domingo, 11 de agosto de 2013

Bernard de Clairvaux - Sobre o Cântico dos cânticos


As várias formas de ver Deus
 
"Diga-me, amado de minha alma, onde levas seu rebanho pastar, onde o faz descansar ao meio-dia?" (Cânt.1:7) A Palavra, a qual é o Noivo, muitas vezes se faz conhecido sob mais de uma forma para aqueles que são fervorosos. Por que isso? Sem dúvida, porque Ele não pode ser visto ainda como Ele é. Essa visão é imutável, pois a forma na qual Ele será então visto é imutável; pois ele é e não pode sofrer nenhuma mudança determinada pelo presente, passado ou futuro. Elimine o passado e o futuro, onde então pode haver alteração ou qualquer sombra de mudança? Pois tudo o que evolui do passado e não cessa de se mover na direção do desenvolvimento futuro atravessa o instante que é o presente, mas não se pode dizer: isso é. Como podemos dizer: isso é, quando isso nunca permanece no mesmo estado?
Só é verdadeiramente aquilo que não é alterado de seu modo passado de ser, nem destruído por um modo futuro. "É", é predicado Dele apenas, inexpugnável  e imutavelmente e Ele continua a ser o que é. Nenhuma referência ao passado pode negar que Ele é desde toda a eternidade, nem qualquer referência ao futuro que Ele é para toda a eternidade. Dessa forma, isso prova que Ele realmente é, ou seja, é não-criado, interminável, imutável. Portanto, quando Aquele que existe dessa forma – o qual não pode ser ora de uma jeito ora de outro – é visto apenas como Ele é, essa visão perdura, como eu disse, uma vez que nenhuma alteração pode interrompe-la. Este é o momento quando aquele denário mencionado no evangelho é dado na visão que é oferecida a todos que vêem. Pois Aquele que é visto é imutável em Si mesmo, Ele está presente imutavelmente a todos que contemplam-No; para eles não existe nada mais desejável a ser visto, nada mais sedutor que pudessem ver.
Pode, então, seu apetite voraz se cansar, ou aquela doçura afastar-se, ou essa verdade provar ser enganosa ou essa eternidade chegar ao fim? E se a capacidade e a vontade de contemplar forem prolongadas eternamente, o que estará faltando para a felicidade total? Aqueles que O contemplam sem cessar não carecem de nada, aqueles cuja vontade está fixada Nele não têm mais nada a desejar.
Mas essa visão não é para a vida presente; está reservada para a próxima, pelo menos para aqueles que podem dizer: "Sabemos que quando Ele se manifestar seremos semelhantes a Ele, porque o veremos como Ele é." (1 João 3:2-3). Mesmo agora Ele aparece a quem lhe apraz, mas como Lhe agrada, não como Ele é. Nem sábio nem Santo nem profeta pode ou poderia vê-Lo como Ele é, enquanto ainda está neste corpo mortal. Mas sim quem for considerado digno será capaz de fazê-lo quando o corpo tornar-se imortal. Portanto, embora Ele seja visto aqui abaixo, é na forma que parece boa para Ele, não como Ele é.
Por exemplo, considere esta poderosa fonte de luz, falo deste sol que você vê todos os dias; mesmo assim você não o vê como ele é, mas de acordo como ele ilumina o ar, ou uma montanha ou uma parede. Você não seria capaz de ver nem mesmo nessa medida, se a luz de seu corpo, o olho, devido à sua natural firmeza e clareza, não tivesse algum grau de semelhança com essa luz nos céus. Sendo que todos os outros membros do corpo carecem dessa semelhança, eles são incapazes de ver a luz. Até mesmo o olho em si, quando sofre de alguma perturbação, não pode aproximar-se da luz por ter perdido essa semelhança.
Assim como o olho com problemas não pode olhar o sol sereno por causa de sua falta de semelhança, o olho sadio pode contemplá-lo com alguma eficácia por causa de uma certa semelhança. Se de fato fosse totalmente igual a ele em pureza, com uma visão completamente clara ele o veria como ele é, por causa da semelhança completa.
E assim, quando você é iluminado, até mesmo agora pode ver o Sol da Justiça que "ilumina todo homem que vem a este mundo," de acordo com o grau de luz  que Ele concede, através do qual você é tornado numa certa medida como Ele; mas vê-Lo como Ele é você não pode, por ainda não ser perfeitamente como Ele. É por isso que o salmista diz: "Contemplai-o e sereis iluminado, vosso rosto nunca ficará envergonhado."(Sal. 34-5) Isso é muito verdadeiro, desde que sejamos iluminados como precisamos, para que "com nossa face desvelada, contemplemos como num espelho a glória do Senhor, sendo transfigurados nessa mesma imagem, cada vez mais resplandecente, pela ação do Senhor, que é Espírito." (2 Cor. 3-18). Observe que devemos nos aproximar suavemente e não nos intrometer com Ele, para que o buscador irreverente da Majestade não seja arrebatado pela Glória.
Esta abordagem não é um movimento de lugar para lugar, mas de brilho para brilho, não no corpo, mas no espírito pelo Espírito do Senhor. Evidentemente pelo Espírito do Senhor, não pelo nosso, embora no nosso. Quanto mais brilhante nos tornamos, mais próximo é o fim; e, ser absolutamente claro e brilhante significa ter chegado. Para aqueles que assim chegaram à Sua presença, vê-Lo como Ele é significa ser como Ele é e não ser colocado sob vergonha por qualquer forma falta de semelhança. Mas, como eu já disse, isso é para a próxima vida. Enquanto isso, esta imensa variedade de formas, estas inúmeras espécies de criaturas, o que são senão raios emanando da Divindade, mostrando Aquele de quem elas vêm realmente é, mas não explicando totalmente o que Ele é. Portanto, o que você vê é o que emana Dele, não Ele mesmo. No entanto, embora não veja Ele mesmo, mas o que vem Dele, você é cientificado além de toda dúvida de que Ele existe e que Você deve procurá-Lo. A Graça não vai ser insuficiente para o buscador, nem a ignorância vai desculpar o negligente. Todos têm acesso a esse tipo de visão. De acordo com o apóstolo Paulo, é comum a todos que utilizam a razão: "os atributos invisíveis de Deus tem sido claramente percebidos nas coisas que foram feitas".
Outro tipo de visão é aquela através da qual em épocas passadas os Patriarcas muitas vezes eram graciosamente admitidos na doce comunhão com Deus, que tornava-se presente a eles, embora eles não o vissem como Ele é, mas apenas na forma que Ele achava apropriada assumir. E Ele também não aparece para todos de maneira parecida, mas como diz o Apóstolo: "em muitas e diferentes maneiras," ainda permanecendo um em Si mesmo, de acordo com a Sua palavra a Israel: "O Senhor teu Deus é um Deus." Essa manifestação, embora não aparente para todos, realizou-se exteriormente e consistiu de imagens ou palavra falada.                           
Mas há uma outra forma de contemplação divina, muito diferente da anterior, porque ela ocorre no interior, quando o próprio Deus agrada-se em visitar a alma que busca por Ele, desde que ela esteja comprometida em buscá-lo com todo o seu desejo e amor. É dito qual é o sinal de tal visita por uma pessoa que a experimentou: "O fogo avança à sua frente devorando seus adversários ao redor." (Sal. 97-3). O fogo do desejo santo deve preceder o Seu advento a cada alma que Ele visitará, para queimar a ferrugem dos maus hábitos e então preparar um lugar para o Senhor. A alma saberá que o Senhor está perto, quando perceber-se estar inflamada com esse fogo e puder dizer como fez o Profeta: "Ele enviou um fogo do alto até os meus ossos e me iluminou;" e outra vez: "meu coração se tornou quente dentro de mim e o fogo de minha meditação irrompeu."
Quando o Amado que é dessa forma procurado faz uma visita em seu amor misericordioso a alma que está cheia de anseio, que reza frequentemente, até mesmo sem pausa, que humilha-se no ardor de seu desejo, aquela alma apropriadamente pode dizer como São Jeremias: "Tu és bom, Senhor, para aqueles que esperam em Ti, para a alma que Vos procura." E aquele anjo da alma, um dos amigos do Noivo e por ele comissionado para ser o ministro e testemunha dessa troca secreta e mútua - aquele anjo, digo, deve estar dançando de alegria! Não participa ele de sua alegria e felicidade e virando-se para o Senhor dizendo: "Eu Vos agradeço, Senhor da Majestade, porque 'Você concedeu-lhe o desejo do seu coração, não negou-lhe o que seus lábios suplicaram"? Ele é em todos lugares o atendente incansável da alma, nunca deixando de atraí-la e orientá-la com inspirações constantes, conforme sussurra: "põe tua alegria no Senhor e Ele realizará o desejo do teu coração;" e outra vez: "Espera o Senhor e guarda o Seu caminho." Ou: "Se ele parece lento, espere-o; Ele certamente virá, Ele não tardará". Voltando-se para o Senhor, ele diz: "como um cervo anseia por águas correntes, assim minha alma brame por Ti, Ó Deus.'(sal. 42-2) Ela tem ansiado por Ti no meio da noite e seu Espírito dentro dela olhou para Ti da manhã em diante." E novamente: "o dia todo esta alma vai na Tua direção; conceda o que ela deseja, pois ela está gritando atrás de você; ceda um pouco e mostre Sua misericórdia. Olhe para baixo do céu e visite este espírito desolado." Este padrinho leal, sem inveja, observando esse intercâmbio de amor, busca a glória do Senhor ao invés de sua própria; Ele é o elo entre o amante e seu Amado, tornando conhecidos os desejos de um, transportando os presentes do outro. Ele estimula a afeição da alma, ele concilia o Noivo. Às vezes também, embora raramente, leva-os à presença um do outro, levando-a até Ele ou trazendo-O até ela: pois ele é um membro da família, uma figura familiar no palácio, alguém que não tem medo de ser rejeitado, que diariamente vê o rosto do Pai.                                                                  
Tenha cuidado, contudo, de não concluir que vemos uma coisa corpórea ou perceptível aos sentidos nessa união entre a Palavra e a alma. Minha opinião é a mesma que a do Apóstolo que disse: "aquele que está unido ao Senhor torna-se um espírito com Ele." Eu tento expressar com as palavras mais apropriadas que consigo reunir a ascensão extática da mente purificada para Deus e a descida amorosa de Deus sobre a alma, entregando as verdades espirituais aos homens espirituais. Portanto, que essa União seja no espírito, porque "Deus é um espírito", que amorosamente é atraído pela beleza daquela alma que Ele percebe ser guiada pelo espírito e que é desprovida de qualquer desejo de submeter-se aos ditames da carne, especialmente se Ele vê que ela arde de amor por Ele.                
Aquele que possui tal disposição e é assim amado não ficará de forma alguma contente com essa manifestação do Noivo dada a muitos no mundo das criaturas, ou a poucos em visões e sonhos. Por um privilégio especial ela quer recebê-lo do céu no lugar mais íntimo do seu coração, em seu mais profundo amor. Ela quer ter de presente para si Aquele que ela deseja, não em forma corporal, mas através de uma infusão interna; não ao aparecer externamente, mas esperando-a internamente. É inquestionável que a visão é mais maravilhosa quanto mais interna ela é e não externa. É a Palavra, que penetra sem som que é eficaz embora não se pronuncie, que ganha os afetos sem soar aos ouvidos. Sua face, embora sem forma, é a fonte da forma. Ela não deslumbra os olhos do corpo, mas alegra o coração vigilante; seu prazer está no dom do amor e não na cor do amante.
Eu ainda não cheguei a dizer que Ele apareceu como Ele é, embora nessa visão interna Ele não se revele totalmente diferente do que Ele é. E também Ele não faz com que Sua presença seja continuamente sentida, nem mesmo para os Seus mais fervorosos amantes e nem da mesma forma para todos. Para os vários desejos da alma é essencial que o gosto da presença de Deus seja variado também; e que o sabor infundido do deleite divino deve excitar de múltiplas maneiras o paladar da alma que O busca. Você já deve ter notado quantas vezes Ele muda seu semblante no decurso deste Seu cântico de amor, como Ele se deleita em transformar-se de um disfarce encantador para outro na presença da amada: em um momento como um Noivo tímido arrumando meios para conseguir de maneira oculta os abraços de Sua amante sagrada, a bem-aventurança dos seus beijos; num outro momento vindo como um médico com óleo e pomadas, porque as almas fracas e tenras ainda precisam de remédios e medicamentos desse tipo, que é motivo delas serem chamadas delicadamente de donzelas.
Ninguém deve achar isso uma falha, saibam que "não é o saudável quem precisa do médico, mas os doentes." Às vezes, também, Ele junta-se com a noiva e as donzelas que acompanham-na como um viajante na estrada e clareia as dificuldades da viagem para todos com Sua conversa fascinante, de modo que quando Ele parte elas perguntam: "Não estavam nossos corações queimando dentro de nós conforme ele falava conosco na estrada?" Um companheiro persuasivo que pelo feitiço de suas palavras e boas maneiras convence a todos a segui-lo, como que numa nuvem de doce fragrância vinda das pomadas. Portanto, elas dizem: "Vamos correr atrás do aroma de suas pomadas."
Em outro momento Ele vem encontrá-las como um rico pai de família "com pão suficiente e de sobra" em sua casa; ou novamente como um rei poderoso e magnífico, dando coragem a Sua noiva pobre e tímida, aguçando o seu desejo ao mostrar para ela os ornamentos de Sua glória, as riquezas de Suas prensas de vinho e armazém, os produtos de Seus jardins e campos e, finalmente, apresentando a ela Seus apartamentos particulares. Pois "o coração do seu marido tem confiança nela", e dentre todos os Seus bens não há nada que Ele ache que deva ser oculto dessa a quem Ele redimiu da indigência, cuja fidelidade Ele comprovou, cuja atratividade ganha Seus abraços. Assim, Ele nunca cessa, de uma maneira ou de outra, de revelar-Se aos olhos interiores daqueles que O buscam, cumprindo assim a promessa que Ele fez: "tenha certeza de que estou sempre com você, até o fim dos tempos.”
Em todas essas ocasiões Ele é simpático e gentil, cheio de amor misericordioso. Em Seus beijos Ele mostra que é amoroso e encantador; com o óleo e as pomadas mostra que é infinitamente atencioso, compassivo e misericordioso; na viagem Ele é alegre, cortês, sempre gracioso e pronto para ajudar; na exibição de Suas riquezas e posses, Ele revela uma liberalidade real, uma generosidade beneficente na outorga de recompensas. Através de todo o contexto desse cântico você encontrará imagens dessa natureza para delinear a Palavra. Portanto, sinto que o Profeta estava pensando nessas linhas quando disse: "Cristo, o Senhor, é um espírito diante de nossa face; sob sua sombra viveremos entre as nações," porque agora vemos em espelho obscuramente e ainda não face a face.
Assim será enquanto vivermos entre as nações; entre os anjos será diferente. Pois então deveremos apreciar a mesma felicidade que eles; até mesmo O veremos como Ele é, sob a forma de Deus, não mais na sombra. Assim como dizemos que os nossos antepassados possuíam apenas sombras e imagens, enquanto que a verdade propriamente dita brilha em nós pela graça de Cristo presente na carne, também ninguém negará que em relação ao mundo vindouro nós ainda vivemos na sombra da verdade, a menos que Ele deseje negar o que afirma o Apóstolo: "o nosso conhecimento é imperfeito e nossa profecia é imperfeita;" ou quando ele diz: "não acredito que eu tenha conseguido me apossar disso ainda". Por que não haveria uma distinção entre aquele que caminha pela fé e aquele que caminha pela visão? Portanto, se o homem justo vive pela fé, o abençoado alegra-se na visão; a pessoa santa aqui abaixo vive na sombra de Cristo, o santo anjo acima é glorificado no esplendor de Sua face brilhante.                               
É uma bênção que a fé esteja relacionada com a sombra, ela tempera a luz para a fraqueza dos olhos e prepara os olhos para a luz; Pois está escrito: "Eles limparam seus corações através da fé." A fé, portanto, não extingui a luz, mas protege-a. O que quer que seja que o anjo vê, isso é preservado para mim pela sombra da fé, armazenado em seu seio fiel, até que seja revelado no seu devido tempo. Se você ainda não pode compreender a verdade nua e crua, não vale a pena possuí-la envolta num véu? A própria mãe do nosso Senhor viveu à sombra da fé, pois lhe foi dito: "Bem-aventurados aquele que acreditaram." Até mesmo o corpo de Cristo era uma sombra para ela, como está implícito nas palavras: "o poder do Altíssimo te cobrirá com sua sombra."                       
Aquilo que é formado pelo poder do Altíssimo de maneira nenhuma é sombra. Certamente havia poder na carne de Cristo que ofuscou a Virgem, uma vez que por meio do invólucro de Seu corpo vivificante ela foi capaz de suportar sua presença majestosa e suportar a luz inacessível, uma coisa impossível para a mulher mortal. Esse era o poder, de fato, pelo qual todas as forças opostas foram superadas. Tanto o poder quanto a sombra mandaram os demônios para longe e tornaram-se um abrigo para os homens: um poder revigorante com certeza, uma sombra irradiando frescor.
Nós, portanto, que caminhamos pela fé vivemos na sombra de Cristo; somos alimentados com sua carne como a fonte de nossa vida. Pois a carne de Cristo é a comida verdadeira. E talvez por isso Ele é agora descrito aparecendo sob o disfarce de um pastor, quando a noiva trata-o como se fosse um dos pastores: "Diga-me, onde levas seu rebanho pastar, onde o faz descansar ao meio-dia." O Bom Pastor, que abdica-se de Sua vida por suas ovelhas! Ele lhes dá a sua vida, a sua carne; Sua vida é o resgate deles, Sua carne a comida deles. Que maravilhoso! Ele é seu pastor, sua comida, sua redenção. Mas este sermão está ficando muito longo, o assunto é extenso e contém grandes verdades que não podem ser explicadas em poucas palavras. Isso exige que nós interrompamos ao invés de terminarmos esse assunto. Sendo que o assunto está meramente suspenso, devemos mantê-lo vivo em nossas memórias, a fim de retomar em breve de onde paramos e continuá-lo com a ajuda de nosso Senhor Jesus Cristo, Noivo da Igreja, que é Deus bendito para sempre. Amém.