terça-feira, 13 de outubro de 2009

Hazrat Inayat Khan - A linguagem cósmica - O ego

Quando pensamos nesse sentido de 'eu', esse sentimento, ou essa inclinação que nos faz afirmar a palavra 'eu', percebemos que é difícil apontar o que esse 'eu' é, qual é o seu caráter. Pois ele é algo que está além da compreensão humana. É por isso que uma pessoa que deseja explicar, mesmo que para si mesma, o que ela é, aponta para o que está mais perto de si e declara: "Esse é quem tenho chamado de 'eu'". Portanto cada alma que, por assim dizer, identificou-se com alguma coisa, identificou-se com o corpo, seu próprio corpo, pois é a coisa que a pessoa sente e percebe ser imediatamente mais próxima a ela, e a qual é inteligível com o próprio ser dela.
Então, a primeira coisa que uma pessoa reconhece como ela mesma é o seu corpo. Ela chama a si mesma de seu corpo, ela identifica a si mesma com seu corpo. Por exemplo, se alguém pergunta a uma criança: 'cadê o nenê?', ele irá apontar para seu corpo. É isso que ele pode ver ou imaginar de si mesmo.
Isso forma uma concepção na alma. A alma conhece isso profundamente, de maneira que após essa concepção todos os outros objetos, pessoas ou seres, cores ou linhas, são chamados por diferentes nomes e a alma não os concebe como sendo ela mesma, pois ela já tem uma concepção de si mesma: este corpo, que ela conheceu ou imaginou primeiramente ser ela mesma. Tudo o mais que ela vê, ela vê através de seu veículo que é o corpo, e chama algo próximo a ela, de algo separado e diferente.
Dessa maneira a dualidade na natureza é produzida. Disso surge o 'eu e você'. Mas como o 'eu' é a primeira concepção da alma, ela está totalmente preocupada com esse 'eu'; com todo o resto ela está apenas parcialmente preocupada. Todas as outras coisas que existem, à parte este corpo que ela reconheceu como seu próprio ser, são consideradas de acordo com sua relação com este corpo. Essa relação é estabelecida ao chamá-las 'meu' ou 'minha', aquilo que está entre 'eu' e 'você': 'Você é “meu” irmão', ou “minha” irmã, ou “meu” amigo'. Isso cria um relacionamento e de acordo com esse relacionamento o outro objeto ou pessoa permanece mais perto ou mais longe da alma.
Todas as outras experiências que a alma tem no mundo físico e nas esferas mentais tornam-se uma espécie de mundo ao redor dela. A alma vive no meio dele, ainda assim a alma em nenhum momento tem com coisa alguma o sentimento de que isso sou 'eu'. Esse 'eu' ela reservou e aprisionou numa única coisa: o corpo. Todas as outras coisas, a alma pensa que é algo mais, algo diferente: 'Está perto de mim, é querido a mim, está próximo a mim, porque está relacionado. É meu, mas não sou eu'. O 'eu' permanece como uma entidade separada, segurando, atraindo, coletando tudo que a pessoa obteve e que constitui seu próprio mundo.
Conforme tornamo-nos mais contemplativos na vida, também essa concepção de 'eu' enriquece. Torna-se mais rica desta maneira, fazendo com que a pessoa veja: 'Não é “meu” apenas o corpo, mas também são “meus” os pensamentos que tenho, a imaginação é “minha” imaginação, meus sentimentos também são parte do meu ser. Portanto, não sou apenas o meu corpo, sou minha mente também.'
No próximo passo que a alma dá no caminho em direção à realização, ela começa a sentir: 'Eu não sou apenas um corpo físico, mas também uma mente.' Essa realização em seu esplendor faz a pessoa declarar: 'Eu sou um espírito', que significa: corpo, mente e sentimento, todos juntos com os quais eu identifico a mim mesma – são esses que constituem o ego.
Quando a alma segue adiante no caminho do conhecimento ela começa a descobrir: 'Sim, há algo que sente a si mesmo, que sente a inclinação de chamar a si mesmo de “eu”'. Existe um sentimento de 'eu' (I'ness), mas ao mesmo tempo tudo aquilo com o que a alma se identifica não é ela mesma. No dia em que essa idéia brota no coração de um homem, ele iniciou sua jornada no caminho da verdade. Então a análise começa e ele começa a descobrir: 'Quando esta é “minha” mesa e esta “minha” cadeira, tudo o que posso chamar de meu pertence a mim, mas não sou eu realmente'. Então ele também começa a ver: 'Eu me identifico com este corpo, mas este é o “meu” corpo, assim como digo “minha” mesa, ou “minha” cadeira, portanto o ser que está dizendo “eu” na realidade está separado. Ele é algo que pegou até mesmo este corpo para seu uso; este corpo é apenas um instrumento'. E ele pensa: 'Se não é este corpo que eu posso chamar de “eu”, então o que mais posso chamar? É com a minha imaginação que eu deveria me identificar?' Mas até mesmo isso a pessoa chama de 'minha' imaginação, 'meu' pensamento ou 'meu' sentimento. Portanto, mesmo o pensamento, a imaginação, ou o sentimento não são o 'Eu' real. O que afirma 'eu' permanece o mesmo, mesmo após ter descoberto a falsa identidade.
Lemos no décimo pensamento Sufi que a perfeição é alcançada através da aniquilação do ego. O falso ego é aquilo que não pertence ao ego real e aquilo que esse ego erroneamente concebeu ser o seu próprio ser. Quando isso é separado ao analisarmos a vida melhor, então o falso ego é aniquilado. A pessoa não precisa morrer para isso. De modo a aniquilar este corpo, aniquilar esta mente, uma pessoa tem de analisar a si mesma e ver: 'Aonde fica o “eu”? Ele fica como um ser remoto, exclusivo? Se ele é um ser remoto e exclusivo então ele deve ser encontrado'. Todo o processo espiritual consiste em encontrá-lo.
Uma vez que isso é realizado, o trabalho do caminho espiritual está feito. Da mesma maneira que para que os olhos vejam a si mesmos é necessário fazer um espelho para vermos o reflexo dos olhos, também para fazer esse ser real manifestar-se, este corpo e mente foram feitos como um espelho: para que nesse espelho esse ser real possa ver a si mesmo e realizar seu ser independente. O que temos de alcançar através do caminho da iniciação, através do caminho da meditação, através do conhecimento espiritual é dar-se conta ao nos tornarmos um espelho perfeito.
Para explicar essa idéia os faquires e dervixes contaram uma história. Um leão vagando pelo deserto encontrou um filhote de leão brincando com as ovelhas. Aconteceu que aquele leãozinho havia sido criado com as ovelhas e assim nunca teve a chance ou a oportunidade de dar-se conta do que ele era. O leão ficou muito surpreso ao ver o jovem leãozinho fugindo com o mesmo medo dele que as ovelhas. Ele pulou entre o rebanho das ovelhas e rugiu: 'Pare, pare', mas as ovelhas correram e o leãozinho também. O leão perseguia apenas o leãozinho, não as ovelhas, e disse: 'Espere, quero falar com você'. O filhote respondeu: 'eu tremo, tenho pavor, não posso ficar diante de você'. 'Por que você está fugindo por aí com as ovelhas? Você é um pequeno leão!' 'Não, sou uma ovelha. Eu tremo, e tenho pavor de você. Deixe-me ir. Deixe-me ir com as ovelhas!' 'Venha comigo', disse o leão, 'venha comigo'. 'Vou te levar e te mostrar o que você é antes de deixar você ir'. Tremendo e ainda indefeso, o leãozinho seguiu o leão para um espelho d'água. Lá o leão disse: 'Olhe para mim, e olhe para você. Não somos próximos, não somos parecidos? Você não é como as ovelhas, você é como eu'.
Por todo o processo espiritual o que aprendemos é a desiludir esse falso ego. A aniquilação desse falso ego é a sua desilusão. Uma vez que ele é tirado dessa ilusão, então o verdadeiro ego realiza seu próprio mérito. É nessa realização que a alma entra no reino de Deus. É nessa realização que a alma é nascida novamente, um nascimento que abre as portas do céu.

Pergunta: O verdadeiro Ser tem que ter mente e corpo para poder estar consciente de si mesmo?
Inayat: O verdadeiro Ser não precisa ter mente e corpo para sua existência. Ele não depende da mente e do corpo para sua existência, para sua vida, assim como os olhos não precisam do espelho para existirem. Eles apenas dependem do espelho para verem seu reflexo. Sem ele os olhos veriam todas as coisas, mas nunca veriam a si mesmos.
Outro exemplo é a inteligência. A inteligência não pode conhecer a si mesma a menos que ela tenha algo inteligível para segurar; então a inteligência dá-se conta de si mesma. Uma pessoa com um dom poético que nasceu um poeta, jamais realiza a si mesmo como sendo poeta até que coloque sua idéia no papel, e que seu verso faça ressoar um acorde em seu próprio coração. Quando ele está apto a apreciar sua poesia, é que então ele pensa: 'eu sou um poeta'. Até então, havia um dom da poesia nele, mas ele não o conhecia.
Os olhos não se tornam mais poderosos ao olhar no espelho. Apenas os olhos sabem como eles são quando vêem seu reflexo. O prazer está em dar-se conta de nossos méritos, nossos dons, do que possuímos. É em dar-se conta que está o mérito. Sem dúvida seria uma grande pena se os olhos pensassem: 'Estamos tão mortos quanto este espelho', ou se ao olhar no espelho eles pensassem: 'nós não existimos exceto no espelho'. Portanto, o falso ser é a maior limitação.
Pergunta: Nosso Murshid (mestre) não é nosso espelho?
Inayat: Não. O Murshid fica no lugar do leão da fábula. Mas o espelho d'água é necessário.
Pergunta: Embora a alma sinta ser diferente dos outros corpos, ela não se sente uma com Deus?
Inayat: Nem mesmo com Deus. Como poderia? Como pode uma alma que está presa na falsa concepção, que não pode ver uma barreira levantada entre ela mesma e seu próximo, levantar a barreira para Deus, o Qual ela ainda não conheceu? Pois toda a crença da alma em Deus, afinal, é uma concepção – porque foi ensinada por um padre, porque está escrito numa escritura, porque os pais disseram que existe um Deus, mas ela está sempre sujeita a mudar sua crença, e infelizmente quanto mais ela avança intelectualmente, mais distante ela fica daquela crença. Uma crença que uma inteligência pura não possa manter sempre não irá longe com a pessoa. É através da compreensão dessa crença que o propósito da vida é cumprido. É dito no Gayan: 'O descobrimento da alma é o descobrimento de Deus'.
Pergunta: Como o Ser real recusa o corpo e a mente na morte?
Inayat: Não é fácil para o Ser real recusar a mente e o corpo, quando uma pessoa não pode recusar durante a vida seus pensamentos de depressão, tristeza e desapontamento. As impressões das felicidades e das tristezas no passado que a pessoa mantém em seu coração: preconceito e ódio, amor e devoção, tudo o que tenha ido fundo nela mesma. Se esse é o caso, nem mesmo a morte pode levá-las embora. Se o ego mantém sua prisão em torno de si, ele leva essa prisão com ele, e existe apenas uma maneira de ele ser livrado disso, e é através do autoconhecimento.
Pergnta: A pessoa identifica-se com seu corpo mental imediatamente após a morte, ou ainda identifica-se com o corpo morto?
Inayat: O corpo mental é assim como o corpo morto. Não há diferença, pois um é construído no reflexo do outro. Por exemplo, a pessoa não se vê diferente no sonho quando a mente está numa condição normal. Se a mente está anormal a pessoa pode ver-se como uma vaca, ou um cavalo, ou qualquer coisa. Mas se a mente está normal a pessoa não pode se ver diferente daquilo que conhece como sendo ela. Portanto, o ser mental é aquele mesmo que a pessoa vê no sonho. No sonho a pessoa não vê a perda do corpo físico. Ela está correndo, comendo ou apreciando no sonho; não percebe a ausência do corpo físico. É a mesma coisa após a morte. A outra vida não depende de um corpo físico para ser experimentada totalmente. A esfera em si é perfeita e a vida é experimentada perfeitamente.
Pergunta: O ego é destruído completamente pela aniquilação?
Inayat: O ego em si nunca é destruído. Ele é a única coisa que vive, e esse é o sinal da vida eterna. No conhecimento do ego está o segredo da imortalidade. Quando é dito no Gayan: 'A morte morre, e a vida vive', é o ego que é a vida, e é a sua falsa concepção que é a morte. O falso deve se esvair algum dia; o real deve ser sempre. Assim é com a vida: o verdadeiro ser vivo é o ego, ele vive. Todo o resto que ele emprestou para seu uso dos diferentes planos e esferas, dentro dos quais ele se perdeu, tudo isso é colocado de lado. Não vemos isso com nosso próprio corpo? Coisas que não pertencem ao corpo não permanecem nele, no sangue, nas veias, em qualquer parte. O corpo não irá mantê-las, irá repeli-las. Da mesma forma acontece em toda esfera. Ela não pega o que não pertence a ela. Tudo o que é de fora ela mantém fora. O que pertence a terra é mantido na terra, a alma repele isso. Destruição do ego é a maneira de colocar em palavras, na verdade não é destruir, é descobrir.
Frequentemente as pessoas ficam assustadas ao lerem livros Budistas, quando a interpretação do Nirvana é dada como aniquilação. Ninguém quer ser aniquilado e as pessoas ficam muito assustadas quando lêem 'aniquilação'. Mas é só uma questão de palavras. A mesma palavra em Sanskrito é uma linda palavra: mukti. Os Sufis chamam-na de fana. Se traduzirmos para o inglês é aniquilação, mas quando entendemos seu significado real, quer dizer 'passar' ou 'atravessar'. Atravessar o quê? Atravessar a falsa concepção, que é uma primeira necessidade, e chegar à Verdadeira Realização.