quarta-feira, 30 de junho de 2010

G. I. Gurdjieff - Londres, 1922

O homem é um ser plural. Quando falamos de nós mesmos, ordinariamente, falamos de 'eu'. Nós dizemos: “'eu' fiz isso”, “'eu' penso isso”, “'eu' quero fazer isso”, mas isso é um erro.
Não há tal 'eu', ou melhor, há centenas, milhares de pequenos 'eu's em cada um de nós. Estamos divididos em nós mesmos, mas não podemos reconhecer a pluralidade do nosso ser, exceto através de observação e estudo. Em um momento é um 'eu' que atua, no momento seguinte é outro 'eu'. É porque os 'eu's em nós mesmos são contraditórios que não funcionamos de maneira harmoniosa.
Vivemos normalmente com apenas uma parte muito diminuta de nossas funções e de nossa força porque não reconhecemos que somos máquinas e não conhecemos a natureza e o funcionamento de nosso mecanismo. Nós somos máquinas.
Somos inteiramente governados por circunstâncias externas. Todas as nossas ações seguem a linha da menor resistência à pressão das circunstâncias externas.
Experimente por si mesmo: você pode governar suas emoções? Não. Você pode tentar suprimi-las ou trocar uma emoção por outra emoção. Mas você não pode controlá-las. Elas controlam você. Você pode decidir fazer alguma coisa, seu 'eu' intelectual pode tomar tal decisão. Mas quando chegar a hora de executá-la, você pode se encontrar fazendo exatamente o oposto.
Se as circunstâncias são favoráveis à sua decisão você poderá segui-la, mas se forem desfavoráveis, você fará tudo o que elas ditarem. Você não controla suas ações. Você é uma máquina e as circunstâncias externas governam as suas ações, independentemente de seus desejos.
Eu não digo que ninguém pode controlar suas ações. Eu digo que você não pode, porque você está dividido. Há duas partes em você, uma forte e uma fraca. Se a sua força cresce, sua fraqueza também irá crescer, e se tornará uma força negativa, a menos que você aprenda a pará-la.
Se aprendermos a controlar nossas ações, isso será diferente. Quando um certo nível de ser é alcançado, podemos realmente controlar cada parte de nós mesmos, mas, como somos agora, não podemos nem mesmo fazer o que decidimos fazer.
Pergunta: Mas podemos mudar as condições.
Gurdjieff: As condições nunca mudam, são sempre as mesmas. Não há nenhuma mudança, apenas modificação das circunstâncias.
Pergunta: Se um homem se tornar melhor, não é uma mudança?
Gurdjieff: Um homem não significa nada para a humanidade. Um homem se torna melhor, outro se torna pior, é sempre a mesma coisa.
Pergunta: Mas não é uma melhoria para um mentiroso se tornar verdadeiro?
Gurdjieff: Não, é a mesma coisa. Primeiro ele diz mentiras mecanicamente porque ele não pode dizer a verdade, então ele dirá a verdade mecanicamente porque agora é mais fácil para ele. A verdade e a mentira são importantes apenas em relação a nós mesmos se pudermos controlá-las. Tais como somos, não podemos ser morais, porque somos mecânicos. A moralidade é relativa, subjetiva, contraditória e mecânica. É o mesmo conosco: o homem físico, o homem emocional, o homem intelectual, cada um tem um conjunto diferente de moral condizente com sua natureza. A máquina de cada homem está dividida em três partes básicas, três centros.
Olhe para si mesmo em qualquer momento e pergunte: "Que tipo de "eu" é esse que está operando no momento? Ele pertence ao meu centro intelectual, ao meu centro emocional ou ao meu centro motor?" Você provavelmente vai descobrir que é muito diferente do que você imagina, mas vai ser um desses.
Pergunta: Não há um código absoluto de moralidade que deveria ser igualmente obrigatório a todos os homens?
Gurdjieff: Sim. Quando pudermos usar todas as forças que controlam os nossos centros, então poderemos ser morais. Mas até então, enquanto usarmos apenas uma parte de nossas funções, não poderemos ser morais. Nós agimos mecanicamente em tudo o que fazemos, e máquinas não podem ser morais.
Pergunta: Parece ser uma posição desesperadora.
Gurdjieff: Com certeza. É desesperadora.
Pergunta: Então como podemos mudar a nós mesmos e usar todas as nossas forças?
Gurdjieff: Isso é outra questão. A principal causa de nossa fraqueza é a nossa incapacidade de aplicar a nossa vontade a todos os nossos três centros simultaneamente.
Pergunta: Será que podemos aplicar a nossa vontade a algum deles?
Gurdjieff: Certamente, às vezes fazemos isso. Às vezes, podemos até ter a capacidade de controlar um deles por um momento, com resultados muito extraordinários.

(Ele relata a história de um prisioneiro que jogou uma bola de papel com uma mensagem para sua esposa através de uma janela alta e de difícil acesso.)

Este era o seu único meio de se tornar livre. Se ele falhasse na primeira vez ele jamais teria outra chance. Ele conseguiu por um momento ter absoluto controle sobre o seu centro físico de modo que ele foi capaz de realizar o que de outra forma nunca poderia ter feito.
Pergunta: Você conhece alguém que tenha chegado a este plano superior de ser?
Gurdjieff: Não significa nada se eu disser sim ou não. Se eu disser que sim, você não poderá confirmar e se eu disser que não, você se julgará o mais sábio. Você não tem que acreditar em mim. Peço-lhe para não acreditar em nada que você não possa verificar por si mesmo.
Pergunta: Se somos totalmente mecânicos, como é que vamos começar a ter controle sobre nós mesmos? Pode uma máquina controlar a si mesma?
Gurdjieff: Muito bem, claro que não. Não podemos mudar a nós mesmos. Nós só podemos modificar a nós mesmos um pouco. Mas podemos ser mudados com ajuda vinda de fora.
A teoria do esoterismo é que a humanidade consiste de dois círculos: um círculo grande, exterior, abrangendo todos os seres humanos, e um círculo pequeno de pessoas instruídas e com compreensão nesse centro. Instrução Real, que unicamente pode nos mudar, só pode vir desse centro e o objetivo deste ensinamento é nos ajudar a nos preparar para receber tais instruções. Por nós mesmos não podemos nos mudar, isso só pode vir de fora.
Toda religião aponta para a existência de um centro comum de conhecimento. Em todos os livros sagrados o conhecimentos está lá, mas são as pessoas que não querem saber disso.
Pergunta: Mas já não temos um ótimo suprimento de conhecimento?
Gurdjieff: Sim, muitos tipos de conhecimento. Nosso presente conhecimento está baseado em percepções sensoriais, como a das crianças. Se desejarmos adquirir o tipo certo de conhecimento, deveremos mudar a nós mesmos. Com o desenvolvimento do nosso ser, podemos encontrar um estado superior de consciência. Mudança de conhecimento vem da mudança de ser. O conhecimento em si não é nada. Devemos, primeiramente, ter autoconhecimento, e com a ajuda do autoconhecimento, iremos aprender como mudar a nós mesmos - isto se quisermos mudar a nós mesmos.
Pergunta: E essa mudança ainda deve vir de fora?
Gurdjieff: Sim. Quando estivermos prontos para um novo conhecimento ele virá a nós.
Pergunta: Podemos alterar nossas emoções pelo meio do julgamento?
Gurdjieff: Um centro de nossa máquina não pode mudar um outro centro. Por exemplo: em Londres, fico irritado, o tempo e o clima me desanimam e me deixam mal humorado, enquanto que na Índia, fico bem humorado. Portanto, meu julgamento me diz para ir para a Índia e assim expulsarei a emoção da irritabilidade. Mas, então, em Londres, descubro que eu posso trabalhar; já nos trópicos, não tão bem. E assim, lá estaria irritado por qualquer outra razão. Você vê, as emoções existem independentemente da decisão e você não pode alterar uma através da outra.
Pergunta: O que é um estado superior de ser?
Gurdjieff: Existem vários estados de consciência:
1) o sono, no qual nossa máquina ainda funciona, mas numa pressão muito baixa.
2) o estado de vigília, como estamos neste momento. Esses dois são tudo o que o homem comum conhece.
3) o que é chamado de autoconsciência. É o momento em que um homem está consciente tanto de si mesmo quanto de sua máquina. Temos esse estado em flashes, mas apenas em flashes. Há momentos em que você se torna consciente não só do que você está fazendo, mas também de você mesmo fazendo aquilo. Você vê tanto o 'eu' quanto o "aqui" de "eu estou aqui", tanto a raiva quanto o "eu" que está com raiva. Chame isso de lembrança de si, se quiser.
Agora, quando você está completamente e sempre consciente do 'eu' e do que ele está fazendo e que 'eu' ele é - você se torna consciente de si mesmo. A autoconsciência é o terceiro estado.
Pergunta: Não é mais fácil quando se é passivo?
Gurdjieff: Sim, mas é inútil. Você deve observar a máquina quando ela estiver trabalhando. Há estados além do terceiro estado de consciência, mas não há necessidade de falarmos deles agora. Apenas um homem no mais elevado estado de ser é um homem completo. Todos os outros são apenas frações de homem. A ajuda externa que é necessária virá de professores ou do ensinamento que estou seguindo. Os pontos de partida desta auto-observação são:
1) Que nós não somos um.
2) Que não temos controle sobre nós mesmos. Nós não controlamos nosso próprio mecanismo.
3) Não nos lembramos de nós mesmos. Se eu digo que 'eu' estou lendo um livro e não sei que 'eu' estou lendo, é uma coisa, mas quando estou consciente de que 'eu' estou lendo, isso é lembrança de si.
Pergunta: Isso não resulta em cinismo?
Gurdjieff: Verdade. Se você não for mais longe para ver que você e todos os homens são máquinas, você simplesmente vai se tornar cínico. Mas se você levar a cabo o seu trabalho, você vai deixar de ser cínico.
Pergunta: Por que?
Gurdjieff: Porque você vai ter que fazer uma escolha, decidir: ou buscar tornar-se completamente mecânico ou completamente consciente. Esta é a encruzilhada dos caminhos da qual todos os ensinamentos místicos falam.
Pergunta: Será que não existem outras maneiras de fazer o que eu quero fazer?
Gurdjieff: Na Inglaterra, não. No Oriente, é diferente. Existem métodos diferentes para homens diferentes. Mas você deve encontrar um professor. Só você pode decidir o que é que quer fazer. Procure no seu coração o que você mais deseja e se você for capaz de fazê-lo, você vai saber o que fazer. Pense bem sobre isso, e então vá em frente.

terça-feira, 29 de junho de 2010

Meher Baba - O Ego e sua Aniquilação



Parte 1


O Ego como o Centro de Conflito



Na fase pré-humana a consciência tem experiências mas essas experiências não são explicitamente tomadas em relação a um 'eu' central. Por exemplo, um cão pode ficar irritado, mas ele não continua a sentir depois "eu estou com raiva." Mesmo nesse caso achamos que o cão aprende através de algumas experiências e dessa forma baseia a ação de uma experiência em outra, mas essa ação é o resultado de uma tensão semi-mecânica de impressões conectadas, ou Sanskaras. É diferente da síntese inteligente de experiências que o desenvolvimento da consciência 'eu' torna possível. O primeiro passo no processo de submeter o trabalho das impressões isoladas à regulação inteligente, consiste em colocá-las todas em relação ao centro da consciência, que aparece como o ego limitado explícito. A consolidação da consciência-ego é mais clara e definida a partir do início da consciência humana.
A consciência humana não seria nada mais do que um repositório de impressões acumuladas de experiências variadas, se não contivesse o princípio de integração centrado no ego que se manifesta na tentativa de organizar e compreender a experiência. O processo de compreensão da experiência implica na capacidade de tomar em conjunto diferentes pedaços de experiências como partes de uma unidade e na capacidade de avaliá-los ao trazê-los em relações mútuas. A integração dos opostos da experiência é uma condição para a emancipação da consciência do cativeiro das diversas compulsões e repulsões, que tendem a dominar a consciência, independentemente da avaliação. As primeiras tentativas para assegurar essa integração são feitas através da formação do ego como base e centro.
O ego surge como um acompanhamento explícito e infalível a todos os acontecimentos da vida mental, a fim de satisfazer uma determinada necessidade. O papel desempenhado pelo ego na vida humana pode ser comparado com a função de um lastro num navio. O lastro de um navio evita que ele oscile demasiadamente. Sem ele, o navio fica suscetível a ser muito leve e instável e correria perigo de ser derrubado pelos ventos e ondas desgovernados. Dessa forma, a energia mental ficaria presa indefinidamente nos múltiplos labirintos da experiência dual e seria toda desperdiçada e dissipada se não houvesse um núcleo provisório. O ego faz um balanço de toda a experiência adquirida e une as tendências ativas nascidas dos instintos relativamente independentes e indefinidos herdados da consciência animal. A formação do ego tem a finalidade de dar uma certa estabilidade aos processos conscientes e também garante um equilíbrio de trabalho, que contribui para uma vida planejada e organizada.
Seria um erro, portanto, imaginar que o surgimento do ego é sem qualquer finalidade. Embora ele surja apenas para desaparecer no final, ele temporariamente cumpre uma necessidade que não poderia ter sido ignorada na longa jornada da alma. O ego não é para ser uma deficiência permanente, uma vez que pode ser transcendido e superado através do esforço espiritual. Mas a fase de formação do ego, no entanto, deve ser encarada como um mal necessário, que tem de vir a existir por hora.
O ego, portanto, marca e cumpre uma certa necessidade no progresso ulterior da consciência. No entanto, uma vez que o ego se refugia na falsa idéia de ser o corpo, ele é uma fonte de muitas ilusões que viciam a experiência. É da essência do ego que ele deva sentir-se separado do resto da vida, contrastando-se com outras formas de vida. Assim, embora interiormente tentando completar e integrar a experiência individual, o ego também cria uma divisão artificial entre a vida interna e externa na própria tentativa de sentir e assegurar a sua própria existência. Essa divisão na totalidade da vida não pode deixar de ter suas reverberações na vida interior individual sobre a qual o ego preside como um gênio orientador.
Enquanto sempre se esforça para estabelecer unidade e integração nas experiências, o ego não poderá nunca concretizar esse objetivo. Embora ele estabeleça um certo tipo de equilíbrio, esse equilíbrio é apenas provisório e temporário.
A incompleição de suas realizações fica evidente no conflito interno que nunca está ausente enquanto uma experiência estiver sendo enfrentada a partir do ponto de vista do ego. De momento a momento a mente do homem passa por uma série de conflitos. As mentes das pessoas grandiosas e distintas, bem como as mentes das pessoas comuns, são assediadas por desejos e tendências conflitantes. Às vezes, o conflito que a mente enfrenta é tão agudo que a pessoa cede às pressões, ocorrendo assim um desarranjo parcial ou total da mente. Não há realmente nenhuma diferença vital entre o indivíduo normal e o chamado anormal. Ambos têm de enfrentar os mesmos problemas, mas um pode ter êxito mais ou menos em resolver os seus problemas e o outro não pode resolvê-los.
O ego tenta resolver os seus conflitos internos através de falsas avaliações e escolhas erradas. É característico do ego que ele considere tudo o que não é importante como importante e tudo o que é importante como sem importância. Assim, embora poder, fama, riqueza, habilidade e outras realizações e feitos mundanos sejam realmente insignificantes, o ego se deleita nessas propriedades e se apega a elas como "minhas". Por outro lado, a verdadeira espiritualidade é totalmente importante para o alma, mas o ego olha para ela como sendo sem importância.


Por exemplo, se uma pessoa experimenta algum desconforto corporal ou mental enquanto faz um trabalho de importância espiritual, o ego toma a frente para assegurar o conforto corporal ou mental que não tem importância, mesmo às custas de abandonar o trabalho espiritual muito importante. Conforto corporal e mental, bem como outros feitos e realizações mundanas, são muitas vezes necessários, mas eles não são, por isso, importantes. Há um mundo de diferença entre necessidade e importância. Muitas coisas vêm para o ego como sendo necessárias, mas elas não são importantes em si. A espiritualidade, que vem para o ego como sendo desnecessária, é muito importante para a alma. O ego representa, portanto, um princípio fundamental e profundo de ignorância, que é exibido no sempre preferir o que é sem importância em detrimento do que é importante.
A mente raramente funciona de forma harmônica, pois é principalmente guiada e regida por forças no subconsciente. Poucas pessoas se dão ao trabalho de conseguir dominar essas forças ocultas que dirigem o curso da vida mental. A eliminação do conflito só é possível através do controle consciente das forças no subconsciente. Esse controle pode ser permanentemente alcançado apenas através do exercício repetido de uma apreciação de valores verdadeira em todos os casos de conflito apresentados à mente.


Se a pessoa quer livrar a mente do conflito, ela deve sempre fazer a escolha certa e infalivelmente preferir o que é verdadeiramente importante ao invés do que é sem importância. A escolha tem de ser inteligente e firme em todos os casos de conflitos - importantes e também sem importância. Tem de ser inteligente, porque só através da busca de valores verdadeiros e permanentes é possível atingir um equilíbrio que não seja prejudicial ao fluxo dinâmico e criativo da vida mental. Uma escolha inteligente, se for firme, pode temporariamente superar o conflito, mas está fadada, a longo prazo, a reduzir o âmbito da vida ou a dificultar a realização de toda a personalidade. Além disso, os conflitos certamente irão reaparecer de alguma outra forma se não tiverem sido resolvidos de forma inteligente. Uma solução inteligente, por outro lado, exige uma compreensão dos valores verdadeiros, que devem ser dissociados dos falsos valores. O problema do conflito de desejos, dessa forma, vem a se tornar o problema de valores conflitantes, e a solução do conflito mental requer, portanto, uma busca profunda pelo significado real da vida. É somente através da sabedoria que a mente pode ser libertada do conflito.


Tendo uma vez sabido qual é a escolha certa, o próximo passo é ater-se a ela de maneira firme. Embora as tendências competitivas na mente possam ser acalmadas ao escolhermos um determinado curso em vez de outras alternativas, elas continuam a funcionar como obstáculos para fazermos a escolha plenamente eficaz e prática. Às vezes há o perigo de uma decisão ser subvertida através da intensificação dessas forças concorrentes no subconsciente. Para evitar a derrota, a mente tem de se apegar tenazmente aos valores corretos que ela tenha percebido. Assim, a solução do conflito mental exige não apenas a percepção dos valores corretos mas também uma fidelidade inabalável a eles.
Uma escolha inteligente e firme, no entanto, tem de ser repetidamente exercitada em todas as questões - pequenas ou grandes. Pois as preocupações comuns da vida não são de forma alguma menos importantes do que os graves problemas com os quais a mente é confrontada em tempos de crise. As raízes do conflito mental não podem desaparecer completamente enquanto houver apenas o exercício intermitente da escolha inteligente e firme. A vida dos verdadeiros valores somente pode ser espontânea quando a mente tiver desenvolvido o hábito ininterrupto de escolher os valores corretos. Três quartos da nossa vida são constituídos de coisas simples e, embora o conflito em relação a coisas comuns não possa causar muita agonia mental, ainda assim, deixa na mente uma sensação de desconforto de que algo está errado. Os conflitos que giram em cima de coisas ordinárias raramente são até mesmo trazidos à superfície da consciência. Ao invés disso, eles lançam uma sombra sobre o sentimento geral que a pessoa tem em relação à vida, como se por trás de uma tela. Tais conflitos têm de ser trazidos à superfície da consciência e francamente enfrentados antes que possam ser adequadamente resolvidos.
Entretanto, o processo de trazer conflito para a superfície da consciência não deveria degenerar em um processo de imaginar conflito onde não há nenhum. O sinal certo de um conflito oculto real é a sensação de que todo o seu coração não está no pensamento ou na ação que vem a ser dominante no momento. Há um sentimento vago de um estreitamento ou uma restrição radical da vida. Em tais ocasiões, deveria ser feita uma tentativa de analisar o seu estado mental através de uma profunda introspecção, pois tal análise traz à luz os conflitos ocultos sobre a questão.


Quando os conflitos são, desse modo, trazidos à luz, é possível resolvê-los através de escolhas inteligentes e firmes. O requisito mais importante para a resolução satisfatória do conflito é a força motriz ou a inspiração, que só pode vir de um desejo ardente de um ideal compreensivo. A análise, por si só, pode auxiliar a escolha, mas a escolha continuará a ser uma preferência intelectual estéril e ineficaz se não for vitalizada pelo zelo de alguns ideais atraentes para os estratos mais profundos e mais significativos da personalidade humana. A psicologia moderna tem feito muito para revelar as fontes de conflito, mas ainda tem de descobrir métodos de despertar a inspiração ou fornecer para a mente algo que faça a vida valer a pena. Esta é certamente a tarefa criativa com a qual se defrontam os salvadores da humanidade.
Estabelecer um verdadeiro ideal é o início da correta avaliação. Avaliação correta por sua vez é a destruição das construções do ego, que prospera na avaliação falsa. Qualquer ação que expresse os valores autênticos da vida contribui para a desintegração do ego, o qual é um produto de eras de ação ignorante. A vida não pode ser permanentemente aprisionada dentro da jaula do ego. Ela deve em algum momento se esforçar em direção à Verdade. Na maturação da evolução vem a descoberta importante de que a vida não pode ser compreendida e vivida plenamente enquanto ela for feita para se mover em torno do eixo do ego. O homem é então conduzido pela lógica da sua própria experiência a encontrar o verdadeiro centro de experiências e de reorganizar sua vida na Verdade. Isso implica o desgaste do ego e sua substituição pela Consciência-Verdade. A desintegração do ego culmina na realização da Verdade. O falso núcleo de Sanskaras consolidados deve desaparecer para que possa haver uma verdadeira integração e realização da vida.









Parte 2




O Ego como uma Afirmação de Separatividade


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O ego é uma afirmação de separatividade. Ele assume muitas formas. Pode assumir a forma de uma contínua memória autoconsciente que se expressa em lembranças como: "eu fiz isso e eu fiz aquilo", "eu senti isso e eu senti aquilo", "eu pensei isso e eu pensei aquilo." Ele também assume a forma de esperanças ego-centradas para o futuro que se expressam através de planos do tipo: "vou fazer isso e vou fazer aquilo", "vou sentir isso e vou sentir aquilo", "vou pensar isso e vou pensar aquilo”. Ou ainda no presente, o ego manifesta-se na forma de um forte sentimento de ser alguém em particular e afirma a sua distinção e separação de todos os outros centros de consciência. Embora provisoriamente sirva a um propósito útil como um centro de consciência, o ego, como uma afirmação de separação, constitui o obstáculo principal para a emancipação espiritual e para a iluminação da consciência.


O ego afirma a sua separatividade através de desejo, ódio, raiva, medo ou ciúme. Quando uma pessoa deseja a companhia de outras pessoas, ela tem plena consciência de estar separada delas e, assim, sente intensamente a sua própria existência separada. O sentimento de separação dos outros é mais grave onde existe um grande e intenso desejo. No ódio e na raiva também, a outra pessoa é, por assim dizer, expulsa do próprio ser da pessoa e é considerada não só como uma forasteira mas como definitivamente hostil à prosperidade do ego dela. O medo também é uma forma sutil de se afirmar a separação e ele existe onde a consciência da dualidade é inabalável. O medo age como uma espessa cortina entre o "eu" e o "você". E não só nutre uma profunda desconfiança em relação aos outros, mas, inevitavelmente, traz uma diminuição e retratação da consciência, de modo a excluir o ser do outro do contexto da vida da pessoa. Portanto, não só as outras almas, como também Deus deveriam ser amados e não temidos. Temer a Deus ou às Suas manifestações é reforçar a dualidade e amar a Deus e Sua manifestação é enfraquecê-la.
O sentimento de separatividade encontra a sua expressão mais pungente no ciúme. Há uma necessidade profunda e imprescindível na alma humana de amar e de se identificar com outras almas. Essa necessidade não é atendida em nenhuma instância onde haja desejo ou ódio, raiva ou medo. No ciúme, além da não realização dessa necessidade profunda e imprescindível de identificação com outras pessoas, há uma crença de que alguma outra alma conseguiu se identificar com a pessoa a quem ela solicitava. Isso cria um protesto permanente e implacável contra ambos indivíduos por terem desenvolvido uma relação que a pessoa na realidade desejava reservar para si mesma. Todos os sentimentos exclusivos como o desejo, o ódio, o medo ou o ciúme provocam um estreitamento da vida e contribuem para a limitação e a restrição da consciência. Tornam-se diretamente instrumentais na afirmação da separatividade do ego.
Cada pensamento, sentimento ou ação que nasce da idéia da existência exclusiva ou separada, limita. Todas as experiências (pequenas ou grandes) e todas as aspirações (boas ou más) criam uma carga de impressões e nutrem o sentido de "eu". A única experiência que contribui para o enfraquecimeno do ego é a experiência do amor e a única aspiração que contribui para a redução da separação é o desejo de tornar-se um com o Amado. Desejo, ódio, raiva, medo e ciúme são atitudes exclusivas que criam um abismo entre a pessoa e o resto da vida. Só o amor é uma atitude inclusiva, aquele que ajuda a ultrapassar esse abismo artificial e autocriado tendendo a romper a barreira de separação da falsa imaginação. No amor verdadeiro, o amante também anseia, mas anseia pela união com o Amado. Ao procurar ou experimentar a união com o Amado, o sentimento do "eu" torna-se fraco. No amor, o "eu" não pensa em autopreservação, assim como a mariposa não tem medo de se queimar na chama. O ego é a afirmação de estar separado do outro, enquanto que o amor é a afirmação de ser um com o outro. Assim, o ego só pode ser dissolvido pelo amor real.


O ego é constituído por desejos de variados tipos. A impossibilidade de satisfação dos desejos é um fracasso do ego. O sucesso em alcançar os objetos desejados é um sucesso do ego. Através de desejos realizados, bem como através dos não atendidos, o ego é acentuado. O ego pode alimentar-se até mesmo de uma comparativa calmaria no surgimento de desejos e afirmar a sua tendência de separação por meio do sentimento de que ele não tem desejos. Quando há uma real cessação de todos os desejos, porém, há uma cessação do desejo de afirmar a separatividade sob qualquer forma. Por conseguinte, a liberdade real de todos os desejos traz o fim do ego. O ego é feito de desejos variados e a destruição desses desejos equivale à destruição do ego.
No entanto, o problema de apagar o ego da consciência é muito complicado, porque as raízes do ego estão todas na mente subconsciente na forma de tendências latentes, e essas tendências latentes nem sempre são acessíveis à consciência explícita. O ego limitado da consciência explícita é apenas um pequeno fragmento do ego total. O ego é como um iceberg flutuando no mar. Cerca de um sétimo do iceberg permanece acima da superfície da água e é visível para o espectador, mas a maior parte continua submersa e invisível. Da mesma forma, apenas uma pequena parte do ego real se manifesta na consciência sob a forma de um 'eu' explícito, a parte principal do ego real permanece submersa nos santuários escuros e inarticulados da mente subconsciente.
O ego explícito, que encontra a sua manifestação na consciência, não é de forma alguma um todo harmonioso, ele pode e deve se tornar uma arena para uma multidão de conflitos entre as tendências opostas. Ele tem uma capacidade limitada, entretanto, de permitir a emergência simultânea de tendências contraditórias. Duas pessoas de estar pelo menos se falando se quiserem entrar em discussões articuladas. Se não estão se falando, elas não podem se pôr a discutir sobre um terreno comum. Da mesma forma, duas tendências que podem entrar em conflito consciente devem ter alguns pontos em comum. Se são muito diferentes, elas não conseguem encontrar admissão na arena da consciência, mesmo que como tendências conflitantes, mas têm de permanecer submersas no subconsciente até que ambas sejam modificadas através de tensões exercidas pelas diversas atividades relacionadas com a mente consciente.
Apesar de todo o ego ser essencialmente heterogêneo em sua constituição, o ego explícito na consciência é menos heterogêneo do que o ego implícito da mente subconsciente. O ego explícito opera como um todo formidável em comparação com as tendências subconscientes isoladas que buscam emergir na consciência. O ego organizado da consciência explícita se torna, portanto, uma barreira repressiva que impede indefinidamente vários componentes do ego implícito de acessarem a consciência. Todos os problemas do ego podem ser combatidos apenas através da ação inteligente e consciente. Portanto, a aniquilação completa do ego só é possível quando todos os componentes do ego passarem pelo fogo da consciência inteligente.
A ação da consciência inteligente nos componentes do ego explícito é importante, mas por si só não é suficiente para obter os resultados desejados. Os componentes do ego implícito da mente subconsciente têm de ser trazidos à superfície da consciência de alguma forma e se tornarem partes do ego explícito, e, em seguida, serem submetidos à ação da consciência inteligente. Para que isso seja alcançado, tem de haver um enfraquecimento do ego explícito de maneira a permitir o aparecimento na consciência daqueles desejos e tendências que até então não podiam encontrar acesso na arena da consciência. Essa libertação das tendências inibidas gera, naturalmente, confusão e conflito no ego explícito. Portanto, o desaparecimento do ego é muitas vezes acompanhado por conflitos intensificados na arena da mente consciente e não por um alívio deles. No entanto, ao final da luta aguda e intransigente, repousa o estado de equilíbrio verdadeiro e de incontestável harmonia que vem após o derretimento do iceberg inteiro do ego.
Escavar as raízes enterradas do ego das camadas mais profundas do subconsciente e trazê-las à luz da consciência é uma parte importante do processo de aniquilar o ego. A outra parte importante consiste na manipulação inteligente dos desejos depois de eles ganharem entrada na arena da consciência. O processo de lidar com os componentes da consciência explícita não é de maneira nenhuma claro e simples, pois o ego explícito tem uma tendência de viver através de qualquer um dos opostos da experiência. Se for expulso de um oposto pela operação intensiva de consciência inteligente, ele tem a tendência de passar para o outro extremo e viver através dele. Com repetidas alternâncias entre os opostos da experiência, o ego escapa do ataque da consciência inteligente e busca perpetuar-se.
O ego é como a cabeça de Hidra e se expressa de inúmeras maneiras. Ele vive sob qualquer tipo de ignorância. O orgulho é o sentimento específico através do qual se manifesta o egoísmo. Uma pessoa pode se orgulhar das coisas mais tolas e sem importância. Há casos conhecidos, por exemplo, de pessoas que deixam suas unhas com um comprimento anormal e as preservam a despeito disso causar enorme transtorno para elas, por nenhuma outra razão além de afirmar sua separação dos outros. O ego tem que ampliar suas conquistas de forma grotesca, de modo a viver nelas. A afirmação direta do ego através de autoexibição na sociedade é muito comum, mas se tal afirmação direta for proibida pelas regras de conduta, o ego tem uma tendência de buscar o mesmo resultado ao levantar calúnias sobre os outros. Retratar os outros como maus é glorificar-se ao sugerir uma comparação - uma comparação que o ego de boa vontade desenvolveu, embora ele muitas vezes restrinja a si mesmo ao fazê-lo.
O ego é ativado pelo princípio da autoperpetuação e tem uma tendência a viver e crescer por todos e quaisquer meios que não estiverem fechados para ele. Se o ego enfrenta restrições em uma direção, ele procura compensar a expansão numa outra. Se ele for dominado por uma inundação de noções e ações espirituais, ele até mesmo tende a apoderar-se dessa própria força, e que foi originalmente posta em jogo para expulsar o ego. Se uma pessoa tentar cultivar a humildade a fim de aliviar-se do peso monstruoso do ego e conseguir fazê-lo, o ego pode, com uma rapidez surpreendente, transferir-se para esse atributo da humildade. Ele se alimenta através de repetidas afirmações como: "eu sou espiritual", assim como nas fases primárias ele alcançava o mesmo objetivo através de afirmações como: "eu não sou interessado em espiritualidade." Assim, surge o que poderia ser chamado de um ego espiritual ou um ego que sente a sua separação através da realização de coisas consideradas boas e altamente espirituais. Do ponto de vista verdadeiramente espiritual, esse tipo de ego é tão limitador quanto o ego primário e grosseiro, que não tem tais pretensões.
De fato, nos estágios mais avançados do caminho, o ego não busca manter-se através de métodos abertos, mas refugia-se nas próprias coisas que são exercidas para enfraquecê-lo. Essas táticas do ego são muito parecidas com as de uma guerrilha e são mais difíceis de contra atacar. Destituir o ego da consciência é necessariamente um processo complexo, não pode ser alcançado através do exercício de uma abordagem constantemente uniforme. Uma vez que a natureza do ego é muito complicada, um tratamento igualmente complicado é necessário para livrar-se dele. Sendo que o ego tem possibilidades quase infinitas para tornar a sua existência segura e criar auto ilusão, o aspirante descobre ser impossível competir com o infindável surgimento de novas formas do ego. Ele pode esperar ter êxito em lidar com os truques enganosos do ego somente com a ajuda e graça de um Mestre Perfeito.
Na maioria dos casos é apenas quando o aspirante é conduzido a perceber a futilidade de todos os seus esforços que ele se aproxima de um Mestre. Por si mesmo, ele não pode avançar em direção ao objetivo, o qual ele mal visualiza e procura. A persistência obstinada do ego o exaspera, e nessa percepção clara de desamparo ele se rende ao Mestre como seu último e único recurso. A auto entrega constitui uma admissão aberta de que o aspirante agora abandonou toda a esperança de resolver os problemas do ego por si próprio e que ele depende exclusivamente do Mestre. É como dizer: "eu sou incapaz de acabar com a existência miserável desse ego. Por isso, busco você para intervir e matá-lo." Essa etapa, por fim, acaba por ser mais proveitosa do que todas as outras medidas que poderiam ter sido tentadas em prol do enfraquecimento e subsequente aniquilação do ego. Quando pela graça do Mestre, a ignorância que constitui o ego é dissipada, ocorre o alvorecer da Verdade, que é a meta de toda a criação.









Parte 3


As Formas do Ego e Sua Dissolução


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O ego subsiste acerca de posses mundanas como poder, fama, riqueza, capacidades, conquistas e realizações. Ele cria e reconhece o “seu” a fim de sentir o que é distintamente "meu". No entanto, apesar de todas as coisas mundanas que ele afirma como "minhas", ele constantemente sente-se vazio e incompleto. Para compensar essa inquietação profunda em seu próprio ser, o ego procura fortalecer-se através de novas aquisições. Ele traz a ostentação de todas as suas variadas posses em relevo ao comparar-se com outros que possam ser inferiores, em qualquer um dos itens carimbados como "meus". E muitas vezes ele usa essas posses para se mostrar gratuita e desnecessariamente, a despeito da desvantagem dos outros. O ego é insatisfeito, apesar de suas posses mundanas, mas em vez de cultivar o desapego a elas, ele busca obter satisfação de um sentimento mais intenso ainda de posse em oposição ao outro. O ego como uma afirmação da separação vive através da idéia de "meu".


O ego quer se sentir separado e único, e procura auto expressão quer no papel de alguém que é decididamente melhor do que outros, ou no papel de alguém que é decididamente inferior. Enquanto houver ego, há um implícito pano de fundo de dualidade e enquanto houver o pano de fundo da dualidade, as operações mentais de comparação e contraste não podem ser eficazmente silenciadas por muito tempo. Portanto, mesmo quando a pessoa parece ter uma sensação de igualdade com o outro, esse sentimento não é seguramente estabelecido. Ele marca um ponto de transição entre as duas atitudes do ego e não de liberdade permanente da distinção entre o "eu" e o "você".


Esse pseudo sentimento de igualdade, quando existe, pode ser postulado na fórmula: "eu não sou em nada inferior ou superior aos outros." À primeira vista, isso será visto como uma afirmação negativa do ego. O equilíbrio entre o "eu" e o "você" é constantemente perturbado pela predominância de um complexo de superioridade ou de inferioridade. A idéia da igualdade surge para restabelecer o equilíbrio perdido. A afirmação negativa do ego sob a forma de igualdade, no entanto, é totalmente diferente do sentimento de unidade que é característico da vida da liberdade espiritual. Embora o senso de igualdade seja tomado como base de muitos ideais políticos e sociais, as reais condições de uma rica vida cooperativa são cumpridas apenas quando a mera idéia de igualdade é substituída pelo dar-se conta da unidade de toda a vida.


Os sentimentos de superioridade e inferioridade são reações um para o outro, e o sentimento artificialmente induzido de igualdade pode ser considerado como uma reação a ambos. Em todos esses três modos o ego consegue afirmar a sua separatividade. Os complexos de superioridade e de inferioridade, na maior parte permanecem desconectados um do outro. Ambos buscam expressão separada e alternada através de objetos apropriados, assim como quando uma pessoa domina aqueles a quem ela considera ser seus inferiores e submete-se àqueles a quem vê como seus superiores. Mas essa expressão alternada através de um comportamento contrastante só acentua esses complexos opostos em vez de conduzir à sua dissolução.
O complexo de superioridade é estimulado quando uma pessoa encontra alguém que esteja de alguma forma notavelmente numa posição inferior com relação às posses mundanas. Apesar de suas muitas posses, o ego é constantemente confrontado com o cenário de seu vazio intrínseco. Por isso, ele agarra-se à ilusão reconfortante de seu caráter valoroso demonstrando a grandeza dos seus bens. Esse contraste não se limita à comparação teórica, mas muitas vezes apresenta-se como um conflito real com os outros. Assim, a agressividade é um resultado natural da necessidade de compensar a pobreza da vida egocêntrica.


O complexo de inferioridade é avivado quando uma pessoa encontra alguém que esteja de alguma forma notavelmente numa posição superior em relação aos bens mundanos. Mas a sua submissão ao outro está enraizada ou no medo ou no egoísmo. Ela nunca pode ser sincera ou espontânea porque há um ciúme escondido e até mesmo um ódio pelo outro por possuir algo que ela gostaria de ter para si. Toda submissão forçada e exterior é meramente o efeito de um complexo de inferioridade e pode apenas fortalecer o ego numa de suas piores formas. O ego atribui seu sentimento de vazio aos bens aparentemente inferiores que ele pode clamar como "meus", ao invés de atribuí-lo ao seu vício profundamente arraigado em busca de satisfação através de posses. Estar ciente de sua inferioridade de bens se torna apenas um estímulo adicional para fazer esforços desesperados para adicionar mais aos seus bens através dos meios que estiverem disponíveis para ele. Dessa forma, enquanto perpetuam a pobreza interior da alma, o complexo de inferioridade, bem como o complexo de superioridade, constituem um agente para o egoísmo e o caos social e para o acúmulo desse tipo de ignorância que caracteriza o ego.
Quando uma pessoa entra em contato com um Mestre Perfeito e reconhece-o como tendo o estado de Perfeição sem ego, ela voluntariamente se rende ao Mestre. O discípulo percebe o ego como sendo uma fonte de perpétua ignorância, agitação e conflito; e também reconhece sua própria incapacidade de acabar com ele. Mas essa autorendição deve ser cuidadosamente distinguida do complexo de inferioridade porque é acompanhada pela consciência de que o Mestre é o ideal e, como tal, tem uma unidade básica com o discípulo. Essa auto entrega não é de modo algum uma expressão de perda de confiança. Pelo contrário, é uma expressão de confiança na superação final de todos os obstáculos com a ajuda do Mestre. A apreciação da divindade do Mestre é a maneira pela qual o Ser Superior do discípulo expressa o seu sentido de dignidade.


A fim de provocar uma rápida dissolução das duas principais formas do ego, o Mestre pode deliberadamente aguçar ambos complexos em alternância. Se o discípulo está a ponto de desanimar e desistir da busca, ele pode despertar nele profunda autoconfiança. Se ele está a ponto de tornar-se egoísta, ele pode romper essa barreira criando novas situações em que o discípulo tenha de aceitar e reconhecer a sua própria incapacidade ou futilidade. Assim, o mestre exerce sua influência sobre o discípulo para agilizar as etapas que o ego, em processo de derretimento, passa antes de seu desaparecimento final.


Os complexos de superioridade e de inferioridade têm de ser postos em uma relação inteligente um com o outro para que combatam um ao outro. Isso requer uma situação em que ambos sejam permitidos atuar ao mesmo tempo, sem exigir a repressão de um para poder expressar o outro. Quando a alma entra numa relação dinâmica e vital com o Mestre, os complexos relacionados com os sentimentos de inferioridade e de superioridade são colocados em jogo, e eles estão tão ardilosa e inteligentemente acomodados que neutralizam um ao outro. O discípulo então sente que ele não é nada em si mesmo, mas dentro e através do Mestre ele é avivado pela perspectiva de ser Tudo.
Assim, com um só golpe os dois complexos são levados a uma tensão mútua e tendem a aniquilar um ao outro na tentativa que o discípulo faz para ajustar-se ao Mestre. Com a dissolução desses complexos opostos, surge uma quebra das barreiras de separação do ego em todas as suas formas. Com a quebra das barreiras da separação surge o amor divino. Com o surgimento do amor divino, o sentimento separado de "eu", como distinto do "você", é engolido no sentido de sua unidade.


Para um carro mover-se em direção ao seu destino é necessário haver um motorista. No entanto, o motorista pode estar suscetível a fortes atrações pelas coisas que ele encontra no caminho e ele pode não somente parar em locais proibidos por um tempo indeterminado, mas também pode se perder pelo caminho em busca de coisas que têm encanto apenas temporário. Dessa maneira ele pode manter o veículo em movimento o tempo todo mas sem chegar mais perto do objetivo, e ele pode até mesmo ficar mais longe dele. Algo semelhante acontece quando o ego assume o controle da consciência humana. O ego pode ser comparado a um motorista que tem um certo grau de controle sobre um carro e uma certa capacidade para dirigi-lo, mas que está na escuridão total no que diz respeito ao seu destino final.


Para um carro chegar ao seu destino final, não basta apenas ter alguém que possa dirigir o carro. É igualmente necessário que esse condutor deva ser capaz de dirigir o carro em direção ao destino. Enquanto o movimento da consciência estiver sob o domínio completo e exclusivo do ego, o avanço espiritual da pessoa estará comprometido pela tendência natural do ego de reforçar as barreiras de separação da falsa imaginação. Então, por causa das atividades ego-centradas, a consciência permanece cercada pelos muros de sua própria criação e se move dentro dos limites desta prisão de maya.


Para a consciência ser emancipada de suas limitações e tornar-se adequada para servir o propósito original pelo qual ela veio a existir, ela deve extrair o seu dinamismo direcionador não do ego, mas de algum outro princípio. Em outras palavras, o motorista que é ignorante do destino final deve ser trocado por outro motorista que estiver livre de todo o fascínio das coisas acidentais encontradas no caminho, e que concentre a sua atenção não nas estações de descanso ou nas atrações paralelas, mas sim no objetivo final. O deslocamento do centro de interesse de coisas sem importância para valores verdadeiramente importantes é comparável à transferência de poder do motorista ignorante para o motorista que conhece o destino. Juntamente com essa mudança gradual do centro de interesse, há uma dissolução progressiva do ego e o movimento em direção à Verdade.
Se o ego não fosse nada além do que um meio para a integração da experiência humana, seria possível para uma pessoa estabelecer-se na Verdade final apenas desempenhando as atividades do ego. Porém, embora desempenhe um papel específico na evolução da consciência, o ego também representa um princípio ativo de ignorância que impede um desenvolvimento espiritual ulterior. O ego tenta a integração da experiência, mas faz isso em torno da falsa idéia de separação. Tendo tomado uma ilusão como a fundação para a construção do seu edifício, ele nunca consegue nada além da construção de ilusões uma após outra. A função do ego realmente atrapalha em vez de ajudar a chegar à Verdade. O processo de chegar à Verdade apenas pode ser frutífero se a integração presidida pelo ego for levada adiante sem trazer consigo a ignorância básica da separação.
Enquanto a experiência humana residir dentro da limitação da dualidade, a integração da experiência é uma condição essencial para uma vida racional e significativa. Mas o ego como um núcleo de integração tem de ser renunciado por causa de sua inevitável aliança com as forças da ignorância. Surge, então, uma necessidade imperativa de um novo centro de integração que levará embora a ignorância básica da separação e deixará margem livre para a incorporação de todos os valores anteriormente inacessíveis ao ego-centro. Este novo centro é fornecido pelo Mestre, o qual expressa tudo o que tem valor real e que representa a Verdade absoluta. A mudança de interesse por coisas sem importância para valores importantes é facilitada pela fidelidade e autorendição ao mestre, o qual se torna o novo núcleo para a integração.
O Mestre, quando verdadeiramente compreendido, é uma afirmação permanente da unidade de toda a vida. A fidelidade ao Mestre, portanto, traz uma dissociação gradual do núcleo do ego que afirma a separação. Após essa crise importante na vida de um indivíduo, toda a atividade mental tem um novo quadro de referência. E o seu significado deve ser considerado à luz de sua relação com o Mestre como a manifestação da Verdade infinita, e não à luz de qualquer relação com o ego-centro como um “eu” limitado. A partir daí, a pessoa descobre que todos os atos que fluem dela já não são mais iniciados a partir do “eu” limitado, mas são todos inspirados pela Verdade através do Mestre. Ele também não mais fica interessado no bem-estar do ser limitado, mas só está interessado no Mestre como a representação da vida universal e indivisível. Ele oferece todas as suas experiências e desejos para o Mestre, não conservando nem o bem nem o mal para o "eu" limitado, tirando o ego de toda a superfície.
Esta falência do ego que está em progresso, não interfere com o processo de integração, porque a função é executada agora em torno do novo centro - do Mestre representando a Verdade. Quando o ego-núcleo ficar completamente falido e desprovido de qualquer poder ou ser, o Mestre, como a Verdade, será firmemente estabelecido na consciência como seu gênio orientador e como princípio animador. Isso constitui tanto a obtenção da união com o Mestre quanto a realização da Verdade infinita.
Conforme o ego gradualmente ajusta-se às exigências espirituais da vida através do cultivo da humanidade, da abnegação e do amor, entregando-se incondicionalmente e oferecendo-se ao Mestre, como a Verdade, ele sofre uma drástica redução. Ele não apenas oferece cada vez menos resistência ao desenvolvimento espiritual, mas também sofre uma transformação radical. Essa, eventualmente, torna-se tão grande que ao final, o ego, como uma afirmação de separatividade, desaparece completamente e é substituído pela Verdade que não conhece separação.
As etapas intermediárias de enfraquecer o ego e suavizar sua natureza, são comparáveis à limpeza e à poda dos galhos de uma árvore selvagem e frondosa, enquanto que o último passo da aniquilação do ego, significaria desenterrar totalmente a árvore. Quando o ego desaparece totalmente, surge o conhecimento do verdadeiro Ser. Assim, a longa jornada da alma consiste em desenvolver a partir da consciência animal a consciência de si mesmo explícita como um "eu" limitado, em seguida, em transcender o estado do “eu” limitado da consciência humana, por intermédio do Mestre. Nessa fase, a alma é iniciada na consciência do Ser supremo e real como um eterno e infinito "Eu Sou" no qual não há separação e o qual inclui toda a existência.

terça-feira, 22 de junho de 2010

Jalaluddin Rumi - Dez Poemas



O amor diz: você não pode negar-me. Tente.
Eu digo: Sim, você aparece do nada
como as bolhas no vinho, ora aqui e então não mais.

O amor diz: aprisionado no corpo-jarro,
cantando no banquete.

Eu digo: Esse êxtase é perigoso.

O amor diz: Eu saboreio o dia delicioso,
Até que a noite leva o copo embora.
Então eu insisto e a noite devolve o copo.



A noite que vejo nunca muda.

Os árabes descrevem o vinho com a palavra mudam,
que significa contínuo. De novo, de novo e de novo,
porque bebedores de vinho nunca ficam saciados.

A água da realização é o vinho do qual falamos,
onde o amor é o liquido e seu corpo o frasco.

A graça inunda internamente. O poder do vinho
quebra o jarro. Está acontecendo agora.

A água do despertar transforma-se naquele que serve,
no próprio vinho e em cada presença no banquete.

Nenhuma metáfora pode conter essa verdade
que sabe como guardar segredo
e quando se mostrar.

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A Lua devocional olha no coração e está no coração.


Quando o coração tem um Amigo como você,


o universo não pode conter o prazer de vocês dois.




Todos que são aquecidos pelo sol sentem a coragem chegar.


Se um pesar vier, você o desfruta.




Generosidade: essa é a sua mão em meu bolso dando embora sua riqueza.


Ainda assim, você foge de mim como um selvagem.




Aí vem essa estranha criatura: eu, no formato de pés e mãos!


O sem-forma tenta nos satisfazer com formas!


Uma nudez transparente vestindo pura luz diz:


'Abençoados são aqueles que vestem um brocado de ouro!'




Você pode não vê-lo, mas Moisés está vivo nesta cidade


e ele ainda tem seu pessoal! E há água e sede,


onde quer que a água vá e onde quer que vá aquele que traz a água.




O vento da manhã quebrou alguns galhos no jardim.


Não importa, quando você sente o amor dentro de você,


você escuta o convite para ser cozido por Deus.





É essa criação que o coração ama.


Por três meses de inverno o solo fica quieto.


Mas cada pedaço de terra sabe o que está esperando dentro:


feijões, cana de açúcar, pinheiros, flores silvestres.


Então o sol da primavera vem chamando as plantas ao ar livre.




Todos os que sentem o ponto da oração curvam-se como


a primeira letra da oração. Todos que caminham de costas


para o sol estão seguindo sua sombra.




Mova-se para sua própria quietude.


Este poema buscador de palavras encontrou você,


pronto para o silêncio.



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Um rouxinol voa mais perto das rosas.


Uma garota fica corada. A romã amadurece.


Hallaj vai ser executado.


Um homem caminha numa trilha na montanha,


solitário e cheio de oração.


A confiança cresce por nove meses, então um novo ser aparece.


Narcisos às margens, a água do riacho banha as raízes:


Deus está dando uma palestra introdutória geral.


Nós a ouvimos e lemos por toda parte, no campo, pelos ramos.


Jamais terminaremos de estudar.




Nenhum de nós tem um centavo sequer, e ainda assim


estamos andando no bazar do joalheiro fazendo compras!


Ou devo dizer isso com outras metáforas?


Um celeiro lotado de almas.


Quietude servida ao redor de uma mesa.


Duas pessoas conversam ao longo de uma estrada


que é pavimentada com palavras.




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Será melhor para nós quando nos dissolvermos no chão ou pior?


Vamos descobrir agora o que vai acontecer.


É trabalho dos amantes esse abrir caminho e se tornar esta terra,


morrer antes de morrermos.


Não pense em emparelhar-se de maneira alguma com Deus!


Essa afirmação é uma auto-indulgência religiosa.


Você reconhece pelo cheiro: a fumaça que sai do esterco queimado


é diferente da que sai do incenso!


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Continuo girando ao redor desse infortúnio,


dessa ilusão perturbada que chamo de mim mesmo,


quando poderia estar girando ao redor de Ti,


o doador de bênçãos, origens e presença.




Meu peito é uma sepultura onde você fez um jardim de rosas.


O que vai no túmulo? O que cabe naquele dois por dois por sete?


Não a alma, a alma não pode ser contida nem pelo céu!




Eu giro em torno de Deus. Tornei-me um espelho, ainda assim


esses dias eu giro em torno de um pedaço de lã branca.


Se eu fosse uma rosa nesta primavera,


me transformaria numa centena de roseiras.




Giro em torno deste corpo frustrado,


acorrentado num estábulo de palavras,


quando poderia estar livre no pasto infinito.




Livre, por que continuo girando como se estivesse amarrado a um poste?



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Uma mariposa voando para o fogo diz com suas asas em chamas:


'Tente isso'. O pavio com seu pescoço quebrado diz o mesmo.


Uma vela, conforme diminui, explica:


'Ajuntar mais e mais não é o caminho.


Queime, transforme-se em luz e calor e ajude, derreta.'




O oceano senta na areia deixando seu colo encher-se de pérolas


e conchas e depois deixa-o vazio. O gosto de sal amargo sussurra: Isso.


A fênix desiste do bem e do mal, voa para o ninho no monte Qaf,


sem mais queimar-se e erguer-se das cinzas.


Ela manda uma mensagem.




A rosa purifica sua face, deixa cair suaves pétalas,


mostra seu espinho e aponta. O vinho abandona milhares de nomes famosos,


os anos de vintage e buquês maravilhosos,


para correr louca e anonimamente pelo seu cérebro.




Vazia, a flauta fecha seus olhos para o nada de Hamza.


Todas as coisas imploram com as pedras silenciosas para você


ser lançada como luz sobre essa planície,


ó, presença de Shams de Tabriz.




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Você torna nossas almas saborosas como geléia de rosas.


Você nos faz cair estirados no chão como a sombra de um pinheiro.


Como água da chuva através de uma montanha,


corremos atrás de você de diferentes maneiras.


Vivemos na orla das lágrimas dentro de seus olhos. Não chore!


Você ilude algumas pessoas com cordas de ouro, amarra-as e as deixa.


Outros você puxa para perto no amanhecer.


Você é aquele dentro de cada atração. Todo silêncio.


Você nunca está sozinho, mas deve estar distraído, pois veja,


você pegou a comida que ia dar para Jesus e levou para o estábulo


e colocou no chão na frente do asno!



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Aquele camelo ali com seus filhotes correndo atrás de si,


Sutur e Kosheck. Somos como eles: maternalmente protegidos


por quem e de onde nos originamos,


seguindo nossos destinos para onde eles conduzem,


até que escutamos um tambor começar a ressoar,


a graça adentrando em nossas vidas, uma oração de gratidão.




Sentimos o chamado de Deus e a jornada muda.


Um terreno seco e pedregoso torna-se macio e úmido como um queijo.


A montanha sente-se numa posição abaixo de nós.


O amor torna-se ágil e rápido e de repente estamos lá!




Essa viagem não é feita com o corpo.


O segredo de Deus toma forma no seu amor.


Mas existem aqueles em corpos que são alma pura.


Pode acontecer. Esses mensageiros nos convidam para andar com eles.


Eles dizem: 'Você pode sentir-se feliz o bastante onde está,


mas não podemos mais ficar sem você! Por favor.'




Então caminhamos para dentro da rosa,


sendo puxados como os riachos e os rios são,


da cidade para a planície. Meu guia, minha alma,


sua única tristeza é quando não estou andando com você.


No silêncio profundo, com algum empenho para ficar em sua companhia,


eu poderia salvar você de um monte de problemas.




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O fogo está cochichando um segredo no ouvido da fumaça,


“Esse incenso me ama porque eu lhe ajudo a viver o seu propósito,


Comigo ele se torna fragrância e então desaparece completamente!”




Os nós unem-se e abrem-se para a ausência,


assim como você faz comigo, meu amigo.


Comido pela chama e esfumaçado para o céu!


Isso é o mais afortunado. Mudar e desaparecer não é falta de sorte.




O solo negro desintegra-se para dar a si mesmo para as plantas.


Pense como esperma e óvulo tornam-se uma cabeça e uma face sorridente.


O pão precisa dissolução para transformar-se em pensamento.


Ouro e prata em sua forma bruta não são tão valiosos.




Esse caminho passa através de humilhação e desprezo.


Experimentamos a plenitude da presença. Agora é hora de desolação.


O amor está nos levando pelas orelhas para a escola.


O amor nos quer limpos de ressentimento e


daqueles sentimentos que desencaminham a alma.




Estamos adormecidos, mas Khidr continua borrifando água em nossas faces.


O amor em breve irá dizer para nós o resto do que precisamos saber.


Então estaremos profundamente adormecidos e plenamente despertos


simultaneamente, como companheiros de caverna.


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Estou caindo no sono, você me acorda querendo novas palavras musicais,


novas notas de flauta com a linguagem.


Minhas mãos e pés estão dormentes, você puxa minha orelha:


'Conte-me a história novamente desde o começo.'




Margens de noites escuras cobrem a terra.


Você clama por poemas sobre os cabelos da noite,


sobre como a doçura surge no canavial.


Eu termino um poema. Você quer outro e mais outro.




Imagine isso: você está morto de cansaço, pronto para dormir.


Seu assistente chega querendo escutar sobre âmbar cinzento!


O que você faria?


O que você andou bebendo que o faz querer tantos poemas extáticos?


Essas não são perguntas reais. Estou brincando.


Em sua presença, me chame de qualquer nome, Kaymaz, Sencer;


tudo a mesma coisa, partículas sob os pés, poeira flutuando.

sexta-feira, 18 de junho de 2010

Tukaram - Seleção de alguns Abhangas



Deus está me perseguindo abertamente. Eu caí nas mãos Dele e Ele está me usando como um criado que não recebe salário. Ele extrai trabalho de mim sem importar-se em que condição isso pode me colocar. Onde quer que eu vá, Deus me persegue. Ele me desproveu de todas as minhas posses.




Deus está se movendo por toda minha volta. Fui amarrado por Deus interna e externamente. Ele colocou um fim em todo meu trabalho e privou-me até mesmo de minha mente. Ele privou-me do meu sentido de 'eu' e separou-me de todas as coisas. Bem amarrado comigo ele está dando voltas e mais voltas.




Ele me segue onde quer que eu vá e torna impossível para mim esquece-Lo. Ele roubou meu coração que era meu tesouro. Ele mostrou-se à minha visão e fez-me sair louco procurando por Ele. Minha boca se recusa a falar e meus ouvidos a ouvir. Todo meu corpo foi preenchido pelo calor da paixão Divina.




Com medo desta vida mundana, para onde posso correr? Onde quer que eu olhe, Deus está presente. Ele me privou da solidão e não há lugar sem Ele. Como posso dizer que vou para outro lugar? Quando um homem adormecido acorda, ele descobre estar em casa. O que eu lhe devo, ó Deus, que O fez encurralar-me de todos os lados?




Fui possuído por Deus. O que quer que eu fale, Deus preenche. O que quer que eu pergunte, Ele responde imediatamente. Quando abandonei esta vida mundana, Deus tornou-se meu servo. É devido a minha paciência eu ter sido possuído por Deus.




Não vi nada e ainda assim vejo tudo. O 'eu' e o 'meu' foram removidos de mim. Eu tomei sem tomar, comi sem comer, falei sem falar. O que quer que tinha estado oculto foi trazido à luz.



Eu não pertenço a lugar nenhum; pertenço apenas a um lugar. Eu não saio e nem volto. Não há diferença para mim entre o meu e o seu. Não pertenço a ninguém. Não me é requerido nascer ou morrer. Eu sou como sou. Não há nem nome e nem forma para mim e estou além de ação e inação.



Gosto imensamente dessa Tua forma, meus olhos estão satisfeitos. Minha mente tendo mordido a isca da Tua visão, não a abandona de jeito algum.



É através de Teu suporte que me movo no caminho. Carregas todo meu fardo. Colocas significado em minhas palavras sem sentido. Levaste embora minha vergonha e colocaste coragem em mim. Tua mão está em minha cabeça e meu coração aos Teus pés. Assim fomos interligados corpo a corpo, ser a ser. O servir é meu e o favorecer é Teu.




O mundo todo se acendeu agora e a escuridão chegou ao fim. Não há espaço para me esconder.



O dia da verdade chegou e sua amplitude está além de medidas. Por amor a sua vida ele conquistou seu objetivo.




Deus brilha como um diamante colocado num círculo de ricas jóias. Sua luz é como a luz de um milhão de luas.



Minha visão saciou-se e recusa-se a retornar ao seu centro de atração.


É impossível descrever a graça da iluminação incessante.




És nossa gentil e afetuosa mãe, Ó Deus, e carregas todos os nossos fardos. Não conhecemos nenhum medo e nenhuma ansiedade.



Não posso distinguir a noite do dia, a iluminação incessante existe o tempo todo. Como poderei descrever a enorme bênção da qual desfruto? Usei os ornamentos de Teus nomes e através de Teu poder nada me está faltando.



Deus realmente me favoreceu. Minhas dúvidas e delírios chegaram ao fim. Deus e o Ser estão agora deitados no mesmo divã em mim mesmo. Tukaram agora dorme em sua própria forma e sinos místicos acalentam-no para dormir.



Entrei em sintonia com o Infinito. Tornei-me repleto de orgulho espiritual e não posso controlar meus membros. Outra voz fala através de mim, a felicidade e a tristeza perderam sua diferença. Quase não posso encontrar palavras para descrever a felicidade para essas pessoas. Elas podem pensar sobre isso e achar que é impossível. Tanto meu interior quanto meu exterior estão preenchidos de graça Divina.



Dei à luz a mim mesmo e saí de meu próprio útero. Todos os meus desejos chegaram ao fim e meu objetivo foi alcançado. Quando me tornei poderoso além da medida, morri nesse exato momento. Tuka olha para os dois lados e vê a si mesmo através de si mesmo.



Deus é o doador e Deus é quem desfruta. O que mais sobra para ser experimentado? Ou, como podemos colocar isso em palavras? Através dos olhos vejo minha própria forma. O mundo todo parece estar repleto de música Divina.



A profundeza chamou até o fundo e todas as coisas se esvaíram na unidade. As ondas e o oceano tornaram-se um. Nada pode vir e nada pode ir embora agora. O Ser está envolvendo a Si mesmo por todos os lados. O momento do Grande Fim chegou e a aurora e o crepúsculo terminaram.




Todos os homens tornaram-se agora Deus; e mérito e demérito desapareceram. Minha mente foi preenchida de imensa alegria.



Quando olhamos num espelho, mesmo que olhando para nós mesmos parece que estamos olhando para um objeto diferente. Quando um córrego deságua num rio ele se funde com o rio.



Meu país agora é o universo. Eu vivo no mundo todo. Não há ninguém entre eu e Deus, não há separação.


terça-feira, 15 de junho de 2010

Ramesh S. Balsekar - Entrando em Casa


Ramesh: Meu único ponto a respeito da maioria dos sadhanas (práticas espirituais) é que há um ego ciente o tempo todo - “eu” estou fazendo este sadhana, “eu” estou fazendo este esforço, “eu” tenho de receber uma recompensa. Então, depois de vinte anos o buscador honesto diz: “Eu tenho meditado por vinte anos e não consegui nada. Esse sadhana é inútil. Tenho de procurar outro sadhana. Tenho de ir para outro ashram. Tenho de encontrar outro Guru.”


Meu ponto é que a maioria dos sadhanas baseia-se num fazedor individual, o buscador, o ego fazendo algo com a expectativa de obter algo. Portanto, é pedido que você medite. Certamente. Mas enquanto houver um meditador esperando conseguir algo da meditação, essa meditação, segundo meu conceito, é inútil. A verdadeira meditação é quando, através graça de Deus e do destino do indivíduo, gradualmente o “meditador” desaparece na meditação de modo que no fim da meditação não sobra nenhum traço de algum ego fazendo meditação com expectativas. Então a meditação acontece de maneira totalmente diferente. De acordo com o meu conceito, só é meditação verdadeira aquela na qual não há meditador individual esperando conseguir algo dela.


Todo propósito desse sadhana que eu recomendo é se livrar do ego. Infelizmente, na maioria dos casos de sadhana de meditação, o meditador está convencido em pensar que “ele” conseguirá algo. E o ego é feito para esperar por algo. Essa é a parte lamentável.


Tim: Você disse que poderíamos fazer essa prática de analisar as ações, para descobrirmos que não podemos fazer. Você disse que ao fazermos isso o ego poderia ser enfraquecido.


Ramesh: É o ego que começa fazendo essa análise e durante esse processo o ego fica mais fraco.


Tim: Depois você disse que após algum tempo a questão é perguntada diretamente pela fonte.


Ramesh: A questão surge! Isso significa que o ego está tão fraco que ele não pode nem mesmo colocar essa questão. Pode ocorrer em certas práticas que o ego fique cada vez mas forte. Neste processo que eu sugiro, o ego, de acordo com meu conceito, ficará cada vez mais fraco conforme houver uma percepção cada vez maior, vinda da experiência pessoal, de que o ego não está fazendo nada – que o ego não pode fazer nada – o fazer acontece. Então, o ego fica cada vez mais fraco e por fim morre.


Gary: Tenho dificuldade quando você nos pede para analisar essas ações. O problema é que eu não confio mais nem no meu sentido intelectual nem no emocional, penso que eles não estão aptos a determinar isso. Eu observo minha mente ou meu sentimento e num determinado momento eu pareço sentir fortemente essa direção, e depois eu percebo que não, que meu sentimento na verdade era bem diferente. Tudo parece tão confuso dentro de mim! Não penso que é possível determinar se somos o fazedor das ações ou se não somos.


Ramesh: Gary, não estou dizendo para observar seu sentimento. Não estou dizendo para observar seus pensamentos. Tudo o que estou dizendo é que algumas ações acontecem durante o dia, não é?


Gary: Mas como posso determinar ...


Ramesh: É fácil. Tome uma ação simples. Você sai daqui e acaba indo a um restaurante desconhecido. No fim do dia, se você analisar como toda essa ação aconteceu, você vai descobrir que muitos pensamentos apareceram que você não teve controle. O que eram eles? “Estou com fome. Quero comer algo. Não tenho muito dinheiro comigo então preciso achar um restaurante limpo onde eu possa encontrar uma comida razoavelmente boa por um preço bom”. Então você pergunta para alguém: “Você conhece um lugar...” “Claro, logo ali na esquina”.


Então o que aconteceu? Houve uma série de pensamentos. O cérebro respondeu àqueles pensamentos de acordo com as circunstâncias sobre as quais você não teve controle – a fome apareceu, você gosta de comida limpa e boa devido ao seu condicionamento, você descobriu que tinha deixado quase todo seu dinheiro no seu quarto... Dessa maneira, o cérebro reagiu à situação existente e pediu as sugestões de alguém: “Há um lugar aqui onde eu possa ir?” Então, o quanto isso foi ação “sua” e o quanto foi uma cadeia de circunstâncias e o condicionamento que o levaram a ir ao restaurante? E você chega à conclusão: “Não foram 'minhas' ações. 'Eu' fiquei com fome e fui levado a um restaurante por algumas circunstâncias sobre as quais 'eu' não tive controle.”


Gary: Minha percepção é que isso muda com o tempo. É por isso que eu digo que não confio nos meus sentidos. Quando algo está ocorrendo ou vai ocorrer, parece a mim que tenho controle. Quando algo já ocorreu, parece que não tinha o controle. Não importa o que seja. Então é uma questão de tempo – como eu vejo isso através do tempo.


Ramesh: É por isso que eu digo, 'no final do dia...'


Gary: Então sempre parece que eu não tive controle.


Ramesh: Esse é precisamente meu ponto.


Gary: Mas se estou olhando para frente sempre parece que tenho controle.


Ramesh: Sim, 'sempre parece”. Você está cem por cento correto. “Sempre parece” que “você” tem controle.


Gary: Em ambos os casos “parece”.


Ramesh: Não. No final do dia quando você analisa, você chega à conclusão que você não teve nenhum controle. Um pensamento ocorreu ou você ouviu algo, uma sugestão, ou você viu algo. O cérebro reagiu ao que foi visto, escutado ou pensado. Você pode usar essa análise para qualquer ação e no final do dia você vai descobrir através de experiência pessoal que não foram “suas” ações.


Esse processo de analisar a ação, qualquer ação, para mim é o único sadhana ou prática que você precisa fazer. Esse é o meu conceito. Faça esse sadhana na medida que for possível para você fazer – e isso depende da vontade de Deus e do destino do organismo corpo-mente. Assim, na medida que for possível para você fazer esse sadhana, você chega à conclusão que nenhuma ação é “sua” ação. E se isso acontece dia após dia, em algum ponto – novamente, se for a vontade de Deus e o destino do organismo corpo-mente – a questão vai surgir das profundezas do seu ser: “Se o Gary não faz coisa alguma, quem é o Gary?” Como disse o Senhor Buda: “Não há fazedor disso.” Essa é a conclusão a que você chega por experiência pessoal – se Gary não faz coisa alguma, Quem é o Gary? Quem sou eu?


Essa é a questão do Ramana Maharshi, “quem sou eu?” É muito importante entender que não é o intelecto que questiona. Se o intelecto pergunta, então o intelecto traz a resposta. E a resposta que o intelecto fornece, o intelecto novamente questiona. Você fica indo em círculos.


Mas quando a questão surge da Fonte, se essa for a vontade da Fonte e o destino do organismo corpo-mente, então a resposta não vem do intelecto – a resposta vem da Fonte. Nunca existiu um Gary além de um nome dado a um organismo corpo-mente. Portanto nunca houve um fazedor. Gary, o ego, não existe. Se o Gary não existe, então o que existe? Apenas a Fonte. A Fonte é tudo o que há.


Gary, meu conceito básico é que cada ser humano é um instrumento programado ou um computador que a Fonte usa, e cada computador humano é único. Não há dois iguais devido ao DNA e ao condicionamento que cada um recebe e sobre os quais não há controle. Juntos, o DNA e o condicionamento são o que eu chamo de programação. E o que faz a Fonte para trazer uma ação que a Fonte deseja? Ela coloca um estímulo. O que é um estímulo? A fonte manda um pensamento para você, o cérebro reage àquele pensamento e traz uma resposta de acordo com a programação. O Gary diz que essa resposta é “sua” ação. Mas quando você analisa cada ação você chega à conclusão que nenhuma ação é “sua” ação.


Gary: Mas não estou convencido de que seja impossível para uma pessoa ganhar mais controle sobre si mesma.


Ramesh: Para “quem” ganhar mais controle?


Gary: Eu não sei.


Ramesh: Para quem? Esse é ponto fundamental. A questão é: Quem é Gary? A resposta é: Não há Gary!


Gary: Você diz que o ego não existe.


Ramesh: Sim.


Gary: O ego afeta o corpo, o corpo existe de um certo ponto de vista. Se o ego está preocupado e chateado a respeito do que ele vai fazer, o corpo pode ficar doente. Então, se o que existe é afetado por algo que não existe, isso é ilógico.


Ramesh: E é por isso que enquanto o ego estiver ali, ele pode afetar o copo e se preocupar a respeito do corpo estar doente, por exemplo.


Gary: Desse modo o ego existe.


Ramesh: O ego existe. Agora, você sai no sol, Gary. Há uma sombra. Existe uma sombra ou não existe sombra?


Gary: Os dois. Sim e não.


Ramesh: É isso! Portanto, o ego existe? Sim e não. É isso que você descobre. Se o ego não faz coisa alguma, o ego não existe. “Gary” existe porque o ego existe. Se o “Gary” não faz coisa alguma, o “Gary” não existe. Desse modo, a aniquilação do ego significa que não existe “Gary” para dizer: “Estou feliz agora. Estou infeliz agora.”


Felicidade e tristeza existem por causa do ego. Portanto, a total e final compreensão intuitiva no coração é que – não há ego – nunca houve um ego. A felicidade e a tristeza são meramente algo criado pelo ego. O ego na verdade nunca existe de fato, assim como uma sombra na realidade nunca existe – quando você entra em casa cadê a sombra? Dessa forma, com esse entendimento de que “Gary” nunca faz coisa alguma, você entra em casa!


Gary: Eu sinto esse ego, esse sentido de “mim” - quase como algo físico.


Ramesh: Ele é. Portanto o ego causa danos consideráveis. Por que Gary está infeliz? Porque o Gary pensa que o “Gary” existe. Por que ele pensa que o “Gary” existe? Porque ele pensa que realiza ações. Se o “Gary” não faz nada – quem é o Gary?


Gary: Mesmo que eu não possa fazer nada, me parece que eu existo.


Ramesh: Oh sim. Mas o que é Aquilo que existe sem fazer coisa alguma? A fonte, o “eu sou”, eu sou Aquele eu sou. Aquilo é o que existe quando Gary não é o fazedor. E quando você está no “eu sou” não há felicidade ou tristeza – o que significa paz.



Ramesh: Uma vez que realizarmos que o Ser, o “eu sou”, a Consciência – que é o que realmente somos – é o fazedor e a testemunha, veremos que não só não é necessário renunciar as nossas atividades diárias, mas que é desejável continuar nossa vida normal. Continuamos com a profunda compreensão de que nós (como objetos fenomenais) estamos “sendo vividos” na totalidade do funcionamento da manifestação. A suposta autoria das ações do “eu” não é nada além de uma ilusão. As atividades diárias normais, continuadas sem o senso de autoria das ações, são a melhor preparação possível para que a iluminação repentina aconteça .


Meister Eckhart colocou lindamente: “Tudo o que o ser humano pode fazer é admirar e maravilhar-se perante a magnificência da criação de Deus” - milhares e milhares de variedades de objetos, cada um com uma programação diferente. Em outras palavras o que ele diz é, a criação do Senhor é um mistério e tudo o que o objeto humano pode fazer é render-se ao mistério e não tentar resolvê-lo.