quarta-feira, 19 de agosto de 2009

Ibn Arabi - O contexto e a finalidade do caminho espiritual

Deus disse: "Nada se assemelha a Ele [e Ele é o Todo-Audição, o Todo-Visão]" (Alcorão. 42:11), assim Ele descreveu a Si mesmo com uma descrição que necessariamente pertence só a Ele, que é o dizer Dele: "E Ele está com você onde quer que você esteja "(Alc. 57:4). Portanto, Ele está conosco onde quer que estejamos, no estado da Sua "descida aos céus deste mundo, durante o último terço da noite ", no estado de Seu ser montado sobre o Trono (Alc. 5:20), no estado de Seu ser na "Nuvem", no estado de Seu ser na terra e no céu (Alc. 43:84, etc), no estado de Seu ser mais perto do homem do que sua veia jugular (Alc. 50:16) - e todas essas são qualificações com as quais apenas Ele pode ser descrito.
Assim, Deus não move um servo de um lugar para outro a fim de que o servo possa vê-Lo, mas sim "para que Ele possa fazer com que o servo veja os Seus sinais" (Alc. 41:53), os quais eram invisíveis para ele. Ele disse: "Glória para Aquele Que fez Seu servo viajar numa noite do local Sagrado de adoração para o próximo local de adoração, cujo recinto Nós abençoamos, para que pudéssemos fazer-lhe ver os Nossos Sinais!"(Alc. 17:1) E similarmente, quando Deus move algum servo através de seu estado espiritual interior, de modo também a fazer-lhe ver os Seus Sinais, Ele o move através de Seus estados... Deus diz: "Eu só fiz ele viajar pela noite, a fim de que ele visse os Sinais, e não para trazê-lo a Mim: porque nenhum lugar pode prender-Me e a relação de todos os lugares para mim é a mesma. Pois sou tal, que apenas 'o coração do Meu servo, o homem de fé verdadeira, engloba-Me,' então como ele poderia ser "levado a viajar a Mim", sendo que eu estou com ele onde quer que ele esteja?"(Alc. 57:4)

Quanto aos santos, eles têm jornadas espirituais no mundo intermediário, durante as quais eles diretamente testemunham as realidades espirituais (ma'ani) incorporadas nas formas que se tornaram sensíveis para a imaginação; essas imagens sensíveis transmitem o conhecimento das realidades espirituais contidas dentro dessas formas. E assim eles têm uma jornada espiritual na terra e no ar, sem jamais terem sensorialmente colocado os pés nos céus. Pois o que distinguiu o Mensageiro de Deus de todos os outros (dentre os santos), foi que o corpo dele foi levado a viajar, de modo que ele passou através dos céus e das esferas de uma forma perceptível aos sentidos e percorreu distâncias reais, possíveis de serem sentidas. Mas tudo aquilo dos céus também pertence aos seus herdeiros, apenas em sua realidade espiritual (ma'na), não na sua forma sensível.

Assim, para aquilo que está acima dos céus, vamos mencionar o que Deus fez-me testemunhar diretamente; em particular, a jornada das Pessoas de Deus. Pois suas jornadas são diferentes (na forma), porque são realidades espirituais incorporadas na imaginação, ao contrário da jornada sensível do Profeta. Deste modo as ascensões (ma'arij) dos santos são as ascensões de seus espíritos e a visão de seus corações, a visão de formas no mundo intermediário e das realidades espirituais incorporadas. Portanto, sempre que Deus quer viajar com o espírito de quem Ele deseja entre os herdeiros de Seus mensageiros e Seus santos, para que Ele possa fazer-lhes ver Seus Sinais (Kor. 17:1) - pois essa é uma jornada para aumentar o conhecimento deles e abrir os olhos de sua compreensão - as modalidades de suas jornadas são diferentes para diferentes pessoas: e dentre elas estão aquelas às quais Ele causa a viagem Nele mesmo.

Agora essa viagem em Deus envolve a "dissolução" da natureza múltipla deles. Através dessa jornada, Deus, em primeiro lugar familiariza-os com o que corresponde a eles em cada mundo (de ser), ao passar com eles através dos diferentes tipos de mundos, ambos os compostos e os simples. Então, o viajante espiritual deixa para trás em cada mundo aquela parte de si próprio correspondente àquele mundo: a forma de deixar isso para trás é que Deus envia uma barreira entre a pessoa e aquela parte dela mesma que ela deixou para trás naquele tipo de mundo, de modo que ela não tenha conhecimento dela. Mas ela ainda tem a consciência daquilo que continua com ela, até que finalmente permanece sozinha com o Mistério divino que é o "aspecto específico" que se estende de Deus para ela. Então, quando apenas ela permanece (sem nenhum daqueles outros apegos com o mundo), em seguida, Deus retira dela a barreira do véu e ela permanece com Deus, assim como todo o resto nela permaneceu com o mundo correspondente a si. Assim, por toda essa jornada o servo permanece Deus e não-Deus. E, uma vez que ele permanece Deus e não-Deus, Deus faz o servo viajar - em relação a Ele, e não no que diz respeito ao que não é Ele – dentro Dele, numa jornada espiritual sutil (ma'nawi) .

Então, quando o servo tornou-se consciente do que acabamos de explicar, de forma que ele fica sabendo que ele não é criado de acordo com a forma do mundo, mas apenas de acordo com a forma de Deus (al-Haqq), então Deus o faz viajar através de Seus Nomes, de forma a fazer que ele veja Seus Sinais (Kor. 17:1) dentro de si. Assim, o servo vem a saber que Ele é o que é designado por cada Nome divino – seja ou não aquele Nome um daqueles descritos como "bonito".
É através desses Nomes que Deus aparece em Seus servos e é através Deles que o servo assume as diferentes "colorações" de seus estados: pois Eles são Nomes em Deus, mas "colorações" da alma em nós. E são precisamente os "negócios" com os quais Deus está "ocupado": portanto é em nós e através de nós que Ele age, da mesma forma que nós apenas aparecemos Nele e através Dele.

Assim, quando Deus faz o santo (al-Wali) viajar através de Seus Nomes mais belos para os outros Nomes e finalmente todos os Nomes divinos, ele vem a conhecer as transformações de seus estados e os estados de todo o mundo. E ele sabe que essa transformação é o que faz os próprios Nomes estarem em nós, assim como sabemos que as transformações de nossos estados manifestam as influências específicas (ahkam) desses Nomes ... Por isso, não há nenhum nome que Deus tenha aplicado a Si mesmo que Ele não tenha aplicado também a nós: através de Seus Nomes sofremos as transformações em nossos estados, e com Eles somos transformados por Deus... Agora, quando o viajante espiritual completou a sua quota da jornada através dos Nomes e veio a conhecer os Sinais que os Nomes de Deus deram a ele durante essa jornada, então, ele volta e "reintegra" seu Ser com uma composição diferente da natureza composta inicial, devido ao conhecimento que ele adquiriu, o qual ele não possuía quando foi "dissolvido" (na fase ascendente dessa jornada). Assim, ele continua a passar através de diferentes tipos de mundos, pegando de cada mundo aquele aspecto de si mesmo que ele havia deixado lá e reintegrando-o no seu Ser, e ele continua a aparecer em cada fase sucessiva (de ser) até que chega de volta a terra.

Então, "ele desperta entre seu povo" (como o Profeta), e ninguém sabe o que veio a ocorrer com ele no seu Ser mais íntimo (sirr) até que ele fale de sua jornada. Mas então eles ouvem-no falar uma língua diferente daquela que estão habituados a reconhecer como a dele; e se um deles disser para ele: "O que é isso?", ele responde que "Deus fez-me viajar pela noite e, em seguida, fez-me ver aqueles Seus Sinais que Ele queria que eu visse." Então, os que estão ouvindo-o dizem a ele: "Você não saiu do meio de nós, então estava mentindo a respeito disso que está afirmando." E o jurista (Faqih) entre eles diz: "Este camarada está mentindo alegando ser profeta (nubuwwa), ou o intelecto dele tornou-se demente: portanto ou ele é um herege – nesse caso ele deveria ser executado - ou então ele é louco, e nesse caso não temos nada que falar com ele." Assim, "um grupo de pessoas zombam dele" (Kor. 49:11), outros "aprendem uma lição com ele" (Kor.59:2), enquanto outros têm fé no que ele diz, portanto, isso torna-se um tema de controvérsia no mundo. Mas o jurista (Faqih) não tinha conhecimento do verdadeiro significado de Sua fala: "Vamos mostrar-lhes Nossos Sinais nos horizontes e nas suas almas ... "(Kor. 41:53), uma vez que Deus não especifica um grupo em detrimento de qualquer outro.

Portanto, quem quer que Deus faça ver alguma coisa desses Sinais no caminho que acabamos de mencionar, deveria mencionar apenas o que ele viu, mas não deveria mencionar o caminho. Pois então as pessoas terão credibilidade nele e olharão para o que ele diz, uma vez que só irão negar o que ele diz se ele alegar a respeito da forma na qual ele adquiriu esse conhecimento. Agora você deve saber que na realidade, não há diferença em relação a essa jornada entre as pessoas ordinárias e a pessoa distinguida por esse caminho e essa característica. Isso é porque essa jornada espiritual serve para ver os Sinais divinos e as transformações dos estados das pessoas comuns são como todos os Sinais: elas estão nesses Sinais, mas "não notam" (Kor. 23:56, etc). Assim, esse tipo de viajante é apenas distinto do resto das criaturas (iguais a ele), aqueles que estão velados (Kor. 83:15), por aquilo que Deus inspirou no seu Ser mais íntimo, quer através do seu pensamento e inquirição com o seu intelecto, ou através de sua preparação, ao polir o espelho de sua alma, para o desvelamento desses Sinais a ele, por meio de desvelamento interior e testemunho imediato, uma experiência direta e "descoberta" extasiada.

Assim, as pessoas comuns (quando se opõem àqueles que falam dessa jornada espiritual) estão negando precisamente Aquilo dentro do Qual elas estão e através do Qual elas subsistem. Portanto, se o viajante não mencionou a forma com a qual ele obteve o conhecimento interior dessas coisas, ninguém negará ou disputará com ele. Pois todas as pessoas comuns - e eu não excluo nem uma única delas - estão "criando imagens para Deus"; elas sempre concordaram e colaboraram com isso, assim nenhuma delas critica o outro por fazê-lo. Deus diz: "Não faça imagens para Deus ... "(Alc. 16:74) – Ainda assim eles permanecem cegos para esse Sinal. Mas, como para os amigos de Deus (Alc. 10:64-66), que não fazem imagens para Deus. Pois Deus é o que faz imagens para o povo (Alc. 14:25, 24:35), por causa de Seu conhecimento das intenções subjacentes desses símbolos, uma vez que Deus sabe. Mas nós não sabemos ver (Alc. 16:74; 3:66; 2:216). Assim, o santo (aquele verdadeiramente "perto de Deus") observa a imagem que Deus fez e naquele testemunho imediato ele realmente vê precisamente o que conecta a imagem Àquilo Que ela simboliza: pois a imagem é justamente o que é simbolizado, no que diz respeito àquilo que os conecta, mas é diferente, na medida em que é uma imagem. Portanto, o santo "não faz imagens para Deus", em vez disso, ele realmente sabe o que Deus simbolizou com aquelas imagens.