreender sua situação, suas dificuldades e suas possibilidades; deve ter um desejo muito forte de sair de seu estado presente ou um interesse muito grande pelo novo estado desconhecido que a mudança deve trazer. Em suma, deve experimentar unia violenta repugnância por seu estado presente ou uma viva atração pelo estado futuro que ele poderá alcançar. Depois, é preciso ter uma certa preparação. O homem deve ser capaz de compreender o que se lhe diz.
Deve, além disso, encontrar-se em boas condições exteriores, deve ter tempo bastante para estudar e deve viver num ambiente que torne tal estudo possível. Não podemos enumerar todas as condições necessárias. Mas, antes de tudo, elas comportam uma escola. E uma escola implica, no país onde existe, certas condições sociais e políticas, porque uma escola não pode existir em condições quaisquer; uma vida mais ou menos ordenada, um certo grau de cultura e de liberdade individual lhe são necessários. A esse respeito, nossa época não é particularmente favorável. No oriente, as escolas estão desaparecendo rapidamente. E parece que, em muitos países, sua existência se torna impossível.
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Citei a esse respeito, no Novo Modelo do Universo, alguns versículos das Leis de Manu. “Regras para um Snataka (Dono de casa):
CAPITULO IV
61. Que não resida em país governado por súdras, nem em país habitado por homens ímpios, nem em país conquistado pelos hereges, nem em país onde abundem os homens das castas mais baixas.
79.Que não permaneça, sequer à sombra de uma árvore, em companhia de pessoas degradadas, nem de Tchândalas, os mais baixos dos homens, nem de Pukkasas, nem de idiotas, nem de homens arrogantes, nem de homens de baixa classe, nem de Antyâvasâyis (coveiros).
CAPITULO VIII
22.Um reino povoado sobretudo por sudras, cheio de homens ímpios e privado de habitantes duas vezes nascidos, rapidamente perecerá por completo, atacado pela fome e pela doença.”
Essas idéias das Leis de Manu são muito interessantes, porque dão ao homem uma base que lhe permitiria compreender. as diferentes condições políticas e sociais do ponto de vista do trabalho de escola, distinguir as condições de um progresso real daquelas que só trazem a destruição de todos os verdadeiros valores, mesmo que seus partidários pretendam que estas condições sejam progressistas e, deste modo, cheguem a enganar um grande número de pobres de espírito.
No entanto, as condições exteriores não dependem de nós. Dentro de um certo limite e, às vezes com grandes dificuldades, podemos escolher o país onde preferimos viver, mas não podemos escolher nossa época. E no século onde o destino nos colocou que devemos nos esforçar para encontrar o que queremos.
Assim, devemos compreender que a própria preparação para o desenvolvimento de si exige um conjunto de condições exteriores e interiores raramente reunidas.
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Ao mesmo tempo, porém, devemos compreender que, ao menos no que concerne às condições interiores, o homem não está inteiramente entregue à lei do acidente. Numerosas luzes foram preparadas em sua intenção, graças às quais ele pode encontrar seu caminho, se o deseja verdadeiramente e tem sorte. Suas possibilidades são tão diminutas, que o fator “sorte” não pode ser excluído. Tentemos agora responder à pergunta: de onde nasce, no homem, o. desejo de adquirir um novo conhecimento e de mudar?
O homem vive sob duas espécies de influências. Isso deve ser bem compreendido. E a diferença entre as duas espécies de influências deve ser muito clara. A primeira consiste em interesses e atrações criados pela própria vida: interesses de saúde, segurança, conforto, fortuna, prazeres, distrações, vaidade, orgulho, reputação, etc.
A segunda consiste em interesses de outra ordem, despertados por idéias que não são criadas pela vida, mas que têm origem nas escolas. Essas influências não atingem o homem diretamente. São jogadas no turbilhão geral da vida, passam através de muitos espíritos diferentes e atingem o homem pela filosofia, pela ciência, pela religião e pela arte, sempre mescladas às influências da primeira espécie, e acabam por perder qualquer semelhança com o que eram no começo.
O mais das vezes, o homem não discerne a diferença de origem das influências da segunda espécie e explica-as para si mesmo como tendo a mesma origem que as da primeira espécie.
Embora o homem ignore a existência de duas espécies de influências, ambas se exercem sobre ele e, de uma maneira ou de outra, ele reage a elas. Ele ‘pode estar mais ou menos identificado com uma ou várias influências da primeira espécie e não sentir as influências da segunda. Ou, então, pode ser atraído e tocado por esta ou aquela influência da segunda espécie. Em cada caso, o resultado será diferente.
Chamaremos a primeira espécie de influência, influência A e a segunda, influência B.
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Se um homem está completamente em poder das influências A, ou de uma influência A em particular, e totalmente indiferente às influências B, nada mudará para ele e suas possibilidades de desenvolvimento diminuirão de ano para ano. Numa certa idade, às vezes até muito cedo, elas podem desaparecer para sempre, o que equivale a dizer que o homem morre, embora permaneça fisicamente vivo, como uma semente sem condições de germinar e de produzir uma planta.
Mas se, ao contrário, o homem não estiver completamente em poder das influências A e certas influências B o atraírem, o comoverem, fizerem-no pensar, os resultados das impressões que elas produzirem aglomerar-se-ão nele, atraindo outras influências da mesma espécie, e crescerão, ocupando um lugar cada vez mais importante em seu espírito e em sua vida.
Quando os resultados das influências B tiverem adquirido bastante força, fundir-se-ão para formar no homem o que se chama centro magnético. E preciso compreender de imediato que a palavra “centro” não tem aqui o mesmo sentido que nas expressões “centro intelectual” ou “centro motor”. Estes últimos pertencem à essência, O centro magnético pertence à personalidade; é simplesmente um grupo de interesses que, ao se tornarem bastante fortes, servem até certo ponto como fator de orientação e de controle. O centro magnético canaliza nossos interesses em determinada direção e ajuda-os a nela se manterem.
Ao mesmo tempo, ele não pode fazer grande coisa por si mesmo. Uma escola é necessária. O centro magnético não pode substituir uma escola, mas pode ajudar a tomar consciência da necessidade de uma escola; pode ajudar a pôr-se em busca de uma escola ou, se o homem por acaso encontrar uma, pode ajudá-lo a reconhecê-la e a tentar não perdê-la. Pois nada é mais fácil de perder que uma escola. A posse de um centro magnético é a primeira exigência, aliás não formulada, de uma escola. Se um homem for privado de centro magnético, ou se tiver um centro magnético insignificante ou, ainda, se tiver vários centros magnéticos contraditórios, isto é, se
estiver simultaneamente interessado em coisas incompatíveis, no momento em que encontrar uma escola, não se interessará por ela ou criticá-la-á antes mesmo de saber algo ou, então, seu interesse desaparecerá rapidamente diante das
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primeiras dificuldades do trabalho de escola. E esta é a principal salvaguarda de uma escola. Sem isso, a escola estaria atravancada de pessoas não-qualificadas, que fariam desviar imediatamente o ensinamento.
Um verdadeiro centro magnético ajuda não sé a reconhecer uma escola, mas também a assimilar o ensinamento da escola, que difere tanto das influências A quanto das influências B e pode ser chamado influência C.
A influência C só pode ser transmitida pela palavra, por ensinamento direto, por explicação e demonstração. Quando um homem encontra a influência C e se mostra capaz de assimilá-la, diz-se dele que, em certo ponto de si mesmo, isto é, em seu centro magnético, está libertado da lei
do acidente.
A partir desse momento, o centro magnético desempenhou seu papel. Conduziu o homem a uma escola ou ajudou-o a dar os primeiros passos nela. Daí por diante, as idéias e o ensinamento da escola ocupam o lugar do centro magnético e começam a penetrar lentamente nas diferentes partes da personalidade e, depois, com o tempo, até a essência.
Podem-se colher muitas informações sobre as escolas, sua organização e sua atividade, simplesmente lendo e estudando os períodos da história em que as escolas eram mais acessíveis. Mas há certas coisas que só se podem aprender nas próprias escolas. E as explicações dos princípios e das regras de escola ocupam um lugar muito grande em seu ensinamento.
Um dos mais importantes princípios que se aprendem desse modo é que o verdadeiro trabalho de escola deve ser feito simultaneamente em três linhas. Um trabalho em uma linha ou um trabalho em duas linhas não pode ser verdadeiro “trabalho de escola”.
Quais são essas três linhas?
Na primeira conferência, disse que estas conferências não são uma escola. Agora vou poder explicar porque elas não são uma escola. Um dia, durante uma conferência, fizeram esta pergunta: “Aqueles que estudam este ensinamento trabalham só para si mesmos ou trabalham para os outros?” Vou respondê-la agora.
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A primeira linha de trabalho é o estudo de si e o estudo do ensinamento ou da “linguagem”. Quem trabalha nesta linha trabalha seguramente para si mesmo. A segunda linha é o trabalho com outras pessoas pertencentes à escola; trabalhando com elas, não se trabalha somente com elas, mas para elas. Assim, na segunda linha, aprendese a trabalhar com seres humanos e para seres humanos. Eis por que a segunda linha de trabalho é particularmente difícil para certas pessoas. Na terceira linha, trabalha-se para a escola. A fim de poder trabalhar para a escola, é
necessário, em primeiro lugar, compreender o trabalho da escola, compreender suas metas e suas necessidades. E isso exige tempo, a menos que se esteja realmente bem preparado: certas pessoas podem até começar pela terceira linha ou, em todo caso, reconhecê-la com muita facilidade.
Quando dizia que estas conferências não são uma escola, queria dizer que elas só permitem uma única linha de trabalho, quer dizer, o estudo do ensinamento e o estudo de si. E verdade que o próprio fato de estudar junto, permite aos homens travar conhecimento com a segunda linha de trabalho; pelo menos aprendem a suportar-se uns aos outros e, se sua visão for bastante ampla e sua percepção bastante rápida, poderão até vislumbrar a segunda e a terceira linhas de trabalho. Entretanto, não se pode esperar muito destas simples conferências.
Na segunda linha de trabalho, quando a escola está completamente organizada, os alunos devem não só falar juntos, mas trabalhar juntos, e este trabalho pode assumir formas muito diferentes, mas deve sempre, de uma maneira ou de outra, ser útil à escola. Isso significa que, trabalhando na primeira linha, estuda-se a segunda e, trabalhando na segunda linha, estuda-se a terceira. Mais tarde, aprenderão por que estas três linhas são todas necessárias e por que, sem elas, não há trabalho que possa progredir eficazmente em direção a uma meta bem definida.
Desde já podem compreender a razão principal dessa necessidade de três linhas de trabalho, se se derem conta de que o homem está adormecido e de que, seja qual for o trabalho que
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empreenda, ele perde rapidamente todo o interesse por esse trabalho e o prossegue mecanicamente. São necessárias três linhas, principalmente porque o trabalho em uma linha desperta o homem que adormece em outra. Se trabalharmos realmente em três linhas, jamais poderemos cair totalmente no sono; em todo caso, não poderemos dormir tão tranqüilamente quanto antes; seremos constantemente despertados e veremos que nosso trabalho se deteve.
Posso ainda indicar-lhes uma diferença bem característica entre as três linhas de trabalho.
Na primeira linha, o trabalho essencial é o estudo do ensinamento, o estudo de si, a observação de si e deve-se demonstrar, em seu trabalho, certa iniciativa em relação a si mesmo.
Na segunda linha, participa-se de um trabalho organizado, onde cada um só deve fazer o que lhe é pedido. Nenhuma iniciativa é exigida, nem mesmo admitida na segunda linha. Aí, o essencial é a disciplina; trata-se de conformar-se exatamente com o que lhe é dito, sem deixar intervir a menor idéia pessoal, mesmo que esta pareça melhor que as que foram dadas.
Na terceira linha, pode-se novamente manifestar certa iniciativa, mas deve-se sempre exercer um controle sobre si e não se permitir tomar decisões contrárias às regras e princípios ou contrárias ao que foi pedido. Disse que o trabalho começa pelo estudo da linguagem. A esse respeito, ser-lhes-á muito útil ver que já conhecem certo número de palavras desta nova linguagem e ser-lhes-á igualmente útil reuni-las e listá-las. Devem, porém, escrevê-las sem nenhum comentário, isto é, sem interpretá-las; os comentários, interpretações ou explicações devem estar em sua compreensão. Não podem transcrevê-los. Se isso fosse possível, o estudo dos ensinamentos psicológicos seria muito simples. Bastaria publicar uma espécie de dicionário ou glossário e cada um saberia tudo aquilo que é necessário saber. Infeliz, ou felizmente, isso é impossível, e os homens devem aprender a trabalhar cada um por si mesmo.
Voltemos aos centros e tratemos de descobrir por que não podemos desenvolver-nos mais rapidamente, sem passar por um longo trabalho de escola.
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sabemos que, quando aprendemos alguma coisa, acumulamos novos materiais em nossa memória. Mas o que é nossa memória? Para compreendê-lo, devemos aprender a considerar os centros como máquinas distintas e independentes, que comportam rolos de matéria sensível que podem ser comparados com as matrizes de fonógrafo. Tudo o que nos acontece, tudo o que vemos, tudo o que ouvimos, tudo o que sentimos, tudo o que aprendemos, é registrado nesses rolos. Em outros termos, todos os acontecimentos interiores e exteriores deixam certas “impressões” nesses rolos. “Impressões” é uma palavra muito boa, porque aí se trata realmente de uma impressão, de uma pegada. Uma impressão pode ser profunda, pode ser superficial ou simplesmente pode ser uma impressão fugaz, que desaparece rapidamente, sem deixar vestígio. Mas, profundas ou superficiais, são sempre impressões. E essas impressões nos rolos são tudo o que possuímos. Tudo o que conhecemos, tudo o que aprendemos, tudo o que experimentamos,
tudo está aí, em nossos rolos. Igualmente, todos os nossos processos de pensamento, nossos cálculos, nossas especulações limitam-se a comparar as inscrições dos rolos, a relê-las ainda e sempre, a tentar relacioná-las para compreendê-las, e assim por diante. Não podemos pensar nada de novo, nada que não se encontre escrito nos rolos. Nada podemos dizer nem fazer que não corresponda a uma inscrição nos rolos. Não podemos inventar um pensamento novo, assim como não podemos inventar um novo animal, visto que todas as nossas idéias de animais se baseiam na observação de animais já existentes. As inscrições ou impressões gravadas nos rolos são postas em relação pelas associações. As associações põem em relação impressões que são recebidas simultaneamente ou que têm entre si uma certa similitude.
Disse, na primeira conferência, que a memória depende da consciência e que só recordamos efetivamente os momentos em que tivemos vislumbres de consciência. E bem evidente que impressões diferentes, recebidas simultaneamente e, portanto, ligadas entre si, permanecerão por mais tempo na memória do que impressões desconexas. No clarão de consciência de si, ou mesmo à sua aproximação, todas as impressões do momento
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encontram-se ligadas e permanecem ligadas na memória. Ocorre o mesmo com as impressões que apresentam uma similitude interior. Se o homem for mais consciente no momento em que receber impressões, ele estabelecerá melhor ligação entre as impressões novas e as impressões antigas que se lhes assemelhem, e elas permanecerão associadas na memória.
Ao contrário, se o homem receber impressões num estado de identificação, sequer as notará e os vestígios delas desaparecerão, antes mesmo de terem sido examinadas ou associadas.
No estado de identificação, o homem não vê nem ouve. Fica completamente imerso nos seus agravos, nos seus desejos ou na sua imaginação. O homem não pode se separar das coisas, dos sentimentos ou das lembranças; fica apartado de todo o resto do mundo.
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QUARTA CONFERÊNCIA

Começaremos hoje por um exame mais detalhado dos centros. Eis o diagrama dos quatro centros:

Centro intelectual - Cabeça

Centro emocional - Tórax
Centros motor e instintivo -Parte inferior do tronco e costas

Este diagrama mostra o homem de pé, de perfil, olhando para a esquerda e indica a posição respectiva dos centros, de maneira muito esquemática.
Na realidade cada centro ocupa o corpo todo e penetra, por assim dizer, no organismo inteiro.
Ao mesmo tempo, cada centro possui o que. se chama seu “centro de gravidade”. O centro de gravidade do centro intelectual está no cérebro; o centro de gravidade do centro emocional está no plexo solar; os centros de gravidade do centro motor e do centro instintivo estão na medula espinhal. E necessário compreender que, no estado atual de nossos conhecimentos, não temos meio algum de verificar essa asserção,
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principalmente porque cada centro possui numerosas propriedades que permanecem ignoradas pela ciência moderna, mesmo no plano anatômico. Isso pode parecer estranho, mas o fato é que a anatomia do corpo humano está longe de ser uma ciência completa. De modo que, como os centros nos são inacessíveis, o estudo deles deve começar pela observação de suas funções, que se oferecem inteiramente a nossas pesquisas. Trata-se aí de uma maneira de proceder de todo usual. Nas diferentes ciências — física, química, astronomia, fisiologia —quando não podemos alcançar os fatos, objetos ou matérias que queremos estudar, devemos começar pelo estudo de seus resultados ou de seus vestígios. No caso presente ocupar-nos-emos das próprias funções dos centros, de modo que tudo que estabelecermos a propósito das funções poderá aplicar-se aos
centros.
Os centros têm muitos pontos comuns, mas, ao mesmo tempo, cada centro possui características particulares que nunca devemos perder de vista. Um dos princípios mais importantes a compreender é a grande diferença que existe entre as velocidades dos centros, isto é, entre as velocidades respectivas de suas funções.
O mais lento é o centro intelectual. A seguir, embora muito mais rápidos, vêm os centros instintivo e motor, que têm mais ou menos a mesma velocidade. O mais rápido de todos é o centro emocional e, no entanto, no estado de “sono desperto”, só muito raramente trabalha com uma velocidade próxima de sua velocidade real; em geral, trabalha com a velocidade dos centros instintivo e motor.
A observação pode ajudar-nos a constatar uma grande diferença na velocidade das funções, mas não nos pode dar números exatos. Na realidade, a diferença entre as funções de um mesmo organismo é muito grande, maior do que se pode imaginar. Como acabo de dizer, não podemos, com nossos meios ordinários, calcular a diferença de velocidade dos centros, mas se nos disserem qual é, poderemos encontrar muitos fatos que confirmarão, senão os números exatos, pelo menos a existência de uma enorme diferença.
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Antes de citar números, desejo falar-lhes das observações ordinárias que se podem fazer sem nenhum conhecimento especial.
Tentem, por exemplo, comparar a velocidade dos processos mentais com a das funções motoras. Tentem observar-se quando tiverem de fazer simultaneamente numerosos movimentos rápidos: dirigir um carro numa rua muito congestionada, galopar por um mau caminho ou fazer qualquer outro trabalho que exija um pronto julgamento e reflexos instantâneos. Verão, de imediato, que não podem observar todos os seus movimentos.
Terão de diminuir sua velocidade ou, então, deixar escapar a maior parte de suas observações, senão correrão o risco de um acidente e, provavelmente, isso acontecerá, se persistirem em observar-se a si mesmos. Poderíamos multiplicar tais constatações, em particular sobre o centro emocional, que é ainda mais rápido. Todos temos feito tais observações sobre a diferença de velocidade das funções, mas é muito raro que saibamos reconhecer o valor de nossas próprias observações e experiências. Somente quando conhecemos o princípio é que começamos a compreender nossas observações anteriores.
Não obstante, vocês devem saber que todos os números relativos a essas velocidades diferentes são conhecidos pelas escolas e demonstrados por seu ensinamento. Como verão mais adiante, a relação de velocidade dos centros expressa-se por um número surpreendente, que tem sentido cósmico, isto é, que entra em numerosos processos cósmicos, ou melhor, que divide um pelo outro numerosos processos cósmicos. Esse número é30 000. O que equivale a dizer que os centros motor e instintivo são 30 000 vezes mais rápidos que o centro intelectual. E que o centro emocional, quando trabalha com a velocidade que lhe é própria, é 30 000 vezes mais rápido que os centros motor e instintivo.
E difícil crer que haja tal diferença entre as velocidades das funções de um mesmo organismo. Na realidade, isso quer dizer que cada um dos diversos centros tem um tempo completamente diferente. Os centros motor e instintivo têm um tempo 30 000 vezes mais longo que o centro intelectual e o centro emocional tem
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um tempo 30 000 vezes mais longo que os centros motor e instintivo. Vêem claramente o que significa um “tempo mais longo”? Significa que, para cada trabalho, um centro dispõe de certo tempo a mais que outro centro. Por mais singular que isto pareça, o fato da grande diferença de velocidade dos centros explica grande número de fenômenos bem conhecidos, que a ciência ordinária não pode explicar e geralmente deixa passar em silêncio ou simplesmente recusa discutir. Quero falar da velocidade espantosa, aparentemente inexplicável, de certos processos fisiológicos. Por exemplo, um homem bebe um copo de bebida alcoólica e, no mesmo instante, em
menos de um segundo, experimenta todas as espécies de sensações novas: uma sensação de calor, de relaxamento, de alívio, um sentimento de paz, de contentamento, de bemestar ou, ao contrário, de angústia, de irritação, e assim por diante. O que ele sente pode ser diferente segundo os casos; mas o certo é que o corpo reage muito rapidamente ao estimulante, quase instantaneamente.
Não é necessário, aliás, tomar o exemplo da bebida alcoólica ou de qualquer outro estimulante; se um homem tem muita sede ou muita fome, um copo de água ou um pedaço de pão produzirão o mesmo efeito súbito. Podem-se constatar fenômenos semelhantes, que evidenciam a enorme velocidade de certos processos, particularmente quando se observam os sonhos. Citei exemplos deste gênero em Um Novo Modelo do Universo.
Existe a mesma diferença entre o centro instintivo e o centro intelectual, do mesmo modo que existe entre o centro motor e o centro intelectual. Mas estamos de tal modo habituados a esses fenômenos, que não notamos quão estranhos e incompreensíveis eles são.
Naturalmente, para um homem que jamais dirigiu sua atenção sobre si mesmo e nunca tentou estudar-se, nada há de estranho nisso, como, aliás, em qualquer outra coisa. Mas, na realidade, do ponto de vista da fisiologia comum, esses fenômenos parecem quase milagrosos.
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O fisiologista sabe quantos processos complicados se efetuam entre o momento em que se ingere um gole de bebida alcoólica ou um copo d’água e o momento em que se sentem os efeitos. Cada substância que entra no organismo pela boca deve ser analisada, submetida a provas diversas, antes de ser aceita ou rejeitada. E tudo isso se passa em menos de um segundo.
um milagre e, ao mesmo tempo, não é. Pois se conhecermos a diferença de velocidade dos centros e se nos lembrarmos de que o centro instintivo, a quem cabe esse trabalho, tem 30 000 vezes mais tempo que o centro intelectual, do qual nos servimos para medir nosso tempo ordinário, compreenderemos como tal coisa pode produzir-se. Isso significa que o centro instintivo dispõe, não de um segundo, mas de mais de oito horas de seu tempo próprio para fazer esse trabalho; e, em oito horas, esse trabalho pode certamente ser executado sem pressa inútil num laboratório comum. Assim, nossa idéia sobre a extraordinária rapidez desse processo é mera ilusão, devido ao fato de que consideramos nosso tempo ordinário ou tempo do centro intelectual, como o único existente.
Voltaremos mais adiante ao estudo da diferença de velocidade dos centros. Tentemos agora compreender outra característica dos centros, o que nos fornecerá mais tarde excelentes dados para a observação de si ‘e para o trabalho sobre si. Vamos supor que cada centro está dividido em duas partes, positiva e negativa. Esta divisão é particularmente clara para o centro intelectual e para o centro instintivo. Assim, todo o trabalho do centro intelectual se divide em duas partes: afirmação e negação; sim e não. A cada instante, em nosso pensamento, uma das duas prevalece sobre a outra ou, então, ambas têm força igual, de onde a indecisão. A parte negativa do centro intelectual é tão útil quanto a parte positiva e o menor enfraquecimento da força de uma com respeito à outra acarreta perturbações mentais.
No trabalho do centro instintivo, a divisão é também muito clara e as duas partes, positiva e negativa, são ambas necessárias para uma orientação justa na vida.
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As sensações positivas ou agradáveis, de paladar, olfato, tato, calor, frescor, ar puro, todas atestam condições salutares à existência; e as sensações negativas ou desagradáveis, de mau sabor, de mau cheiro, de contato desagradável, a impressão de calor sufocante ou de frio excessivo, todas atestam condições prejudiciais à existência. Em resumo, pode-se dizer que, na vida, não é possível nenhuma orientação verdadeira, na ausência de sensações, tanto agradáveis como desagradáveis. São elas o guia seguro de toda a vida animal na terra e a menor alteração que sofram acarretará desorientação e, em conseqüência , perigo de enfermidade ou de morte.
Pensem quão rapidamente se envenenaria um homem, se perdesse todo o sentido do paladar ou do olfato ou se, por algum artifício, superasse seu asco natural às sensações desagradáveis.
No centro motor, a divisão em duas partes — positiva e negativa — deve ser tomada num sentido lógico: o movimento em oposição ao repouso. Não tem utilidade para a observação pratica. No centro emocional, à primeira vista, a divisão é simples e evidente. Se tomarmos as emoções agradáveis, tais como alegria, simpatia, afeição, confiança em si, como atinentes à parte positiva, e as emoções desagradáveis, tais como aborrecimento, irritação, ciúme, inveja, medo, como atinentes à parte negativa, as coisas parecerão muito simples; na realidade, são muito mais complicadas.
Para começar, não há parte negativa natural no centro emocional. Em sua maioria, as emoções negativas são artificiais, não pertencem ao centro emocional propriamente dito e estão baseadas em emoções instintivas que lhes são completamente estranhas, mas que são desnaturadas pela imaginação e pela identificação. Esse é o único sentido real das teorias de James e de Lange, muito conhecidas em determinada época. Ambos insistiam no fato de que todas as emoções são, na realidade, sensações que acompanham as mudanças que se operam nos órgãos internos e nos tecidos, mudanças anteriores às sensações e que são suas causas verdadeiras. Queriam dizer que os acontecimentos exteriores e os processos internos não provocam a emoção. Os
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acontecimentos exteriores e os processos internos desencadeiam reflexos internos, os quais desencadeiam sensações que são interpretadas como emoções. Por outro lado, as emoções positivas tais como ‘‘amor", ‘‘esperança", ‘‘fé ", como são habitualmente compreendidas, isto é, como emoções permanentes, não são acessíveis ao homem em seu estado ordinário de consciência. Exigem estados de consciência mais elevados; exigem a unidade interior, a consciência de si, um “Eu” permanente e a vontade. As emoções positivas são emoções que não podem tornar-se negativas. Ora, todas as nossas emoções agradáveis, tais como alegria, simpatia, afeição, confiança em si, podem a cada instante degenerar em aborrecimento, irritação, inveja, temor, etc. O amor pode tornar-se ciúme ou medo de perder o que se ama, ou cólera e ódio; a esperança pode converter-se em devaneio e quimeras, e a fé, em superstição e aceitação apática de tolices reconfortantes.
Até uma pura emoção intelectual, como o desejo de conhecer, ou uma emoção estética, como, por exemplo, um sentimento de beleza ou harmonia, desde que caia na identificação, associa-se, de imediato, com emoções de ordem negativa, tais como o orgulho, a vaidade, o egoísmo, o amor-próprio, e assim por diante. Pode-se, portanto, dizer, sem risco de erro, que não podemos ter emoções positivas. Por outro lado, é igualmente verdadeiro que não temos emoções negativas que possam existir sem imaginação nem identificação. Não se pode negar, naturalmente, que, ao lado dos múltiplos sofrimentos físicos pertencentes ao centro instintivo, o homem tem muitos
sofrimentos morais que pertencem ao centro emocional. Há muitas tristezas, agravos, temores, apreensões, etc., que não se podem evitar e estão ligados tão intimamente à vida do homem quanto a doença, a dor e a morte. Entretanto, esses sofrimentos morais nada têm a ver com as emoções negativas, baseadas na imaginação e na identificação. As emoções negativas são um fenômeno terrível. Ocupam um lugar enorme em nossa vida. Pode-se dizer de muitas pessoas que a sua vida inteira é regulada, controlada e finalmente arruinada por emoções negativas. Ao mesmo tempo, as emoções
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negativas não desempenham nenhum papel útil em nossas vidas. Não servem para nos orientar, não nos trazem conhecimento algum, não nos guiam de nenhuma maneira sensata. Ao contrário, estragam todos os nossos prazeres, fazem de nossa vida um fardo e opõem obstáculos muito reais ao nosso desenvolvimento possível, porque nada é mais mecânico em nossa vida do que as emoções negativas. O homem, em seu estado ordinário, nunca pode dominar suas emoções negativas. Aqueles que crêem poder dominar suas emoções negativas e manifestá-las, quando melhor lhes parecer, simplesmente se iludem. As emoções negativas dependem da identificação. Cada vez que a identificação é destruída, desaparecem. O que há de mais estranho e fantástico no caso das emoções negativas é que as pessoas as adoram. Parece-me que, para um homem mecânico comum, a coisa mais difícil de admitir é que nem suas próprias emoções negativas nem as dos outros têm o menor valor e que não contêm nada de nobre, nada de belo, nada de forte. Na realidade, as emoções negativas só contêm fraqueza e, freqüentemente mesmo, são o início da histeria, da loucura ou do crime. Seu único lado bom é que, sendo perfeitamente inúteis e totalmente criadas pela imaginação e pela identificação, podem ser destruídas sem prejuízo algum. E aí está a única oportunidade que o homem tem de escapar delas.
Se as emoções negativas fossem úteis ou necessárias para o menor objetivo e se constituíssem uma função de uma parte do centro emocional, cuja existência fosse real, o homem não teria chance alguma de desenvolvimento, porque nenhum desenvolvimento é possível, enquanto o homem fica com suas emoções negativas.
Na linguagem das escolas, existe um preceito relativo à luta contra as emoções negativas:
O homem deve sacrificar seu sofrimento.
Dir-se-á: “Haverá algo mais fácil a sacrificar”? Mas, na realidade, as pessoas sacrificariam tudo, exceto suas emoções negativas. Não há prazer nem gozo que o homem não esteja pronto a sacrificar por razões fúteis, mas jamais sacrificará seu sofrimento. E, em certo sentido, isso se explica. Obnubilado por velha superstição, o homem espera sempre algo do sacrifício de seus prazeres, mas nada espera do sacrifício
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de seu sofrimento. Está cheio de idéias falsas sobre o sofrimento. Continua pensando que o sofrimento lhe é enviado por Deus ou por deuses, para seu castigo ou sua edificação, e sentirá até medo de saber que é possível desembaraçar-se tão simplesmente de seu sofrimento. O que torna essa idéia ainda mais difícil de compreender é a existência de numerosos sofrimentos, dos quais o homem não pode realmente libertar-se, sem contar todos os sofrimentos baseados na imaginação e aos quais não pode nem quer renunciar, tais como a idéia de injustiça e a crença na possibilidade de suprimi-la.
Além disso, muitas pessoas só têm emoções negativas. Todos os seus “eus” são negativos. Se se tirassem delas suas emoções negativas, simplesmente desabariam e se desfariam em fumaça.
Que seria de toda a nossa vida sem as emoções negativas? Que sucederia com o que chamamos “arte”, com o teatro, o drama, a maioria dos romances?
Infelizmente não há chance alguma de que as emoções negativas desapareçam por si mesmas. As emoções negativas só podem ser dominadas e só podem desaparecer com a ajuda das escolas, de sua ciência e de seus métodos. A luta contra as emoções negativas faz parte da disciplina das escolas, está estreitamente ligada a todo o trabalho das escolas.
Qual é, pois, a origem das emoções negativas, dado que são artificiais, anormais e inúteis?
Como não conhecemos a origem do homem, não estamos em condições de discutir essa questão; só podemos falar das emoções negativas e de sua origem com relação a nós mesmos e a nossas vidas. Por exemplo, observando as crianças, podemos ver como as emoções negativas lhes são ensinadas e como as aprendem sozinhas imitando os adultos e as crianças mais velhas.
Se, desde os primeiros dias de vida, uma criança pudesse ser rodeada de pessoas que não tivessem emoções negativas, provavelmente não teria nenhuma ou teria tão poucas que poderiam ser facilmente dominadas por meio de uma educação correta. Mas, na vida atual, é bem diferente e, graças a todos os exemplos que pode ver e ouvir, graças às leituras, ao cinema, etc., uma criança de dez anos já conhece toda a gama de emoções negativas e pode imaginá-las, reproduzi-las e identificar-se com elas tão bem quanto um adulto.
Nos adultos; as emoções negativas são mantidas pela literatura e pela arte que, sem cessar, as justificam e as glorificam, bem como pela justificação pessoal e pela indulgência que têm por si mesmos. Até quando estamos fartos dessas emoções negativas, não cremos que nos seja possível livrar-nos completamente delas. Na realidade, temos muito mais poder do que pensamos sobre as emoções negativas, sobretudo a partir do momento em que sabemos o quanto são perigosas e como é urgente lutar contra elas. Mas encontramos demasiadas desculpas para elas e nadamos no oceano do egoísmo ou da autocompaixão, segundo o caso, descobrindo faltas em toda parte, salvo em nós.
O que acaba de ser dito mostra que nos encontramos numa estranha situação quanto ao nosso centro emocional. Ele não tem parte positiva nem parte negativa. Na maioria dos casos, suas funções negativas são inventadas e há muitas pessoas que nem sequer uma vez em sua vida experimentaram uma emoção real, tão ocupada está sua existência com emoções imaginárias.
De modo que não podemos dizer que nosso centro emocional está dividido em duas partes, positiva e negativa. Podemos dizer apenas que temos emoções agradáveis e emoções desagradáveis e que todas as emoções que não são negativas no momento podem tornar-se negativas à menor provocação ou até sem provocação alguma.
Assim é o verdadeiro quadro de nossa vida emocional e, se nos olharmos sinceramente, deveremos dar-nos conta de que, enquanto cultivarmos e admirarmos em nós mesmos todas essas emoções envenenadas, não poderemos esperar ser capazes de desenvolver a unidade, a consciência ou a vontade. Se tal desenvolvimento fosse possível, todas essas emoções negativas se integrariam em nosso novo ser e tornar-se-iam permanentes em nós, O que significaria para nós a impossibilidade de algum dia nos desembaraçarmos delas. Felizmente para nós tal eventualidade está excluída.
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Em nosso estado atual, o único lado bom é que nada é permanente em nós; se a menor coisa se tornar permanente, será sinal de loucura. Somente os alienados podem ter um ego permanente.
Diga-se, de passagem, que esse fato reduz a nada certo termo errôneo que também se insinuou na linguagem psicológica atual sob a influência da “psicanálise”: refiro-me à palavra ‘‘complexo’’.
Não há nada que corresponda à idéia de “complexo”, em nossa estrutura psicológica. O que hoje se denomina “complexo” era chamado “idéia fixa” pelos psiquiatras do século XIX e as “idéias fixas” eram consideradas sinal de loucura, o que continua sendo perfeitamente correto.
Um homem normal não pode ter “idéias fixas”, “complexos” nem “fixações”. É útil lembrar-se disso, no caso de alguém tentar encontrar complexos em vocês. Como somos, já temos bastantes traços maus e nossas chances são muito pequenas, mesmo sem complexos.
Voltemos agora à questão do trabalho sobre si e perguntemo-nos quais são realmente nossas chances. Devemos descobrir em nós mesmos funções e manifestações que podemos mais ou menos dominar e devemos exercer esse poder, tratando de aumentá-lo o mais possível. Por exemplo, temos um certo controle sobre nossos movimentos e, em certas escolas, particular-mente no Oriente, o trabalho sobre si começa pela aquisição de um domínio, tão completo quanto possível, dos movimentos. Isso, porém, requer muito tempo; para tanto é necessário um treinamento especial, que supõe o estudo de exercícios muito complexos. Nas condições de vida moderna, temos mais controle sobre nossos pensamentos; existe, aliás, um método especial segundo o qual podemos trabalhar no desenvolvimento de nossa consciência, fazendo uso do instrumento que melhor obedece à nossa vontade, isto é, nossa mente ou nosso centro intelectual. Para compreender melhor o que vou dizer, tratem de recordar que não temos nenhum controle sobre nossa consciência. Quando disse que nos podemos tornar mais conscientes ou que um homem pode conhecer um instante de consciência, simplesmente
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porque lhe perguntam se está consciente ou não, empreguei as palavras “conscientes” ou “consciência” num sentido relativo. Há numerosos graus de consciência e cada um desses graus significa “consciência” com relação a um grau inferior. Mas, se não temos poder algum sobre a consciência, temos um certo controle sobre nosso modo de pensar na consciência e podemos construir nossos pensamentos de tal maneira que nos tragam a consciência. Quero dizer que, dando a nossos pensamentos a orientação que teriam num momento de consciência, podemos fazer vir a consciência. Tentem agora precisar o que notaram quando tentavam observar-se.
Vocês devem ter notado três coisas:
Primeiro, que vocês não se lembram de si mesmos, isto é, que não tomam conhecimento de si mesmos, no momento em que tentam observar-se.
Segundo, que a observação se torna difícil devido ao fluxo incessante dos pensamentos, das imagens, dos ecos de conversas, dos impulsos emocionais que atravessam seu espírito e que, com muita freqüência, distraem a sua atenção da observação.
Finalmente, terão notado que, no momento em que começam a se observar, algo em vocês desencadeia a imaginação e que a observação de si, se a tentarem realmente, é uma luta constante contra a imaginação.
Eis aqui o ponto essencial no trabalho sobre si. Se o homem se der conta de que, no trabalho, todas as dificuldades provêm do fato de que não pode lembrar-se de si mesmo, já sabe o que deverá fazer. Deve tratar de lembrar-se de si mesmo.
Para isso, deve lutar contra os pensamentos mecânicos e contra a imaginação. Se o fizer escrupulosamente, com perseverança, os resultados não tardarão a aparecer. Mas não deve crer que a coisa seja fácil, nem que possa dominar essa técnica de imediato. A lembrança de si é um ato cujo exercício é difícil. A lembrança de si não deve basear-se na espera dos resultados, pois
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poder-se-ia então identificar-se com seus próprios esforços. Deve basear-se na compreensão do fato de que não nos lembramos de nós mesmos, mas que, ao mesmo tempo, podemos nos lembrar de nós mesmos, se fizermos esforços suficientes e de maneira adequada.
Não podemos tornar-nos conscientes à vontade, no momento em que o desejamos, porque não somos senhores de nossos estados de consciência. Mas podemos lembrar-nos de nós mesmos à vontade, por um curto momento, porque, até certo ponto, comandamos nossos pensamentos. E, se começarmos a nos lembrar de nós mesmos, dando a nossos pensamentos uma forma especial, isto é, vendo que não nos lembramos de nós mesmos, que ninguém se lembra de si mesmo e compreendendo tudo o que isto significa, eis aí o que nos levará até à consciência.
Deverão recordar que encontramos o ponto fraco nos muros de nossa mecanicidade. Esse ponto fraco é o fato de saber que não nos lembramos de nós mesmos e de compreender que podemos tratar de lembrar-nos de nós mesmos. Até o presente, nosso único propósito foi o estudo de si. Agora, com a compreensão da necessidade de uma mudança real em nós mesmos, o trabalho começa. Mais adiante aprenderão que a prática da lembrança de si, ligada à observação de si e à luta contra a imaginação, tem, não só uma significação psicológica, mas modifica a parte mais sutil do nosso metabolismo e produz, em nosso corpo, efeitos químicos definidos — talvez fosse melhor dizer efeitos alquímicos. De maneira que, partindo da psicologia, chegamos hoje à alquimia, isto é, à idéia de transformação de elementos grosseiros em elementos sutis.
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QUINTA CONFERÊNCIA

Para aprofundar nosso estudo do desenvolvimento possível do homem, resta-nos estabelecer um ponto muito importante. Dois aspectos devem ser desenvolvidos no homem; dito de outro modo, seu desenvolvimento deve efetuar-se simultaneamente em duas linhas. Esses dois aspectos ou essas duas linhas de desenvolvimento do homem são o saber e o ser.
Já falei sobre a necessidade do desenvolvimento do saber e, sobretudo, do saber relativo ao conhecimento de si, dado que um dos traços mais característicos do estado atual do homem é que ele não se conhece. Em geral, compreende-se a idéia de diferentes níveis de saber e a idéia da relatividade do saber; compreende-se a necessidade de um saber completamente novo.
O que não se compreende, na maioria dos casos, é a idéia de que o ser é totalmente distinto do saber, como também não se compreende a idéia da relatividade do ser, da possibilidade de diferentes níveis de ser, nem a necessidade de um desenvolvimento do ser, totalmente independente do desenvolvimento do saber. Um filósofo russo, Vladimir Solovieff, emprega o termo “ser" em seus escritos. Fala do ser de uma pedra, do ser de uma planta, do ser de um animal, do ser de um homem e do ser divino.
É melhor do que o conceito ordinário, porque, na compreensão comum, o ser de um homem é considerado como não diferindo de modo algum do ser de uma pedra, de uma planta
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ou de um animal. Do ponto de vista comum, uma pedra, uma planta ou um animal são ou existem, exatamente como um homem é ou existe. Na realidade, existem de maneira totalmente diferente. Mas a divisão que Solovieff faz não é suficiente. Não há nada que corresponda ao ser de um homem, porque há demasiadas diferenças entre os homens. Já disse que, do ponto de vista deste ensinamento, o conceito “homem” está dividido em sete conceitos: o homem n 1, o homem n.0 2, o homem n.0 3 o homem n.0 4, o homem n.0 5, o homem n.0 6 e o homem n 7 O que equivale a sete graus ou categorias de seres: o ser n.0 1, ser n.0 2, o ser n.0 3, e assim por diante. Conhecemos, ademais, divisões mais sutis. Sabemos que os homens n 1 podem ser muito diferentes uns dos outros e o mesmo podese dizer dos homens n.0 2 e n.0 3. Podem viver inteiramente sob as influências A. Podem sofrer a ação tanto das influências B como das influências A. Podem estar mais submetidos às influências B do que às influências A. Podem ter um centro magnético. Podem ter entrado em contato com a influência de uma escola ou influência C. Podem estar a caminho de se tornarem homens n.0 4. Todas essas categorias representam diferentes níveis de ser.
A idéia do ser estava no próprio âmago da concepção religiosa do homem e todas as demais classificações do homem eram consideradas de pouca importância em comparação com essa. Os homens eram divididos, de um lado, em descrentes, infiéis ou heréticos e, de outro, em verdadeiros crentes, justos, santos, profetas, e assim por diante. Todas essas definições visavam não a diferenças de pontos de vista e de convicções, isto é, não ao saber, mas ao ser.
No pensamento moderno, ignora-se tudo sobre a idéia do ser e dos diferentes níveis de ser. Ao contrário, imagina-se que, quanto mais divergências e contradições houver no ser de um homem, mais brilhante e interessante ele poderá ser. Admite-se, em geral, embora tácita — e às vezes até abertamente — que um homem pode viver na mentira, que pode ser egoísta, covarde, extravagante, perverso, sem que isso o impeça de ser um grande sábio, um grande filósofo ou um grande artista. Evidentemente, isso é impossível. Com efeito, embora essa incompatibilidade dos diferentes traços de um único e mesmo ser seja geralmente considerada originalidade, é apenas uma fraqueza. Não é possível ser
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um grande pensador ou um grande artista, com um espírito perverso ou incoerente, como também não se pode ser um boxeador profissional ou um atleta de circo sendo tuberculoso. A difusão dessa idéia de que a incoerência e a amoralidade seriam sinais de originalidade é responsável por numerosas charlatanices científicas, artísticas ou religiosas de nosso tempo e, possivelmente, de todos os tempos. Ë necessário compreender claramente o que significa o ser e por que deve crescer e desenvolver-se paralelamente ao saber, embora permaneça independente. Se o saber prevalece sobre o ser ou o ser sobre o saber, disso sempre resultará um desenvolvimento unilateral e esse desenvolvimento não poderá ir muito longe. Deve fatalmente conduzir a uma grave contradição interior e deter-se aí.
Um dia, talvez, falaremos das diferentes espécies de desenvolvimento unilateral e de seus resultados. Na vida corrente, o único caso que encontramos é aquele em que o saber prevalece sobre o ser. O resultado toma a forma de uma dogmatização de certas idéias; a partir daí, qualquer desenvolvimento ulterior do saber torna-se impossível, devido à perda da compreensão.
Agora falarei da compreensão.
Mas o que é a compreensão?
Tratem de fazer-se essa pergunta e verão que não podem respondê-la. Até agora, sempre confundiram compreender com saber ou possuir informações. Mas, saber e compreender são duas coisas completamente diferentes e vocês devem aprender a distingui-las. Para compreender uma coisa, vocês devem ver a sua relação com qualquer objeto mais vasto ou com um conjunto maior, bem como as conseqüências dessa relação. A compreensão é sempre a compreensão de um problema restrito em sua relação com um problema mais vasto.
Suponham, por exemplo, que eu lhes mostre um antigo rublo russo de prata. Essa era uma moeda antiga do tamanho de uma moeda atual inglesa de meia coroa, valendo entretanto cerca de dois shillings. Podem olhá-la, estudá-la, ver em que ano
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foi cunhada, descobrir tudo o que se refere ao tzar cuja efígie aparece numa das faces, podem pesá-la, podem até fazer-lhe a análise química e calcular o teor exato de prata que contém. Podem aprender o que quer dizer a palavra “rublo” e como seu uso se generalizou; podem, sem dúvida, aprender tudo isso e muitas outras coisas, mas não compreenderão jamais este rublo, nem sua significação, enquanto ignorarem que, antes da primeira guerra mundial, seu poder aquisitivo correspondia a mais ou menos uma libra inglesa de hoje e que o poder aquisitivo do rublo, dinheiro da Rússia bolchevista, antes do seu desaparecimento, era apenas de um shilling e meio. Se fizerem essa descoberta, talvez compreendam algo deste rublo, e talvez de outras coisas mais, pois a compreensão de uma coisa leva, em seguida, à compreensão de muitas outras.
Crê-se, com freqüência, que compreender quer dizer encontrar um nome, uma expressão, um título ou um rótulo para um fenômeno novo ou inesperado. O fato de achar ou de inventar palavras para coisas incompreensíveis nada tem a ver com compreensão. Ao contrário, se pudéssemos nos desembaraçar da metade de nossas palavras, talvez tivéssemos mais chances de adquirir certa compreensão. Se nos perguntarmos o que significa compreender ou não compreender um homem, será necessário, primeiramente, considerar o caso em que nos encontramos na impossibilidade de falar-lhe em sua própria língua. Ë óbvio que dois homens que não falam a mesma língua não se compreenderão um ao outro. Devem ter uma linguagem comum ou entender-se com relação a certos sinais ou símbolos pelos quais designarão as coisas.
Suponham, agora, que no decurso de uma conversação, não estejam de acordo com seu interlocutor quanto ao sentido de certas palavras, sinais ou símbolos; cessarão novamente de se compreender.
De onde decorre o seguinte princípio: não se pode compreender sem estar de acordo. Na conversação corrente, dizemos freqüentemente: compreendo-o, mas não estou de acordo com ele. Sob o ponto de vista do ensinamento que estudamos, isso é impossível. Se compreendem um homem, estão de acordo com ele; se não estão de acordo com ele, não o compreendem.
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Ë difícil aceitar essa idéia; isso significa que é difícil compreendê-la. Como acabo de dizer, há dois lados do homem que devem ser desenvolvidos durante o curso normal de sua evolução: o saber e o ser. Mas nem o saber nem o ser podem imobilizar-se ou permanecer no mesmo estado. Se um deles não cresce e não se fortalece, diminui e se enfraquece.
A compreensão é, de certo modo, a média aritmética entre o saber e o ser. E isso mostra a necessidade de um crescimento simultâneo do saber e do ser. Se um dos dois diminui enquanto
o outro aumenta, isso não altera a média aritmética.
Essa idéia permite ainda explicar por que “compreender” significa “estar de acordo”. Para que se compreendam, dois homens devem não só possuir um saber igual, mas é-lhes, também, necessário um ser igual. Só então é que será possível uma compreensão mútua. Outra idéia falsa, particularmente difundida em nossa época, é a de que a compreensão pode ser diferente, a de que qualquer um de nós pode compreender, isto é, tem o direito de compreender uma única e mesma coisa de maneira diferente. Do ponto de vista deste ensinamento, nada é mais falso. Não pode haver diferentes compreensões. Só pode haver uma única compreensão; o resto é incompreensão ou compreensão incompleta.
Entretanto, as pessoas pensam comumente que compreendem as coisas de maneira diferente. Podemos ver exemplos disso todos os dias. Como explicar essa aparente contradição?
Na realidade, não há aí contradição alguma. Compreender uma coisa signgfica compreendê-la enquanto parte, em sua relação com o todo. Mas a idéia de todo pode ser muito diferente para as pessoas, segundo seu saber e seu ser. Eis por que também, nesse ponto, o ensinamento é necessário. Aprende-se a compreender, compreendendo este ensinamento e todas as coisas que com ele se relacionam.
Mas, para falar no plano ordinário, pondo de lado toda idéia de escola ou de ensinamento, temos que admitir que há tantas maneiras de compreender quantos são os homens. Cada um compreende cada coisa à sua maneira, segundo suas rotinas
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ou hábitos mecânicos, mas trata-se aí apenas de uma compreensão completamente subjetiva, totalmente relativa. O caminho que conduz à compreensão objetiva passa pelo ensinamento das escolas e pela mudança de ser.
A fim de explicar este último ponto, devo voltar à divisão do homem em sete categorias. Devem compreender que há uma grande diferença entre os homens n.” 1, 2 e 3, por um lado, e os homens das categorias superiores, por outro. Na realidade, essa diferença é muito maior do que podemos imaginar — tão grande que, desse ponto de vista, pode-se considerar a vida dividida em dois círculos concêntricos: o círculo interior e o círculo exterior da humanidade.
Ao círculo interior pertencem os homens n.o 5, 6 e 7; ao círculo exterior, os homens n. 1, 2 e 3. Os homens n.0 4 estão no umbral do círculo interior, isto é, entre os dois círculos. Por sua vez, o círculo interior divide-se em três círculos concêntricos: o mais interior é o dos homens n.” 7; o intermediário, o dos homens n.0 6; o mais exterior, o dos homens n 5. Essa divisão não nos diz respeito no momento. Para nós, os três círculos formam apenas um.
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O círculo exterior, no qual vivemos, tem vários nomes que designam seus diferentes aspectos. Ë chamado círculo mecânico, porque nele tudo acontece, tudo nele é mecânico e porque os homens que nele vivem são máquinas. Ë também chamado círculo da confusão das línguas, porque aqueles que vivem nesse círculo falam todos línguas diferentes e nunca se compreendem. Cada um compreende a coisa à sua maneira. Isso nos leva a uma definição muito interessante da compreensão: a compreensão é uma coisa que pertence ao círculo interior da humanidade e não nos pertence de modo algum. Se certos homens do círculo exterior se dão conta de que não se compreendem uns aos outros e se sentem a necessidade de se compreender, devem tentar penetrar no círculo interior, pois só ali há possibilidade de compreensão mútua.
As diferentes espécies de escolas servem de portas pelas quais os homens podem passar para o círculo interior. Penetrar, porém, num círculo superior àquele no qual nasceu, exige do homem um trabalho longo e difícil. O primeiro passo nesse trabalho é o estudo de uma nova linguagem.
“E que linguagem é essa que estudamos?”, perguntarão. Agora, posso responder-lhes.
Ë a linguagem do círculo interior, a linguagem por meio da qual os homens podem compreender-se uns aos outros.
Devemos dar-nos conta de que, estando fora do círculo interior, só podemos apreender os rudimentos dessa linguagem. Mas já esses rudimentos nos ajudarão a compreender-nos uns aos outros melhor do que poderíamos fazê-lo na falta deles. Cada um dos três círculos interiores tem sua linguagem própria. Estudamos atualmente a linguagem do mais exterior desses círculos interiores. Aqueles que pertencem a esse círculo estudam a linguagem do círculo intermediário, e aqueles que pertencem ao círculo intermediário estudam a linguagem do círculo mais interior.
Se me perguntarem como se pode provar tudo isso, responder-lhes-ei que isso só poderá ser provado pelo prosseguimento do estudo de si mesmo e da observação de si. Se descobrirmos
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que o estudo deste ensinamento nos permite compreender-nos e compreender os outros ou ainda certos livros ou certas idéias, melhor do que podíamos fazê-lo antes e, em particular, se descobrirmos certos fatos precisos que testemunhem o desenvolvimento de nossa nova compreensão, isto será, senão uma prova, pelo menos um sinal de possibilidade de prova.
Não devemos esquecer que, do mesmo modo que nossa consciência, nossa compreensão não está sempre no mesmo nível. Eleva-se ou baixa continuamente. Isso quer dizer que, em dado momento, compreendemos melhor e que, em outro, compreendemos menos bem. Se notarmos em nós mesmos essas diferenças de compreensão, estaremos em condição de compreender que há, realmente, uma possibilidade primeiro de se manter nesses níveis superiores de compreensão e, depois, de ultrapassá-los. Um estudo teórico, porém, não basta. Devem trabalhar sobre seu ser, trabalhar para mudar seu ser.
Se puderem definir sua meta como um desejo de compreender os outros, deverão lembrar-se de um princípio fundamental das escolas: só poderão compreender os outros na medida em que se compreenderem a si mesmos, e somente no nível de seu próprio ser. Isso significa que poderão julgar o saber dos outros, mas não poderão julgar o seu ser. Só poderão ver neles aquilo que já viram em si mesmos. Mas sempre cometemos o erro de crer que podemos julgar o ser dos outros. Na realidade, se desejarmos entrar em contato com homens mais desenvolvidos que nós e compreendê-los, deveremos trabalhar para mudar nosso ser.
Devemos voltar agora ao estudo dos centros, assim como ao estudo da atenção e da lembrança de si, pois são os únicos caminhos que levam à compreensão. Afora a divisão em duas partes, positiva e negativa, — que, como vimos, não é a mesma nos diferentes centros — cada um dos quatro centros é dividido em três partes.
Correspondem essas três partes à própria divisão dos centros entre si. A primeira parte é “mecânica” e inclui os princípios instintivo e motor, com ou sem predominância de um deles; a segunda é “emocional” e a terceira “intelectual”.
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· O diagrama seguinte indica a posição dessas partes no centro intelectual:
O centro intelectual está dividido em duas partes, positiva e negativa, e cada uma delas se divide em três partes. Assim, Cada uma dessas seis partes subdivide-se, por sua vez, em três: mecânica, emocional e intelectual. Só falaremos, porém, dessas subdivisões mais tarde, com exceção de uma delas, a parte mecânica do centro intelectual, de que vamos falar agora.
A divisão de um centro em três partes é muito simples. Sua parte mecânica trabalha quase automaticamente; não exige atenção alguma, mas, por isso mesmo, não pode adaptar-se às mudanças de circunstâncias, não pode “pensar”, contínua a trabalhar como começou, mesmo quando as circunstâncias tenham mudado completamente. No centro intelectual, a parte mecânica compreende todo o trabalho de registro das impressões, das lembranças e das associações. Ë tudo o que deveria fazer normalmente, isto é, se as Outras partes fizessem seu próprio trabalho. Nunca deveria ela responder às perguntas que se dirigem ao centro por inteiro, nem tentar resolver os problemas dele e nunca deveria decidir nada. Infelizmente, o fato é que ela está sempre pronta a decidir e responde sempre a toda espécie de perguntas, de maneira muito estreita e muito limitada, com frases feitas, expressões de gíria e chavões políticos. Tudo isso, como muitos outros elementos de nossas reações habituais, constitui o trabalho da parte mecânica do centro intelectual.
Essa parte tem o seu próprio nome. Chama-se “aparelho formatório ” ou também “centro formatório ”. Muitas pessoas,
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sobretudo entre os homens n.0 1, ou seja, a grande maioria, passam toda a sua vida somente com seu aparelho formatório , sem jamais recorrer às outras partes de seu centro intelectual. Para todas as necessidades imediatas da vida, para receber as influências A e responder a elas e para deformar ou rejeitar as influências C, o aparelho formatório é mais do que suficiente.
Ë sempre possível reconhecer o pensamento do “centro formatório”. Por exemplo, o centro formatório parece poder contar apenas até 2 - .. De fato, ele divide todas as coisas em dois: “bolchevismo e fascismo”, “operários e burgueses”, “proletários e capitalistas”, e assim por diante. Devemos a maioria de nossos “clichês” modernos ao pensamento do centro formatório — e não somente a maioria de nossos “clichês”, mas todas as teorias populares modernas. Talvez seja possível dizer que, em todas as épocas, todas as teorias populares provêm do aparelho formatório. A parte emocional do centro intelectual é constituída principalmente pelas emoções
intelectuais, ou seja, o desejo de saber, de compreender, a satisfação de saber, o descontentamento por não saber, o prazer da descoberta, e assim por diante, embora todas essas emoções também possam manifestar-se em níveis muito diferentes. O trabalho da parte emocional exige atenção plena, mas nesta parte do centro, a atenção não exige es/orço algum. ~ atraída e retida pelo próprio assunto, freqüentemente sob o efeito de uma identificação que se designa habitualmente pelo nome de “interesse”, “entusiasmo”, “paixão" ou “devoção”.
A parte intelectual do centro intelectual comporta a faculdade de criar, construir, inventar, descobrir. Não pode trabalhar sem atenção, mas a atenção, nessa parte do centro, deve ser controlada e mantida pela vontade e pelo esforço. Este será nosso critério principal no estudo das diferentes partes dos centros. Se as considerarmos do ponto de vista da atenção, saberemos imediatamente em que parte dos centros nos encontramos. Sem atenção ou com uma atenção errante, estamos na parte mecânica; cem uma atenção atraída e retida pelo assunto da observação ou da reflexão, estamos na parte emocional;
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com uma atenção controlada e mantida sobre um assunto por meio da vontade, estamos na parte intelectual. Ao mesmo tempo, esse método mostra como fazer trabalhar as partes intelectuais dos centros. Observando a atenção e tentando controlá-la, obrigamo-nos a trabalhar nas partes intelectuais dos centros, pois o mesmo princípio se aplica igualmente a todos os centros, embora talvez não nos seja fácil distinguir as partes intelectuais nos outros centros — e especialmente no centro instintivo, cuja parte intelectual não exige, para seu trabalho, nenhuma atenção que possamos perceber ou controlar. Tomemos o centro emocional. Deixarei de lado, por enquanto, as emoções negativas. Só nos ocuparemos da divisão do centro em três partes: mecânica, emocional e intelectual. A parte mecânica compreende o humorismo barato, os gracejos estereotipados, o sentido de comicidade mais grosseiro, o gosto da excitação, o amor aos espetáculos “sensacionais”, aos desfiles, ao sentimentalismo, o prazer de encontrar-se numa multidão, de fazer parte de uma multidão, a atração pelas emoções coletivas de todas as espécies,
a tendência a afundar por completo nas emoções mais baixas, meio animais: crueldade, egoísmo, covardia, inveja, ciúme, etc. A parte emocional pode ser muito diferente segundo as pessoas. Pode comportar o senso do humor ou o senso do cômico, bem como a emoção religiosa, a emoção estética, a emoção moral, e, nesse caso, pode levar ao despertar da consciência moral. Mas, com a
identificação, pode converter-se em algo muito diferente; pode ser muito irônica, zombeteira, sarcástica, pode ser má, obstinada, cruel e ciumenta, embora de maneira menos primitiva que a parte mecânica.
A parte intelectual do centro emocional (com a ajuda das partes intelectuais dos centros motor e instintivo), detém o poder de criação artística. No caso das partes intelectuais dos centros motor e instintivo, necessárias à manifestação da faculdade criadora, não estarem bastante educadas ou não lhe corresponderem em seu desenvolvimento, esta faculdade pode manifestar-se nos sonhos. Isso explica a beleza, às vezes maravilhosa, dos
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sonhos de certas pessoas que, por outro lado, não são nada artistas. A parte intelectual do centro emocional é também a sede principal do centro magnético. Quero dizer que, se o centro magnético só existir no centro intelectual ou na parte emocional do centro emocional, não será bastante forte para que sua ação seja efetiva e será sempre suscetível de cometer erros ou de fracassar. Mas a parte intelectual do centro emocional, quando está plenamente desenvolvida e trabalha com toda a sua potência, é um caminho para os centros superiores.
No centro motor, a parte mecânica é automática. Todos os movimentos automáticos que, na linguagem corrente são chamados “instintivos”, lhe pertencem, assim como a imitação e a capacidade de imitação, que tão grande papel desempenha na vida. A parte emocional do centro motor corresponde, sobretudo, ao prazer do movimento. A paixão pelos jogos e pelos esportes normalmente deveria depender desta parte do centro motor, mas, quando a identificação ou outras emoções se mesclam com ela, é raro que ocorra assim e, na maioria dos casos, a paixão pelos esportes encontra-se na parte motora do centro intelectual ou do centro emocional.
A parte intelectual do centro motor é um instrumento muito importante e muito interessante. Quem tenha tido ocasião de fazer bem um trabalho físico, não importa qual, sabe que cada espécie de trabalho exige muita invenção. Devemos inventar nossos pequenos métodos próprios para tudo o que fazemos. Tais inventos são o trabalho da parte intelectual do centro motor, como o são muitas outras invenções do homem. O poder que os atores possuem de imitar “à vontade” a voz, as entonações e os gestos dos outros, provém também da parte intelectual do centro motor; mas, quando esse poder de imitação atinge um grau superior, exige ao mesmo tempo o trabalho da parte intelectual do centro emocional.
O trabalho do centro instintivo permanece, para nós, muito obscuro. Realmente, só conhecemos — quero dizer: só sentimos e só podemos observar — sua parte sensorial e emocional.
Sua parte mecânica compreende as sensações habituais que, com freqüência, não notamos em absoluto, mas que servem de
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base às outras sensações; compreende, também, os movimentos instintivos, no sentido correto da expressão, isto é, todos os movimentos internos, tais como os da circulação do sangue, da digestão, e os reflexos internos e externos.
A. parte intelectual ocupa um lugar muito grande e muito importante. No estado de consciência de si ou quando dele se está próximo, pode-se entrar em contato com a parte intelectual do centro instintivo e colher, assim, muitos dados sobre o funcionamento da máquina e sobre suas possibilidades. A parte intelectual do centro instintivo aparece como um cérebro por trás de todo o trabalho do organismo, um cérebro que nada tem em comum com o do centro intelectual.
O estudo das partes dos centros e de suas funções específicas exige um certo grau de lembrança de si. Sem se lembrar de si mesmo, não se pode observar durante tempo bastante longo ou com bastante clareza para sentir e compreender a diferença entre as funções provenientes das diversas partes dos diferentes centros.
O estudo da atenção, melhor que qualquer outra coisa, revela as partes dos centros, mas o estudo da atenção exige, por seu turno,, um certo grau de lembrança de si.
Cedo, compreenderão que todo o seu trabalho sobre si mesmos depende da lembrança de si e que, sem ela, ele não pode fazer nenhum progresso. E a lembrança de si é um despertar parcial ou o começo de um despertar. Naturalmente — e isso deve ficar muito claro — nenhum trabalho pode ser feito no sono
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