sábado, 20 de março de 2010

G. I. Gurdjieff - Nova York, fevereiro de 1924

O homem, tal como o conhecemos, é uma máquina. Essa idéia da mecanicidade do homem deve ser muito bem compreendida e bem representada a si mesmo, a fim descobrir todo o seu significado e todas as conseqüências e os resultados dela decorrentes.
Primeiro de tudo, cada um deveria compreender a sua própria mecanicidade. Mas essa compreensão só pode vir como resultado de uma auto-observação corretamente conduzida. A observação de si, não é uma coisa tão simples como pode parecer à primeira vista. É por isso que este ensinamento considera fundamental o estudo dos princípios de uma auto-observação correta. Mas antes de passar para o estudo desses princípios, um homem deve tomar a decisão de ser absolutamente sincero consigo mesmo: não vai fechar os olhos para coisa nenhuma, não se desviará de nenhuma constatação que ela possa levá-lo, não recuará diante de nenhuma conclusão, e não deixará deter-se por nenhum muro de restrição já existente. Quem não tem o hábito de pensar desse modo, necessitará de muita coragem para aceitar sinceramente os resultados e conclusões que chegará. Isso transtorna toda a maneira de pensar do homem e o despoja de suas ilusões mais agradáveis e mais caras. Ele vê, antes de tudo, a sua total impotência e desamparo, literalmente, diante de todas as coisa que o cercam. Tudo o possui, tudo o domina. Ele não possui nem domina nada. As coisas o atraem ou o repelem. Toda a sua vida nada mais é que uma submissão cega às suas atrações e repulsões. Além disso, se ele não tiver medo das conclusões, verá como se constituíram aquilo que ele chama de seu caráter, seus gostos e hábitos, ou seja, como se formaram sua personalidade e individualidade.
Contudo, a observação de si, ainda que conduzida séria e sinceramente, não poderia, por si só, apresentar a ele um quadro absolutamente verídico de seu mecanismo interior.
O ensinamento que está sendo exposto aqui dá os princípios gerais da construção do mecanismo, e com a ajuda da observação de si, o homem pode verificá-los. A primeira exigência deste ensinamento é que nada deve ser aceito sem verificação. O esquema de construção da máquina humana deve servir apenas como um plano para a seu próprio trabalho, que continua sendo o seu centro de gravidade.
De acordo com esse esquema, o homem nasce com um mecanismo adaptado para receber muitos tipos de impressões. A percepção de algumas dessas impressões começa antes do nascimento. Depois, durante o crescimento, outros aparelhos receptores, cada vez mais numerosos, surgem e se aperfeiçoam.
A estrutura desses aparelhos receptores é o mesma em todas as partes do organismo. Ela lembra os rolos de cera virgem onde são feitas as gravações num fonógrafo. Desde o primeiro dia de vida, e até mesmo antes, todas as impressões recebidas são gravadas nesses rolos e bobinas. Além disso, o mecanismo tem um dispositivo automático graças ao qual todas as impressões recém-recebidas se conectam com as impressões semelhantes anteriormente registradas. Ao mesmo tempo, um registro cronológico é mantido.
Assim, cada impressão recebida está inscrita em diversos lugares sobre vários rolos. E ela se conserva intacta nesses rolos. O que chamamos de memória é uma adaptação muito imperfeita por meio da qual só podemos dispor apenas de uma pequena parte da nossa reserva de impressões. Mas uma vez experimentadas, as impressões nunca mais desaparecem; são preservadas nos rolos onde estão escritas.
Muitas experiências com hipnose foram feitas, que estabeleceram com exemplos incontestáveis, que o homem se lembra de tudo que ele já experimentou, até dos mínimos pormenores. Ele se lembra de todos os detalhes de seu entorno, até mesmo dos rostos e das vozes das pessoas em volta dele durante a sua infância, quando ele parecia ser um ser totalmente inconsciente.
É possível através da hipnose fazer todos esses rolos funcionarem, até mesmo os que estão esterrados nas profundezas do mecanismo.
Mas pode acontecer que esses rolos comecem a desenrolar por si mesmos após algum choque visível ou oculto, e cenas, imagens ou rostos, aparentemente esquecidos há muito tempo, de repente, vêm à tona.
Toda a vida psíquica do homem não é senão um desdobramento, aos olhos da mente, desses rolos com os seus registros de impressões. Todas as particularidades de concepção do mundo, todos os traços característicos da individualidade de um homem, dependem da ordem em que esses registros foram feitos e da qualidade dos rolos existentes nele.
Vamos supor que uma impressão foi recebida e gravada ao mesmo tempo que outra que não tenha nada em comum com ela; por exemplo, um homem ouve uma ária de dança muito alegre, no momento de um choque psicológico intenso: angústia ou tristeza. Então esta música irá sempre evocar nele a mesma emoção negativa e, correspondentemente, o sentimento de angústia vai lembrar-lhe daquela mesma ária.
É o que a ciência chama de associações de pensamento e de sentimento. Mas a ciência não percebe o quanto o homem é limitado por essas associações e como ele não pode libertar-se delas. A concepção de mundo para o homem é completamente definida pela natureza e quantidade dessas associações.
Vemos agora, até certo ponto, porque os homens não podem entender uns aos outros quando falam sobre o homem. Para falar sobre o homem com o mínimo de seriedade, é necessário saber muito sobre ele, caso contrário, a concepção de homem torna-se demasiadamente vaga e confusa. Somente quando conhecemos os primeiros princípios do mecanismo humano que podemos indicar de que aspectos e qualidades estamos aqui falando.