Uma celebridade fica doente
Preparando a cena
Onde fica o Buddhafield?
Vimalakirti
Uma celebridade fica doente
Há cerca de dois mil e quinhentos anos, um homem no norte da Índia mudou o curso da história espiritual. Desde então, seu impacto e influência foram tão profundos e abrangentes que ainda hoje as pessoas são abençoadas com simpatia e afinidade naturais não só por ele, mas por suas ideias inovadoras e legado de sabedoria único. Ainda somos profundamente tocados por sua história de vida e fascinados por aquilo que as pessoas do seu tempo consideravam ser importante. Suas conversas nos intrigam e ouvir sobre o que aquelas pessoas queriam alcançar nos inspira e motiva. Ao mesmo tempo, para uma mente moderna muitas dessas histórias podem parecer absolutamente fantásticas. Como podemos, ao menos tentar, entrar no espírito daquela época? Ou então acreditar, ou talvez mesmo apreciar, uma única palavra do sutra brilhantemente profundo contido neste livro?
Nossa única esperança é usar nossa imaginação, a nossa mente. Afinal, o que mais existe? Como disse esse grande indiano, não há nada além da mente.
E se, ao conhecermos as histórias fabulosas registradas neste sūtra pudermos, no processo, derramar algumas bênçãos sobre nós mesmos e sobre os outros
e talvez até tirar desses sutras um pouco de consolo – então, por que não? Por que não soltarmos nossa imaginação e mergulharmos na antiga e estupenda narrativa conhecida como ‘O Ensinamento de Vimalakīrti’?
Preparando a cena
Muitas das conversas registradas no Sutra de Vimalakīrti acontecem num mangueiral. As mangas eram, e são, uma fruta muito popular na Índia e bosques de mangueiras têm sido cultivados em todo o país há séculos. Mas não é o fruto da manga que importa nesta história, e sim o que aconteceu sob os galhos de uma determinada mangueira no norte da Índia. Sempre que penso nisso, fico com uma sensação vívida da enorme número de ensinamentos de sabedoria que foram dados, discutidos e debatidos sob seus galhos. Lembro-me também que esse grande indiano costumava usar a manga como exemplo. Ele disse que os seres humanos se desenvolvem da mesma forma que as mangas. Alguns amadurecem por fora mas não por dentro; outros amadurecem no interior mas não no exterior; outros ainda amadurecem por dentro e por fora, e outros definitivamente não amadurecem.
Como seria aquele mangueiral, eu me pergunto? Você pode imaginar isso? O aroma forte e doce de mangas maduras, cada uma cercada por um enxame de abelhas, todas aquelas moscas irritantes, os onipresentes excrementos fumegantes das vacas, alguns búfalos pretos de pelagem brilhante e chifres lubrificados, a grama longa e espinhosa balançando, o vento quente e seco e, claro, o ar denso com nuvens vermelhas e amarelas de poeira. No meio de tudo isso estava sentado um certo homem – para uma comunicação clara,
vamos rotulá-lo de ‘Tathāgata’ – e ao redor dele estavam sentados seus muitos discípulos, bodhisattvas, arhats, monges, reis dos deuses, reis dos asuras, reis dos homens e suas comitivas consideráveis.
O mangueiral do Tathāgata não ficava longe da antiga cidade de Vaiśālī, que hoje fica em Bihar, a apenas vinte horas de trem de Delhi. Atualmente Bihar é um dos estados mais pobres da Índia. Seus políticos corruptos e infames traíram os desejos do povo Bihari ao perpetuar o sistema de castas com o único intuito de manter o poder. Em contrapartida, há dois mil e quinhentos anos, Vaiśālī – que, ironicamente, foi a primeira grande república da Índia – era famosa por ser a capital do muito influente clã Licchavi, assim como local de nascimento do fundador do Jainismo, além de ser o lugar onde o Tathāgata deu seu último ensinamento antes de seu parinirvāṇa.
O Sūtra de Vimalakīrti abre com uma grande procissão composta por quinhentos jovens Licchavis. Eles fizeram todo o percurso de Vaiśālī até o mangueiral com o único intuito de visitar e trazer oferendas ao Tathagata. Multidões sempre se reuniam ao redor do Tathagata onde quer que ele fosse, mas era algo único esta cavalgada brilhante de quinhentos belos jovens e mulheres enfeitadas com toda elegância, cada um portando um requintado para-sol enfeitado de joias como presente para o Tathāgata. Que visão gloriosa! Eu gostaria que alguém tivesse uma câmera, alguém talvez como o grande cineasta japonês Akira Kurosawa. Mas mesmo o olhar infalível do poderoso Kurosawa, como um pequeno inseto olhando para o céu infinito, teria sido incapaz de absorver tudo o que aconteceu naquele dia.
O que aconteceu a seguir é um pouco difícil para pessoas modernas, céticas e tacanhas como nós entendermos. Nossas mentes são tão pequenas quanto o piolho da floresta que fez um buraco num pedaço de madeira e depois pensou: ‘Isso deve ser o céu!’
Talvez menor ainda, portanto, somos virtualmente incapazes de compreender o que vem a seguir. É apenas uma história complicada? Alguns podem pensar que sim, ou, na melhor das hipóteses, que seja um milagre. Mas a maioria das pessoas provavelmente ignorará tudo. É por isso que devo
agora sintonizar nossas mentes, para que possamos pelo menos tentar entender o que aconteceu naquele dia.
Tente manter seu coração e mente abertos enquanto imagina a cena em sua mente. Os Licchavis chegam ao mangueiral e oferecem seus quinhentos para-sóis para o Tathagata. Ele graciosamente aceita todos elas e os abençoa. Num átimo, todos os quinhentos para-sóis tornam-se um só, sob o qual o Tathāgata coloca todo o universo – não apenas os poucos planetas que nós, seres humanos, conseguimos nomear, tais como Júpiter e Marte, mas todo o universo. E tudo se encaixa perfeitamente! É precisamente aí que começam nossos problemas.
Nossas mentes fixas e dualistas acostumaram-se à ideia de que mesmo três pessoas são demais para caberem sob um único guarda-chuva num dia chuvoso. Então como o Tathāgata conseguiu encaixar o universo inteiro sob um único elemento ornamental, um para-sol? Ele estava exercendo seus poderes milagrosos? A capacidade de realizar milagres é uma das muitas qualidades únicas de um ser sublime, então seria essa a explicação mais provável? Ou não foi nada mais do que um simples truque de mágica?
Aqueles de vocês com mentes particularmente críticas e céticas podem estar
tentando descartar todo esse incidente como um mito budista fantasioso. Mas
o que quer que você esteja pensando agora, tenha apenas esta primeira parte da estória em mente. Se você fizer isso, enquanto o sutra se desenrolar, você pode começar a entender por que ele é tão importante e, mesmo que você não consiga aceitá-lo de forma literal, pelo menos você não o descartará completamente.
Antes de prosseguirmos, devo dizer-lhe que o Tathagata também é conhecido como o Buda. Na verdade, Buda, o Tathagata, tinha muitos nomes diferentes – Touro de Homem, Leão dos Shakyas e Rei dos Bípedes. Ele também era conhecido como o Rei dos Destruidores de Inimigos (um ‘arhat’). Mas no caso dele, os inimigos não eram pessoas, eram suas emoções e seu hábito de se apegar ao ego.
Ao longo de suas mil vidas anteriores como bodhisattva, as únicas coisas que o Tathagata destruiu foram suas emoções e seu ego; ele jamais prejudicou um único ser.
Onde fica o Buddhafield?
Depois que o Tathagata abençoou o para-sol e colocou todo o universo sob ele, os Licchavis elogiaram-no longamente e depois fizeram uma pergunta muito importante.
“Onde fica o Buddhafield?”
Durante a vida do Buda, esta questão era um pouco semelhante a uma questão contemporânea cristã, algo como: “Onde fica o céu?”
A longa resposta do Buda começou com: “É isto aqui! Precisamente onde você está sentado. Este lugar samsárico mundano é um campo búdico.”
Enquanto ele continuava a falar, um de seus discípulos mais próximos, Śāriputra, examinou a poeira, os espinhos e, claro, os excrementos de vaca que o cercavam e pensou: “Como pode um lugar desses ser um campo búdico?”
Isso parece uma dúvida, não é? Mas neste contexto, o pensamento de Śāriputra e seu ceticismo foram nada mais que uma manifestação das bênçãos do Buda e em si mesmos, um fator crucial no ensino – especialmente hoje, quando tantos duvidam de seus professores espirituais e gurus, do caminho espiritual, dos ensinamentos e de seus companheiros espirituais.
Porém, graças a essa estória, sabemos agora que é possível que haja uma dúvida surgindo como resultado das bênçãos do Buda. Mas lembre-se, nem todas as dúvidas são bênçãos.
Embora nenhum dos outros bodhisattvas tivesse qualquer dificuldade em aceitar que a Bihar suja e árida era realmente um campo Búdico, Śāriputra simplesmente não conseguia vê-la como tal. A Bihar do século XXI é o lugar mais barulhento do planeta. Também está desesperadamente lotada. A música de Bollywood toca em todas as janelas das casas e os carros buzinam continuamente, dia e noite. Como bandidos e gangsters controlam o estado, ela também é muito perigosa; disseram-me que os Biharis comuns têm mais medo da polícia do que de bandidos e gangues de rua.
“Como pode este lugar com suas rochas nuas, poeira, espinhos, penhascos traiçoeiros e o calor escaldante ser um campo búdico?” assim pensou Sariputra.
O Buda, instantaneamente consciente do que estava passando pela mente de Śāriputra explicou rapidamente 'como', e então abençoou Śāriputra para que ele também pudessever o campo búdico imaculado e feliz em que estavam, desprovido de 'penhasco', ‘abismo’ ou ‘perigo’. Vamos chamá-lo de campo búdico “real” por enquanto. O Buda abriu os olhos de Śāriputra da mesma forma que um bom professor de arte pode hoje demonstrar a grandeza e o significado de uma peça de arte moderna que de outra forma seria incompreensível. Ao explicar como o artista reinterpretou as regras de composição e cor, a intenção por trás do trabalho, a coragem de tal abordagem radical necessária, bem como as atitudes sociais predominantes em relação à arte, um professor pode revelar por que um artista como Picasso, por exemplo, é tão conceituado no mundo da arte. Uma vez que os olhos dos alunos tenham sido abertos para o brilho ultrajante da abordagem de Picasso, eles começarão a ver que o que inicialmente parecia nada mais do que um assento de bicicleta e um par quebrado de guidões, é na verdade uma obra de arte genuína. Mas é claro que o Buda realizou muito mais do que isso quando suas bênçãos tornaram possível para Śāriputra ver a imunda Bihar como um campo búdico. Isso também marca o início da discussão exaustiva do Sutra de Vimalakīrti, sobre o quanto realmente é diferente a percepção do mundo para cada indivíduo.
Vimalakirti
Você provavelmente deve estar se perguntando por que este texto é chamado de ‘Sutra de Vimalakīrti’.
A maioria de nós sabe que os sutras pertencem à rica tradição literária da Índia. Um sutra pode ser o registro de um ensinamento, um manual, ou simplesmente uma coleção de aforismos como os Yoga Sūtras de Patañjali, ou mesmo o Kāma Sūtra. Então, por qual motivo esse sutra tem seu nome?
Um dos cidadãos mais populares e bem-sucedidos de Vaiśālī naquela época era um Licchavi chamado Vimalakirti. Ele era um leigo – por favor, tenha isso em mente. Isso é importante porque naquela época, os membros mais reverenciados e valorizados da sociedade indiana eram os sanyāsins – monges e renunciantes – não os leigos, e especialmente não os leigos que mantinham o tipo de atitude não-convencional e extremamente colorida e extravagante que o Licchavi Vimalakīrti tanto adorava.
Hoje em dia, provavelmente descreveríamos uma pessoa ousada, extravagante e muito bem sucedida como um ‘novo rico’. Vulgares e ostensivos, os novos ricos fazem coisas como revestir cada dente da boca com ouro ou correr para comprar o novo Hublot, um relógio de pulso de ‘um milhão de dólares’ sem mesmo tê-lo visto, ou ainda gastar US$ 60 mil numa bolsa Hermès de pele de crocodilo. Exageram em tudo, assim como Vimalakīrti. Ele era, na verdade, um mestre verdadeiramente talentoso dos excessos perdulários.
Quando penso em Vimalakīrti, vejo-o rodeado por uma superabundância de luxo pecaminoso e acompanhado por uma legião de garotas arrebatadoras – duas para segurar sua colher, duas para segurar o prato, duas para colocar frutas no prato, duas para descascar as uvas para ele, e provavelmente mais duas para colocá-las em sua boca. Eu imagino Vimalakirti descansando por horas a fio numa rede de seda enquanto olha pela janela de seu quarto que tem uma vista exótica privilegiada da selva do Bihar. Quando ele comia, era numa mesa de jantar de mogno, numa plataforma flutuante no meio de um lago de flores de lótus.
Sua comida seria apresentada em pratos turquesa e ele bebia apenas dos melhores vinhos em taças de lápis-lazúli de valor inestimável. É claro que estou aqui dando liberdade à minha imaginação, mas tenho a sensação de que neste contexto, imaginar é não apenas permitido como também ativamente incentivado aqui. Basta ler o texto, está tudo lá! Incluindo descrições maravilhosamente detalhadas não apenas de seu palácio, mas também do seu estilo de vida.
Tenho certeza de que ele visitava com frequência o que chamaríamos de “bares”, onde bebia substâncias embriagantes em altas taças de jade. Quanto às casas de prazer cinco estrelas daquela época, não tenho dúvidas de que ele era muito querido e regular nelas. Criaturas iludidas e mesquinhas como você e eu não têm esperança de ficar imaginando como eram aquelas casas de prazer de alta classe, nem temos sequer palavras para descrevê-las – ‘casa luxuosa de putas’, talvez? Se fôssemos visitar tal lugar, até mesmo o mais tímido dos olhares de uma dessas garotas sensuais e voluptuosas que trabalhavam lá nos faria girar num turbilhão de fantasia.
Vimalakīrti regularmente conviveu com reis, estudiosos, ministros, senhores da guerra, generais e, claro, empresários obscenamente ricos e inteligentes. Mas ele também foi um filantropo gentil e generoso, que visitou escolas e cuidava muito bem das crianças. Onde quer que ele fosse, ele cumprimentava todos que encontrava independentemente de casta ou ocupação, até mesmo agricultores e varredores de rua.
Como resultado, apesar de todas as suas deficiências morais e depravação, ele foi universalmente amado, respeitado e adorado. Era um personagem incrível. Então, Vimalakīrti é o herói desta história. Nós o conhecemos logo depois que ele adoece, e esta sua doença torna-se a força motriz do sutra. Vaiśālī inteira ficou alvoroçada com a notícia de que Vimalakīrti estava com a saúde tão debilitada e que havia caído de cama. Bandos de simpatizantes apareceram em seu palácio, e você pode bem imaginar os tipos de perguntas que fizeram a ele.
"Você tem bebido água o suficiente?"
“Você está descansando o suficiente?”
“Você já experimentou a cura com suco orgânico?” Ou uma das outras curas milagrosas muito elogiadas na época. E assim por diante.
Todos os seus amigos, conhecidos e todos que o conheciam estavam genuinamente preocupados e a cidade transbordou de visitantes querendo saber como ele estava. Todos, exceto um amigo muito especial.
“Nenhuma palavra ainda do Tathagata?” pensou Vimalakirti. "Eu me pergunto por que?" E a quilômetros de distância, no mangueiral, o Buda sabia exatamente o que Vimalakirti estava pensando.
O que se seguiu inspirou algumas das mais penetrantes reflexões filosóficas que já ocorreram neste planeta. E tudo foi desencadeado pelos sentimentos feridos de um homem rico e doente que se sentiu negligenciado porque seu mais querido amigo não tinha vindo vê-lo. Que maneira maravilhosa de começar uma história!virmalakirt
Os Ensinamentos de Vimalakirti por Dzongsar Rinpoche – Parte 2
Śāriputra
Maudgalyāyana
Kāśyapa
Subhūti
Rāhula
Ānanda
Sariputra
Śāriputra, como já mencionei, foi um dos discípulos mais próximos do Buda, assim como de grande importância no Sangha (o grupo de discípulos). Os murais pintados nos templos geralmente mostram-no em pé, à direita do Buda, por assim dizer o braço direito do Buda. Śāriputra foi conhecido não apenas como o mais inteligente, mas também o mais perspicaz de todos os estudantes do Buda, perdendo apenas para o próprio Buda em termos de Sabedoria. Ele também era um monge imaculado e puro. Lembre-se disso, porque em algumas páginas, parecerá que Vimalakīrti estará zombando dele e, quando isso acontecer, é importante que você se lembre de que Śāriputra não era um tolo ou ingênuo.
“Śāriputra”, disse o Buda. “Você deveria ir a Vaiśālī perguntar pelo Licchavi Vimalakirti. Ele não está bem, sempre foi um bom amigo do Sangha e gostaria que você o visitasse em meu nome para saber como ele está.”
Śāriputra ouviu com atenção e respeito o pedido de seu mestre, mas não respondeu imediatamente. Os outros discípulos ficaram surpresos. Geralmente, se o Buda pedisse a Śāriputra para fazer algo, ele virtualmente completaria a tarefa antes mesmo do Buda terminar a frase. Então por que, perguntaram-se eles, Śāriputra hesitou? Após uma pausa desconfortavelmente longa, Śāriputra fez um gesto de profundo respeito ao seu mestre e então começou a falar.
"Oh não! Por favor, meu Senhor, por favor, não me envie! Ele então narrou ao Buda como fora seu encontro mais recente com Vimalakīrti.
Śāriputra estava meditando pacificamente à sombra de uma grande árvore, quando de repente, o Licchavi Vimalakīrti apareceu diante dele como se tivesse surgido do nada.
"Não, não, não, Śāriputra!”, disse Vimalakīrti, franzindo a testa. "O que você está fazendo está completamente errado! Não é assim que se medita!”
O que se segue é um ensinamento extraordinariamente profundo durante o qual, com maestria surpreendente, Vimalakīrti examina, desmonta e desconstrói o mito da meditação. Lembre-se, Śāriputra não era um charlatão. Ele era um autêntico mestre de meditação, altamente realizado espiritualmente. Sua meditação foi muito mais refinada do que sequer poderíamos imaginar. Para qualquer um de nós tentar avaliar ou julgar a extensão de sua prática seria tão ridículo quanto tentar manter o céu inteiro ns palma de uma mão. Mas é claro que seres notáveis como Śāriputra não viam nenhuma diferença entre os dois, ou entre um punhado de poeira e um quilo de ouro. Ele era um grande discípulo, nada sobre ele poderia ser descrito como pequeno. No entanto, foi Śāriputra a quem nosso amigo, nosso herói Vimalakīrti, abordou em suas críticas. Devo confessar que a maior parte do que ele disse está muito além da minha compreensão e muitas vezes me perguntei se essa interação foi deliberadamente encenada. Para mim parece que Śāriputra e Vimalakīrti estavam representando a cena de uma peça, talvez como forma de orientar e libertar-nos, ajudando-nos a dissipar nossa confusão.
Por exemplo, uma das coisas que Vimalakīrti disse foi: “Você nunca deve se afastar do cessar, nem deve se afastar das atividades pós-meditação.”
Do que diabos ele está falando? Ele está realmente sugerindo que deveríamos
nunca ‘não meditar’, nem ‘não não-meditar’? Porque é assim que minha mente limitada interpreta o que esses dois seres excepcionais estavam dizendo um para o outro.
Um dos nossos maiores erros é que interpretamos automaticamente “não estar distraído” para entender que devemos “permanecer”, “habitar” e “concentrar-nos”. Nós nunca imaginamos que possa significar 'deixe fluir' ou 'deixe estar'. Pelo menos, é isso que eu acho que Vimalakīrti está dizendo aqui. Mas é difícil para praticantes comuns como nós não imaginar que a meditação é uma questão de permanência, porque inicialmente é exatamente isso o que somos ensinados a fazer.
Você pode imaginar um dos instrutores de meditação de hoje dizendo que você não deveria se concentrar? Aqueles de nós que tentam praticar a meditação shamatha (concentração) de vez em quando – nunca com frequência suficiente, obviamente – talvez pensem que a coisa certa a fazer é sentar-se numa almofada e não navegar na Internet. Mas mesmo quando nós estamos sentados numa almofada nossas mentes ficam distraídas. Em vez de meditar, nós repetimos uma discussão que acabamos de ter ou então passamos a nos ocupar com a situação do nosso saldo bancário ou nossa última crise emocional.
Os professores de meditação de hoje nos encorajam a responder às nossas emoções mais selvagens, pensamentos como: “Não, eu não deveria pensar assim. Eu deveria trazer minha atenção novamente à minha respiração e concentrar-me nas sensações que tenho nas minhas narinas.” ´É o que tentamos fazer, mas é claro que não demora muito para começarmos a pensar sobre nossos problemas e então, novamente, dirigimos mais uma vez nossas mentes de volta à nossa respiração. É um bom método, necessário e certamente um passo na direção certa. Mas, do ponto de vista de Vimalakīrti, este tipo de meditação está longe do ideal.
Simplificando, Vimalakīrti diz a Śāriputra que a verdadeira meditação é meditar e não meditar ao mesmo tempo, e que uma lacuna entre a meditação e a pós-meditação não deveria existir, bem como o muro entre a distração e a concentração deveria entrar em colapso. Se apenas meditarmos, diz ele, estaremos basicamente não fazendo nada – e ‘nada’ inclui fazer um esforço deliberado em fazer nada. Em vez disso, devemos permanecer na cessação – ou meditação, absorção, atenção plena, concentração, como você quiser chamar – sem evitar atividades. Este parece ser o ponto de vista de Vimalakīrti.
Então, se acontecer de você estar ouvindo música, vá em frente, ouça a música. Se você estiver cortando uma cebola, vá em frente, pique a cebola. Enquanto você corta, se o seu nariz estiver formigando, vá em frente e coce-o. Não tente escapar da atividade. Esteja atento, mas seja também ativo. A meditação não é uma desculpa para parar de fazer as coisas, mas isso é exatamente o que acabamos fazendo – ou não fazendo! O que você pensa quando ouve a palavra ‘meditação’? Na sua almofada de meditação, não na sua tábua de cortar. Ou então, sentado com as costas eretas olhando para o seu santuário, sem nadar, por exemplo.
Aliás, o Sūtra de Vimalakīrti não é um ensinamento gradual, ele se enquadra
na mais alta categoria de ensinamentos sobre o significado definitivo (Nītārtha, em Sânscrito). Mas só porque você está lendo um ensinamento elevado que contém todo o tipo de declarações extraordinárias, não despreze agora o caminho gradual, não se iluda pensando que está pronto para abandonar os ensinamentos básicos. Lembre-se, você não é Śāriputra – nenhum de nós é um praticante do mesmo calibre que ele.
Ao mesmo tempo, ao ler este sutra, podemos perceber algumas discussões exclusivamente perspicazes contendo grande quantidade de informações que precisamos ouvir. Se ignorarmos estes ensinamentos, ou não nos preocuparmos em ler ou ouvi-los, é provável que o budismo do futuro se transforme em insignificância. Os praticantes acabarão fazendo nada mais que sentar-se em almofadas, comer comida vegetariana e buscar a felicidade pessoal na não-violência – o que é totalmente patético!
Disseram-me que ‘sorriso’ é atualmente um hashtag do Budismo. Isso é tão constrangedor! Vimalakīrti nunca toleraria isso. Se estivesse vivo hoje, ele destruiria implacavelmente e demoliria esses chamados ensinamentos “espirituais” que atualmente são considerados a “verdade”. O que ele faria sobre o tal hashtag do 'sorriso' no Budismo e sobre o uso dessa 'atenção plena' (mindfulness) como terapia, eu me pergunto?
Se o Budismo tivesse um hashtag, deveria ser ‘medite e não medite ao mesmo tempo, caso contrário você não estará fazendo certo!’ Foi isso que Vimalakīrti disse a Śāriputra. Ele também disse, você deve meditar como se
já fosse um ser imaculado, sublime, mas sem abandonar sua normalidade. Seja sublime, mas não desista do mundano – é assim você deve meditar. Claro, você também deve se concentrar e não deve se distrair, mas isso não deve impedi-lo de usar seus sentidos.
Quando ouvimos a palavra ‘meditar’, o que fazemos? Muitos de nós imediatamente fechamos os olhos na tentativa de escapar da realidade presente. Vimalakīrti parece desaprovar esta abordagem. Os iniciantes muitas vezes acham que fechar os olhos ajuda. Mas se você tiver de fechar os olhos, não deveria também tapar os ouvidos, seu nariz? E quanto ao toque? E as sensações que vêm pela sua pele? E o mais difícil de tudo, como você bloqueia sua mente? Mesmo que você consiga fazer tudo isso, não é possível aperfeiçoar a meditação simplesmente desligando seus sentidos. E meu palpite é que é disso, desse bloqueio absurdo que Vimalakīrti está zombando. Mas devo repetir que mal consigo entender uma fração do que realmente está acontecendo entre Vimalakīrti e Śāriputra nesta frase, e muito menos no resto do sutra.
Maudgalyāyana
Maudgalyāyana é outro grande nome no Sangha do Buda. Ele também estava
no círculo íntimo do Buda e foi um de seus discípulos mais próximos. Tornar-se um discípulo do Iluminado seria provavelmente algo como desistir
dos estudos em uma escola de arte altamente respeitada para se tornar aluno particular de um grande escultor ou artista. Certamente muitos dos grandes arhats dedicaram suas vidas inteiras ao Iluminado, a quem seguiram como uma sombra.
Se você encontrasse Maudgalyāyana, provavelmente o confundiria com o próprio Buda; era como se ele tivesse saído do mesmo molde. Nos sutras Maudgalyāyana e Śāriputra aparecem juntos inúmeras vezes e assim como nos murais dos templos Śāriputra geralmente é colocado à direita de Buda, Maudgalyāyana é colocado à sua esquerda. Entre suas muitas outras grandes qualidades, Maudgalyāyana fazia milagres e era um jovem poderoso.
Foi bastante natural, então, que o Buda se voltasse para Maudgalyāyana
depois que Śāriputra se recusou a visitar Vimalakīrti em seu nome. Será que
Maudgalyāyana aceitaria essa missão?
“Não, meu Senhor”, respondeu Maudgalyāyana, com o mesmo gesto de devoção e respeito oferecido poe Śāriputra. Outra resposta surpreendente e que deve ter fascinado e deixado perplexos os outros discípulos. Quem era esse homem, Licchavi Vimalakīrti?
E por que dois arhats tão talentosos, os mais poderosos de todos os os discípulos do Buda, estavam fazendo o máximo para evitá-lo?
“Acho que não estou à altura disso”, disse Maudgalyāyana. E então continuou descrevendo o que aconteceu na última vez que ele e Vimalakīrti se encontraram.
Maudgalyāyana estava ensinando um grande grupo de leigos, quando de repente Vimalakīrti apareceu diante dele, como se tivesse surgido do nada.
“Maudgalyāyana”, disse Vimalakīrti. “Você não deveria ensinar o dharma
assim!" Imagine isso acontecendo hoje. Imagine um famoso professor budista contemporâneo sendo interrompido por um homenzinho brilhante de cabelos pretos compridos, um relógio de pulso de ouro incrustado de diamantes, vestido de forma opulenta e com um charuto muito caro preso entre dentes alvíssimos. Imagine o rosto do professor quando o homem dissesse: “Você não deveria ensinar o Dharma dessa maneira." Como reagiriam os alunos bajuladores desse professor? “Como ele ousa opinar na maneira de nosso mestre perfeito nos ensina?” Será que reagiriam assim?
Quaisquer que fossem as reações, Vimalakīrti ignorou todas elas e passou a
desconstruir em detalhes meticulosos o real significado de “ensinar o Dharma”.
Como não há alma, nem ser senciente, nem eu, nem nascimento, morte, pessoa, assim como não há passado, nem futuro, nem palavras, frase, cor ou forma, nada para ser abandonado ou adotado, o que há então para ser ensinado? O chamado ‘ensino’ então nada mais é que uma invenção, como é o chamado “ouvir”? Onde há invenção, nenhuma sílaba do Dharma pode ser pronunciada. Não existe tal coisa como ‘ouvir o Dharma’ ou ‘expor o Dharma’, porque o que há é apenas fabricação. Fabricação é tudo que existe. É como um mágico que cria duas pessoas. Ele faz de um o expositor e de outro o ouvinte, mas nem a “exposição” nem a “audição e contemplação” acontecem.
As declarações de Vimalakīrti são surpreendentemente perspicazes. Infelizmente, porém, não apenas pessoas mesquinhas como nós não conseguem entender suas palavras, também ficam irritados com tudo o que ele diz. Do que ele está falando? Como pode um ensinamento sagrado ser uma mera invenção? E o que há de errado em ensinar pessoas a absterem-se de matar, roubar e mentir? As pessoas precisam ouvir esse ensinamento, certamente é isso que deve ser ensinado! É o tipo de ensino que não apenas nos auxilia a ajudarmos a nós mesmos, mas também nos ajuda a auxiliar os outros. Quanto ao carma e reencarnação, como podem ser uma invenção? Eles não formam um dos pilares do Buddhadharma, a essência de um caminho espiritual?
Tenho uma mensagem para os chamados budistas – especialmente aqueles da Grã-Bretanha que se orgulham de se anunciarem como pioneiros da noção de que pode haver Budismo sem crenças e Budismo além reencarnação. Vocês estão dois mil e quinhentos anos atrasados! O crédito para essas ideias cabe exclusivamente a esse empresário rude, hedonista e filantrópico de Vaiśālī.
Posso estar presumindo demais aqui, mas o que Vimalakīrti quer dizer é que, enquanto o pensamento e a ilusão forem considerados reais, também haverá
ilusão. E que enquanto houver ilusão, haverá um caminho ou método para nos despertar dessa ilusão. Mas assim como a ilusão não é real, também não é o caminho que nos liberta da ilusão. Como pode ser? Se a cobra você com que você sonhou ontem à noite era uma ilusão, como poderia o bastão que você usou afastar a cobra ser real? Se o bastão fosse real, a cobra também teria de ser real. Então Vimalakīrti parece estar dizendo que assim como tudo é uma ilusão, o caminho que o liberta da ilusão também é uma ilusão. Neste caso, o caminho é o ensino. Portanto, ensinar, ouvir, compreender e perceber são tudo ilusões.
Você pode perguntar: “Por que então ensinamos?” Ensinamos por compaixão por aqueles que pensam que a ilusão é real e ainda não percebem que não é, e ensinamos para aqueles com hábitos fortes e arraigados.
A compaixão nos obriga a aplicar todos os métodos hábeis disponíveis em nosso esforço para ajudá-los, o que significa que devemos então fingir que ensinamos. Ao ensinar, podemos oferecer à pessoa que sonha com uma cobra a escolha de vários tipos de pau para afastá-la; e ao fazer isso, servimos o Buddhadharma.
Nossa única razão para ensinar só pode ser o objetivo supremo de compaixão incondicional. E se, por compaixão, aplicarmos o hábil método de ensino, a luz do Buda, do Dharma e do Sangha continuará a brilhar.
Há pessoas no Ocidente hoje que adoram criar um estilo ‘pegue e misture’,
um tipo de caminho espiritual para si mesmos. Eles não hesitam em descartar os ramos da árvore tradicional dos ensinamentos budistas que não podem entender – a reencarnação, por exemplo, e que descartam como sendo pouco mais do que um hábito cultural indiano, uma ilusão. No entanto, eles continuam a promover, lucrar e agarrar-se desesperadamente a outros ramos tradicionais do Budismo, como mindfulness, meditação, moralidade e ética.
De volta ao mangueiral, Maudgalyāyana encerrou sua história dizendo que, após seu encontro com Vimalakīrti, ele havia perdido toda a confiança – mas por favor, tenha em mente que foi devido à grande compaixão por pessoas como eu, que Vimalakīrti e Maudgalyāyana quase que certamente encenaram este encontro.
Kaśyapa
Em seguida, Buda voltou-se para um de seus maiores discípulos, Kāśyapa, o
monge que o próprio Buda nomeou para ser seu regente. Foi Kaśyapa que convocou a primeira assembleia do Sangha, onde os discípulos começaram
o processo de compilação de todos os ensinamentos do Buda para o benefício de futuras gerações – pessoas como nós. E ele também tinha um bom motivo para se recusar a visitar Vimalakirti.
Certa manhã, ao sair para mendigar por comida, Kāśyapa pensou consigo mesmo: “Hoje vou pedir aos pobres porque os pobres precisam acumular mérito.” Enquanto ia de porta em porta no bairro mais pobre de Vaiśālī, de repente, surgido do nada, Vimalakīrti apareceu diante dele e perguntou: “O que você está fazendo, Kaśyapa?” "Por que mendigar dos pobres? Isso é um grande erro! Por que você está discriminando entre ricos e pobres! Não deveria fazer isso! Quando você implora, deveria ser com a atitude de equanimidade e compaixão por todos os seres sencientes.”
Com estas palavras, Vimalakīrti puxa o tapete debaixo de todos pés. Estamos tão contaminados com o politicamente correto que escolhemos os objetos de nossa compaixão. Não só as nossas mentes são dualistas, a nossa compaixão também é. Deveríamos sentir compaixão apenas por um pobre, doente, desamparado, órfão? Ou cães de rua? Estamos realmente sendo compassivos quando saímos de nossa rota a fim de salvar a vida de um cachorro, mas nos sentimos presunçosamente satisfeitos quando esse mesmo cachorro morde Donald Rumsfeld? (Duas vezes eleito como Secretário da Defesa dos EUA nos governos Ford e Bush e um dos responsáveis pelas invasões do Afeganistão e do Iraque)
Ou se ajudarmos um órfão do Bangladesh ao invés de um bilionário, como Donald Trump? Nossos corações vão para os sem-teto que estão sob um clima insuportável, mas permanecemos totalmente indiferentes a um tweeter sobre Bill Gates recebendo um bife sola-de-sapato em seu jantar. O que Vimalakīrti parece dizer a Kāśyapa é que todos, ricos e pobres, famosos e insignificantes, todos deveriam ser igualmente objetos de nossa compaixão.
Uma das observações mais importantes que Vimalakīrti faz nesta seção é que Kāśyapa deveria pedir esmolas a seres míopes e iludidos que veem uma parte e imaginam que seja o todo. É uma afirmação que nunca deixa de me impressionar. Ele não está falando de todos nós? Nós olhamos para nós mesmos, mas não vemos isso, somos coleções fragmentadas e transitórias de coisas e bugigangas sujeitas ao tempo, espaço, nome, decadência e interpretação. Não vemos os diferentes pedaços, vemos apenas um conjunto. Por exemplo, eu diria que sou um homem. Mas se eu fosse desmontado e reduzido a uma pilha de átomos, nem sequer eu mesmo poderia apontar para um desses átomos e chamá-lo de homem. No entanto, estou convencido de que tenho um gênero – que sou um homem. É uma ideia à qual estou preso, e certamente alguém tão preso quanto eu também deveria ter a oportunidade de acumular mérito.
Mas lembre-se, Vimalakīrti era um leigo. “Se um leigo pode falar assim”, disse Kāśyapa ao Buda, “Se um leigo pode ser alguém realizado, como podemos não acreditar que a iluminação de todos seres sencientes é possível?”
“Foi quando parei de dar os ensinamentos que só levam à autoliberação”, disse Kāśyapa, o que deve significar que a partir de então ele só ensinou o caminho que leva todos os seres sencientes à libertação.
“Quando Vimalakīrti terminou de falar”, disse Kāśyapa, “ele já tinha verdadeiramente esmagado meu orgulho. Eu não suporto a ideia de vê-lo de novo!"
Subhuti
Outro personagem que aparece neste sutra é Subhūti. Muitos de nós já o conhecemos porque ele aparece em vários outros sutras. Tenho a sensação de que ele era uma pessoa muito curiosa e obstinada em sua busca de conhecimento e sabedoria. Afinal, foi uma conversa de Subhūti com o Buda que se tornou o Sūtra Vajracchedika.
Mesmo assim, quando Buda perguntou a Subhūti se ele visitaria Vaiśālī, ele recusou, porque ele também teve um encontro perturbador com Vimalakīrti.
Ao contrário dos preconceitos atuais sobre os mendigos, na Índia antiga e grande parte da Ásia pedir esmolas como monge era um modo de vida nobre até mesmo um “direito” de viver dessa maneira. O próprio Tathāgata implorou por comida, e há muitas lindas histórias sobre as pessoas que ele conheceu enquanto mendigava e como muitas vezes ele ajudou essas pessoas mudando todo o curso de suas vidas.
Em uma ocasião, o Tathāgata insistiu em visitar um local em ruínas, moradia de uma mulher indigente que não tinha um único grão de arroz para comer. Quando Buda se aproximou dela segurando sua tigela de esmolas, como não tivesse comida, ela ofereceu-se para cerzir um pequeno buraco que notara em suas vestes.
Naquele momento, de acordo com os sutras, a terra tremeu, um arco-íris preencheu o céu, e Śāriputra, que estava como atendente do Buda naquele dia, sorriu um sorriso extraordinariamente radiante. Mais tarde, quando seus colegas monges perguntaram a Śāriputra o que tanto o encantou, ele disse: “No paraíso de Tushita, neste exato momento, os deuses estão construindo um palácio para aquela mulher. Ela irá para lá quando deixar esta terra.
Isso torna a história do encontro de Subhūti com o Licchavi Vimalakīrti ainda mais surpreendente. No dia em que Subhūti visitou a casa de Vimalakīrti para pedir esmolas, muita coisa deliciosa havia sido preparada especialmente para ele. Tudo o que Subhūti teve que fazer foi esperar pacientemente na porta da cozinha enquanto Vimalakīrti enchia pessoalmente sua tigela.
Enquanto Vimalakīrti servia uma última colherada, ele disse: “Agora, Subhūti, você só deve aceitar esta oferta se realmente compreender que todos
fenômenos, saṃsāra e nirvāṇa, posses e qualidades iluminadas são iguais."
Vimalakīrti foi tão atrevido! “Você só deve aceitar esta oferta”, continuou ele, “mesmo não tendo abandonado desejo, ira e ignorância, e ainda assim, apesar deles, permanecer imaculado.”
E isso não foi tudo. “Você só deve aceitar esta oferta se não for uma vítima dos fenômenos transitórios, e mesmo que não tenha abandonado o apego, todavia, apesar dele, permanecer imaculado. E mesmo que você nunca tenha ouvido falar das Quatro Nobres Verdades, todavia nunca as tenha violado, e se nunca viu o Buda, nunca ouviu o Dharma e nunca venerou a Sangha…”, e assim por diante.
Instantaneamente, Subhūti sentiu-se extremamente deprimido – tão deprimido que todas as dez direções ficaram escuras e sua tigela de esmola escorregou de seus dedos diretamente para o chão. Ele tentou fugir, mas Vimalakīrti o impediu. “Subhuti, não tenha medo. Leve a comida. Eu quero te fazer só mais uma pergunta." Vimalakīrti foi absolutamente implacável! “Se o Tathagata tivesse dito tudo o que acabei de dizer e se ele estivesse se dirigindo um ser ilusório, esse ser ilusório teria medo? Claro que não! Porque ele era uma ilusão. Você não percebe? Não só tudo o que eu disse foi uma ilusão, como também não disse nada para ninguém! Minhas palavras eram ilusórias.
Portanto, Subhūti, não há necessidade de ter medo de aceitar e de comer esta comida, que em si mesma é uma ilusão.”
Depois disso, como Maudgalyāyana, Subhūti perdeu toda a confiança. “Não posso enfrentar aquele ser sagrado novamente”, disse ele ao Buda. "De novo não. Por favor, não me envie.
Rahula
Rāhula era o único filho do Buda. Mas quando solicitado a visitar Vimalakīrti em nome de seu pai, até mesmo Rāhula recusou respeitosamente.
Um dia, Rāhula estava com uma multidão de jovens de Lichavi. Os jovens sabiam bastante sobre Rāhula e estavam curiosos para saber por que ele desistiu da vida de príncipe para se tornar monge.
“Você é o filho do Buda”, disseram eles. “Mas você também é um príncipe.
Diga-nos, por que você desistiu de sua vida real e de todas as suas riquezas? Renunciar toda aquela riqueza é realmente uma coisa tão boa assim de se fazer? Qual é o ponto?"
Aproveitando a oportunidade para explicar os benefícios da vida monástica, Rāhula contou-lhes o quanto era reconfortante a vida como um simples monge. Ser um monge fez com que se sentisse à vontade, disse ele, e trouxe uma tremenda sensação de liberdade. Mas que tipo de liberdade, eles perguntaram? Eu não precisava mais trancar meus tesouros, disse Rāhula, ou fazer inventários de meus bens domésticos, ou manter um extenso portfólio de propriedades e todas essas coisas.
De repente, Vimalakīrti apareceu prostrado diante de Rāhula, como que vindo do nada. “Rāhula, ouça a si mesmo! Ouça o que você está dizendo sobre os benefícios de se tornar um monge. Você realmente não deveria falar assim!
"Por que não?" perguntou Rahula. E Vimalakīrti respondeu: “Porque não há benefício em renunciar a palácios e riquezas. E não há benefício em se tornar um monge”.
Não creio que pessoas como nós consigam compreender completamente como isso é chocante, o quanto deve ter sido chocante uma declaração dessas. Especialmente porque veio da boca do arqui-hedonista Vimalakīrti, que personificava a própria antítese da renúncia. Não só isso, Vimalakīrti estava aqui se dirigindo a Rāhula, o único filho do Senhor Buda, um Príncipe dos Shakyas – ele não era um monge comum. Ao renunciar a vida saṃsārica para seguir os ensinamentos de seu pai, Rāhula deu as costas a riquezas e privilégios inimagináveis. Independentemente de onde e em que época vivemos, tal sacrifício é digno dos maiores elogios e é digno de ser imitado.
Mas se examinarmos mais de perto o que estava acontecendo, fica claro que
Vimalakīrti não estava criticando Rāhula por ele ser um monge. O que Vimalakīrti estava fazendo era examinar o chamado “benefício” para descobrir exatamente o que significava, para daí então poder desmontá-lo.
“Beneficiar” implica que obtemos ou adquirimos algo. O problema é que ter de conseguir alguma coisa sempre causa problemas. Se algo pode ser obtido, alcançado ou realizado, deve ser um fenômeno complexo. Portanto, para sermos verdadeiros renunciantes, devemos renunciar não apenas a todas as causas, mas também a todos os resultados, o que significa que não devemos apenas renunciar à vida mundana, mas também aos benefícios de se tornar um monge ou uma monja.
Uma discussão sobre renúncia quase sempre envolve falar sobre repulsa e tentação, e assim por diante. Não são apenas os budistas que valorizam tais princípios, muitas das religiões do mundo abraçam a ideia de renúncia e desenvolveram métodos para praticá-la de acordo com sua tradição. Isso sugere que a maioria das pessoas pensa que a tentação e o luxo são ruins, até mesmo manifestações diabólicas sem as quais estariam bem melhor.
O budismo inclui ensinamentos semelhantes, mas estes são destinados àqueles de nós cuja capacidade para digerir novas ideias é fraco e que acham mais fácil mastigar os ensinamentos mais macios. Por exemplo, para nos ajudar a esmagar o desejo, o apego, a tentação e assim por diante, nos dizem que ouro e prata são ruins. Os monges são ensinados a lidar com seu desejo pelas meninas pensando nos fluidos, no sangue e excremento que saem do corpo de uma garota, e, claro, o politicamente correto obriga-me a salientar que as monjas devem pensar o mesmo sobre os meninos.
Mas esse não é o tipo de renúncia de que Vimalakīrti está falando aqui. Seu tema é a renúncia absoluta. Se você acha que algo é lindo e desejável, seu desejo o vinculará a ele, e acontece exatamente a mesma coisa quando você acha que algo é feio e o rejeita. Ambos os pensamentos criam a mesma quantidade de apego de alguma maneira e, portanto, se você se apega, você não renunciou.
É por isso que Vimalakīrti zomba de Rāhula. Se você realmente quer renunciar ao saṃsāra, diz ele, você deve primeiro saber que não há nada na renúncia. É como ganhar um bilhão de dólares em um sonho e imediatamente
dar tudo para caridade. A sua doação é um ato de generosidade? Sim, é, mas apenas no sonho. Você realmente doou um bilhão de dólares para caridade? Não, porque nem o bilhão de dólares nem a instituição de caridade jamais existiram. Este é o nível de renúncia da qual Vimalakīrti está falando aqui.
Em última análise, realizamos um ato genuíno de renúncia, penitência ou austeridade, quando reconhecemos que aquilo a que renunciamos é como um sonho ou uma ilusão, sabendo disso, renunciamos às projeções ilusórias.
Um bodisatva (um praticante) só será capaz de aperfeiçoar a renúncia quando conhecer a verdadeira natureza daquilo que renuncia. Terá então estabelecido a “mente de renúncia”.
No Mahāyāna – no Sutra de Vimalakīrti e vários sutras semelhantes – tudo, até mesmo a iluminação, é considerado um sonho ou uma ilusão. Mas Vimalakirti vai mais longe ainda. Ele diz que se houvesse algo além ou maior que a iluminação, isso também seria sonho ou ilusão. Mais uma vez, só posso especular sobre o que Vimalakīrti realmente esteja almejando, mas pode ser que ao ter um objetivo, se esse objetivo beneficiar ou alcançar um resultado ou uma recompensa, faltar-lhe-á a verdadeira renúncia e, portanto, sua atividade não é uma prática genuína do Dharma. Isso não quer dizer que ser um monge, como era Rāhula, fosse uma existência sem objetivo, infrutífera ou sem sentido, o ponto aqui é que a “falta de objetivo” é o objetivo. Basicamente, se você não perceber isso, o objetivo da sua prática é uma ilusão – se você acha que é real – e se suas aspirações e ações em busca desse objetivo são baseadas numa visão errada, tudo o que você faz não é uma prática genuína do Dharma.
Nos ensinamentos budistas, palavras como “resultado”, “objetivo” ou “perfeição” muitas vezes aparecem e são deliberadamente escolhidas por pessoas como nós, que só conseguem mastigar papinha e que estão apaixonados pela ideia de um resultado, um resultado financeiro e especialmente, produtividade.
Ananda
Em seguida vem Ananda, outra grande figura na história do Budismo. Ele era primo do Buda e serviu como seu assistente pessoal por muitos anos. Compilou a maioria dos ensinamentos do Buda, principalmente os sutras que começam com “Assim ouvi” – incluindo-se dentre eles o Sūtra de Vimalakīrti – que ele recitou de memória no primeiro conselho budista. No entanto, mesmo Ananda não estava disposto a visitar Vimalakīrti.
Um dia, como o Buda não estivesse se sentindo muito bem, seus médicos recomendaram que ele bebesse um pouco de leite. Ananda correu para a casa de uma família brâmane que ele sabia que ficaria mais do que feliz em fazer tal oferta e, esperando na porta da cozinha que seu jarro fosse preenchido, Vimalakīrti de repente apareceu diante dele, como que surgido do nada.
“Ānanda”, disse Vimalakirti. "O que você está fazendo aqui?"
“O Buda está doente. Não é sério, mas os médicos dizem que devemos oferecer-lhe leite. Então vim aqui para pedir um pouco.”
"O que você está dizendo? Você não pode dizer isso!” exclamou Vimalakirti, horrorizado. Num ataque de pânico teatral – e mais uma vez, tenho a sensação de que este encontro poderia muito bem ter sido encenado –Vimalakīrti arrastou Ananda para um canto do pátio. Seus olhos vigiavam à direita e à esquerda, como um animal caçado. Talvez porque temia que alguém estivesse perto o suficiente para vê-los ou ouvi-los?
“Ānanda, por favor, abaixe sua voz!” sibilou Vimalakīrti, enquanto agarrava
nas vestes de Ānanda inclinando-se desconfortavelmente para perto de seu ouvido. “Você nunca pode, em hipótese alguma, dizer uma coisa dessas! A essa altura seus olhos estavam esbugalhados. “O Buda é como um vajra, como é que ele pode ficar doente? O Buda aniquilou toda não-virtude, como ele poderia ficar doente? É melhor você sair daqui agora mesmo! Vá! Seja rápido! Seja discreto! E não conte a ninguém mais o que estava fazendo aqui.”
Imagine o quão perplexo Ananda deve ter ficado, talvez até de boca aberta ao assistir Vimalakīrti representando aquela sua cena.
“Você não vê, Ananda, quão devastador um escândalo assim poderia ser? Se algo assim vazar, você ficará totalmente desonrado.”
E olhando para o céu com medo, Vimalakīrti estremeceu, como se tivesse acabado de perceber algo terrível.
“Argh! Os deuses são clarividentes. Você sabe disso, não é? Eles já sabem o que você está pensando! Se os grandes bodhisattvas souberem disso, nunca mais você poderá mostrar seu rosto aqui!”
Vimalakīrti empurrou Ānanda ainda mais para dentro das sombras do quintal, como se ele precisasse realmente se esconder.
“E quanto aos seguidores de todas as outras religiões? Se ouvirem o que você acabou de dizer, estamos todos acabados! Você não vê? Eles dirão que se o Buda não consegue se curar de uma doença trivial, como poderia ele viver de acordo com sua aspiração de iluminar todos os seres sencientes? Ananda, você deve deixar imediatamente esse lugar! Vá! E certifique-se de que ninguém o veja!”
A essa altura, é claro, Vimalakīrti estava realmente exagerando. Mas ele também tinha razão. A natureza de ‘Buda’ está ausente dos conceitos de ‘emoção’, ‘tempo’ e ‘fenômenos compostos’. Ou, dito de outra forma, a verdade absoluta que é o Buda, que não é conceitual, não pode ser expressa em palavras, e está além das construções que rotulamos como 'emoção', 'tempo' e 'fenômenos compostos’. Era, portanto, impossível para o Buda adoecer ou curar-se novamente.
Assim que Vimalakīrti disse isso, Ananda percebeu que era verdade. Tal constrangimento o atingiu como um raio e tão terrivelmente doloroso que ele imediatamente fez menção de fugir do pátio, mas foi parado por uma voz misteriosa que explodiu do céu.
“Quando o Tathāgata apareceu nesta terra para domar seres degenerados, ele
assumiu a forma do Príncipe Siddhartha, filho de Śuddhodana e Mahāmāyā. Para dar aos seres a oportunidade de ajudá-lo, ele às vezes parecerá pálido, faminto ou sedento, e ao ajudá-lo, os seres sencientes acumularão mérito. Então aí está, não precisa ficar envergonhado, Ananda. Pegue o leite e ofereça ao Buda.”
“Mas”, disse Ananda ao Buda, ao encerrar humildemente sua história, “eu não ouso me aproximar de Vimalakīrti novamente, meu Senhor. Não ainda…"
2
Os Ensinamentos de Vimalakirti – Parte 3
Maitreya
Jagatindhara
Sudatos
Manjuśrī
Liberação e Escravidão
Sariputra
Pense no impensável
Mañjuśrī
Maitreya
Maitreya também estava presente no mangueiral. Mas quando o Buda lhe pediu para ser seu emissário, até mesmo Maitreya, que seria o futuro Buda, mostrou-se relutante porque ele também se indignou ao ser corrigido pelo Licchavi Vimalakirti. Aconteceu num paraíso onde Maitreya, que ainda vivia como ser celestial, estava ensinando um grupo de deuses e deusas sobre não mais renascer no saṃsṃ āra – ‘sem retorno’. Mais uma vez, como se viesse do nada, Vimalakīrti apareceu de repente diante dele.
“Pelo que ouvi”, disse Vimalakīrti, “O Tathāgata disse que você se tornará o próximo Buda deste mundo. Isso é verdade?"
Ao fazer a afirmação de que Maitreya renasceria como o Buda em sua próxima vida, o Tathāgata estava confirmando a verdade de que todos os seres samsáricos reencarnam. No entanto, aqui, Vimalakīrti de forma sistemática e extremamente bem-sucedida desconstrói todo o conceito de reencarnação.
“O que está se reencarnando?” ele perguntou: “Quem está reencarnando?” e “O ser reencarnado será o mesmo ou diferente na próxima vida?”
“Śākyamuni profetizou que você, Maitreya, será o próximo Buda. Você sabe o que isso significa? Isso significa que todos, não apenas você, renascerão como Buda.”
Esta é uma afirmação de importância crucial, mas Vimalakīrti não para por aí.
“Quando você alcançar a liberação absoluta, Maitreya, todos os seres sencientes também alcançarão a realização absoluta.”
Aqueles de nós que estão marinando no Budismo há algum tempo sabem pelo menos uma oração que inclua a frase: “Que todos os seres sencientes alcancem iluminação". Mas o que isso significa? Estamos orando pela paz mundial? São desejos, algo que não acreditamos que possa acontecer, mas oramos por isso porque achamos que é a coisa certa a fazer, até mesmo a politicamente correta? Ou o quê?
Alguém nesta terra ousa sugerir que a paz mundial seja inteiramente impossível?
Absolutamente não! No entanto, o objetivo de um futuro em que todos vivam juntos pacificamente é, infelizmente, cem por cento inatingível. Se for esse o caso, e quanto à iluminação de todos os seres sencientes? É um objetivo tão impossível quanto a paz mundial? De jeito nenhum. A iluminação universal é cem por cento alcançável. A aspiração Mahāyāna de que todos os seres sencientes alcancem a iluminação não é simplesmente uma questão de boa vontade, ou capricho, 'todos somos um, somos todos o pensamento positivo do Buda. Não é o tipo de aspiração na qual, no fundo, não podemos realmente acreditar. Não é nada disso.
Do ponto de vista absoluto, todos os fenômenos sempre foram puros. Eles sempre foram, portanto, desprovidos de falhas, impurezas, sentimentos negativos e emoções, todas essas coisas são temporárias. Dito de outra forma, justamente porque as falhas e as impurezas são temporárias, elas não chegam nem perto de ser a verdadeira natureza de todos os fenômenos. E é por isso que podemos estar confiantes na crença de que todos os seres sencientes realmente podem se tornar iluminados.
O que Vimalakīrti diz a seguir também é extremamente importante, especialmente para nós. Quantos de nós pensamos que, no mínimo, deveríamos aspirar a trabalhar duro e praticar o Dharma diligentemente para alcançar a iluminação? Provavelmente muitos de nós. Mas pense bem: o que significa “iluminação”? Do fundo do coração, o que você acha que é a iluminação? Você anseia por iluminação porque você acha que seria como alcançar o sonho inimaginável de um longo feriado? Uma pausa interminável durante a qual, finalmente, você não precisa marcar consultas ou sofrer da agitação do saṃsṃ āra? A sua ideia de iluminação é não ter ou precisar fazer nada?
O que Vimalakīrti parece estar dizendo aqui é que essas noções de que a iluminação seja uma ‘travessia’, ou um ‘chacoalhar de ombros’, ou ‘terminar’, ou ‘passar’ pela jornada do saṃsṃ āra’, estão completamente erradas. É igualmente errado imaginar que nossa conquista final seja um estado iluminado chamado nirvāṇaṇ . Tudo é e tem sido desde o início sem princípio, imaculado, puro e além da dualidade. Então, pensar que precisamos iluminar ou purificar alguém ou alguma coisa não poderia estar mais errado. E se Maitreya está dizendo algo diferente, diz Vimalakirti...
“... você está enganando esses seres divinos! Não faça isso! Não deixe esses jovens deuses e deusas com a impressão de que a iluminação é um feriado sem fim...” “Não é! E de qualquer maneira, não é genuíno que um bodhisattva gostasse de alcançar esse tipo de iluminação, porque nenhum bodhisattva genuíno gostaria de passar a eternidade sem fazer nada.”
Eu acho que ele está certo. Imagine tirar férias de doze anos no Havaí. Pergunte a si mesmo quantas vezes você conseguiria caminhar na praia de Waikiki antes de ficar entediado? Quantas vezes você poderia comprar óculos de sol com entusiasmo? Com quantas marcas diferentes de protetor solar você se animaria? Então quanto tempo não fazendo nada no Havaí por doze longos anos se tornará um pesadelo? É por isso que Vimalakīrti continuou dizendo:
“Você não deveria apresentar a iluminação como sendo o destino final. Não engane esses seres divinos dizendo isso!
“A libertação não consiste apenas em libertar seu corpo ou sua mente; libertação deve estar livre de todas as referências, marcas ou sinais.
“Iluminação é não ter nenhuma referência, é estar além de qualquer referência.
“A Iluminação não pode ser definida pela mente subjetiva.
“A Iluminação não pode ser fabricada, inventada ou criada.
“Iluminação não é faz-de-conta.
“A Iluminação não é o subproduto de esperanças ou desejos.
“A Iluminação está além de todas as visões.
“A Iluminação não pode ser desejada – como você pode desejar a liberação?
“A Iluminação não é abandonar nem adotar; está além de apreender algo e além da fixação.
“A Iluminação nada mais é do que saber que tudo é igual.”
Tenha em mente que esta conversa aconteceu há dois mil e quinhentos anos, à sombra de um bosque de mangueiras. Ainda hoje, com todas as ferramentas acadêmicas, bibliotecas e fontes de pesquisa que temos ao nosso alcance, ainda lutamos para compreender esta realidade surpreendentemente ousada, revolucionária e esse texto deliberadamente autodestrutivo que zomba de suas próprias teorias e ri de seu próprio dogma.
Por que autodestrutivo? Sempre que palavras são usadas, somos instantaneamente atraídos ao mundo das referências, rótulos e conceitos, mas a iluminação – que está notoriamente além de tudo isso, portanto impossível de entender intelectualmente, conceitualmente ou reverencialmente – não pode ser descrita em palavras. Como você pode ver, os questionamentos dos ensinamentos de Vimalakīrti foram de um padrão excepcionalmente alto, e não se pode ser mais objetivo que isso.
Jagatindhara
Em seguida, Buda pediu ao famoso puro monge Jagatindhara que visitasse Vimalakīrti em seu nome. Mas como Jagatindhara esteve implicado numa situação envolvendo Vimalakīrti e algumas pessoas de beleza deslumbrante, meninas das quais ele ficava terrivelmente envergonhado, ele não queria ir.
Certo dia, Jagatindhara estava ensinando em seu quarto quando, sem aviso prévio, Indra, o Senhor dos Deuses, entrou seguido por uma comitiva de voluptuosas garotas.
“Pelo menos ele se parecia com Indra”, disse Jagatindhara. “E quem mais traria tantas deusas lindas consigo?”
Indra é um dos maiores patronos e protetores do Dharma. Ele sempre guardou os ensinamentos do Buda, e ainda hoje zela pelos seguidores do Buda com solicitude inabalável.
“Na verdade, quando vi tantas deusas seguindo o Senhor Indra na sala, senti-me obrigado a alertá-lo contra a tentação”, continuou Jagatindhara. “Faça sua vida valer a pena”, ele disse. “Use seu precioso corpo significativamente. Não seja muito ganancioso. Lembre-se
da impermanência.”
Acho que Jagatindhara estava sendo um pouco previsível aqui. Quem entre nós não esperaria que um monge bom, preocupado e compassivo desse uma palestra sobre sensualidade? Mas o que aconteceu a seguir foi tudo, menos previsível. Para o espanto de Jagatindhara, quando ele terminou de falar, Indra ofereceu-lhe todas as suas garotas.
“Como você pode pensar numa coisa dessas?” respondeu Jagatindhara. “Eu sou um monge! Você, entre todas as pessoas, deve saber que os filhos de Śākya são celibatários!”
Śākya era o nome da família do Buda e, depois de fazer os votos monásticos, dizia-se que monges e monjas eram filhos ou filhas dos Śākya. Se uma pessoa nascesse originalmente na família de um sapateiro, um gangster ou mesmo de um intocável – não importa qual fosse sua linhagem ou casta original – uma vez tornando-se monásticos, pertenciam à família do Buda, aos Śākyas.
“Oferecer uma garota a um monge é considerado totalmente ofensivo!” Continuou Jagatindhara, profundamente ofendido: “E você me oferece um rebanho inteiro!” Enquanto discutiam os prós e os contras de tal oferta, de repente, do nada, Vimalakīrti invadiu a sala.
“Jagatindhara, o que você está fazendo? Como você pode confundir esta criatura com o Senhor dos Deuses? Abra seus olhos! Você não consegue ver que é Māra, o Senhor da Ilusão...” – o Diabo, Satanás, o maligno, o Enganador, seja lá como você o chame –
“Ele está disfarçado, a intenção dele é enganar. E você caiu nessa!”
Māra é chamado de ‘Senhor da Ilusão’ porque ele pode se disfarçar de qualquer um ou qualquer coisa. Ele também tem a capacidade de desaparecer à vontade.
“E você”, gritou Vimalakīrti, virando-se para Māra. “Como você pode pensar em dar a um monge todas essas garotas? Para que ele precisa de garotas?” Vimalakīrti então respirou fundo.
“Então vou te dizer uma coisa”, disse ele. “Por que você não dá todas elas para mim?”
Naquele momento, o único pensamento na cabeça de Māra era escapar. Aquele Licchavi realmente o aterrorizou e ele estava desesperado para desaparecer e ficar o mais longe possível de Vimalakirti. Mas como Vimalakīrti foi imensamente mais forte, ele dominou facilmente as habilidades mágicas de Māra e Mara ficou preso. Enquanto ele se encolhia diante de Vimalakīrti, uma voz do céu ecoou:
“Você deveria oferecer suas meninas para Vimalakīrti. Até que você faça isso, você não será capaz de desaparecer."
Māra imediatamente fez a oferenda e Vimalakīrti aceitou cada uma delas. Lindas garotas, que na verdade não eram deusas, eram demônios.
“Agora que vocês são todas minhas”, disse Vimalakīrti, “a primeira coisa que vocês devem fazer é o voto de bodhisattva.”
Quando fazemos o voto de bodhisattva, prometemos não apenas não prejudicar outros seres, mas ajudá-los ativamente. E não ajudar de forma escassa ou trivial no caminho, prometemos ajudá-los a compreender a verdade. Este é o voto que Vimalakīrti fez com que todas as diabinhas fizessem.
Enquanto isso, Jagatindhara estava se sentindo péssimo com o quão fácil foi para Māra enganá-lo. Eu também suspeito que ele sucumbiu instantaneamente, apaixonado por pelo menos uma das garotas e estava aplicando todos os métodos que pudesse para resistir a ela.
(Somente Māra poderia invocar tais irresistíveis sedutoras). Além disso, Jagatindhara acabara de testemunhar quão facilmente Vimalakīrti, entre todas as pessoas, havia lidado com Māra. A legendária e desenfreada autoindulgência de Vimalakirti poderia ter feito dele a vítima ideal de Māra, mas Vimalakīrti zombou de Māra e de seus métodos diabólicos.
Resumindo, Jagatindhara devia estar se sentindo extremamente desconfortável.
“Agora vocês fizeram o voto de bodhisattva”, disse Vimalakīrti às meninas: “A única coisa que vocês podem desejar é a Alegria Suprema. Significa que vocês não podem mais desejar a felicidade mundana.”
“O que é essa ‘única’ coisa que devemos desejar?” perguntaram as garotas. “O que é ‘Alegria Suprema’?”
“AAlegria Suprema é admirar e adorar o Buda”, respondeu Vimalakīrti.
“Alegria Suprema é admirar e adorar o Dharma e desejar ouvir o palavras do Dharma.
“Alegria Suprema é admirar, homenagear e servir o Sangha.
“Alegria Suprema é esmagar seu próprio ego e orgulho.
“Alegria Suprema é não ficar preso a objetos de prazer.
“AAlegria Suprema é ver todos os cinco agregados como algozes horríveis.
“Alegria Suprema é ver que todos os seus elementos como completamente imprevisíveis, como cobras temperamentais.
“Alegria Suprema é ver todos os seus sentidos e percepções sensoriais como cidades vazias.
“AAlegria Suprema é sempre valorizar o bodhichitta.
“Alegria Suprema é desejar ajudar os outros, aspirar a ser generoso, e ter alegria ao praticar disciplina, paciência, diligência, concentração obstinada e sabedoria imaculada.
“Suprema Alegria é ter entusiasmo em sair com aqueles que compartilham das mesmas opiniões que você - opiniões como, 'todas as coisas compostas são impermanentes’, ‘todas as emoções são dor’, etc.
“Alegria Suprema é não desdenhar aqueles que não compartilham de sua opinião, mas sim ser paciente, tolerante e de mente aberta.
“Alegria Suprema é prestar homenagem e reverenciar o Guru.
“Alegria Suprema é separar-se de amigos que exercem má influência sobre você.
“AAlegria Suprema é o desejo de praticar o Dharma.”
E muito mais - deve ter levado algum tempo para Vimalakīrti percorrer a lista inteira.
Quando ele terminou, Māra, o ex-chefe as meninas, disse: “Vamos para casa”.
“Mas você simplesmente nos entregou. Você nos deu a ele!” protestaram as meninas. "E ele nos diz que não podemos gostar das mesmas coisas que gostávamos antes. Nós devemos gostar de outras coisas agora!”
“Ei, você!" disse Māra, enquanto se virava para Vimalakīrti. “Você não deveria ser um
bodhisattva? Não é você que devia não ter apegos? Não é você que devia ser capaz de desistir de tudo? Vamos ver você fazer isso. Desista destas garotas. Desista delas agora mesmo! Ou você não pode deixá-las ir agora que se apoderou delas?
“Ok...” disse Vimalakīrti, sorrindo levemente. “Vou deixá-las ir. E de qualquer forma, é hora de você e sua comitiva voltarem para o lugar de onde vieram.”
As meninas não gostaram nem um pouco da ideia e imediatamente confrontaram Vimalakīrti.
“Foi você quem nos fez fazer o voto de bodhisattva! Você nos disse que deveríamos gostar disso e não daquilo. No entanto, você é aquele que está agora nos mandando de volta ao mundo de Māra, onde é escuro, pecaminoso e degenerado. Como vamos lidar com isso?”
E agora, a reviravolta inesperada...
“Meninas”, disse Vimalakīrti, pacificamente. “Vocês devem investir todo o seu tempo e energia na ‘Lâmpada Inesgotável do Dharma’. O que é isso? Assim como cem mil lâmpadas podem ser acesas com uma única chama sem que sua luz diminua, um bodhisattva pode acender a intenção de bodhichitta em centenas de milhares de seres sencientes sem diminuir de forma alguma seu próprio bodhichitta.”
Esta foi a maneira de Vimalakīrti dizer às meninas que elas não precisavam preocupar-se em manchar suas boas qualidades recém-descobertas. Voltando com Māra elas seriam de muito maior benefício para os seres sencientes do que ficando com Vimalakirti.
Então ele fez sua grande jogada.
“Voltem para a Terra de Māra. Acenda a Lâmpada do Dharma, e fazendo isso, o Dharma se tornará inesgotável em todos os lugares mais improváveis.”
O que Vimalakīrti parece estar dizendo aqui é que em vez de evitar lugares sujos, pecaminosos, materialistas e profanos, o dever de um bodhisattva é fazer com que visitá-los seja uma prioridade. Jagatinadhara testemunhou tudo isso, assim como a supremacia de Vimalakīrti ao envergonhá-lo.
“... é por isso que não quero ir para Vaiśālī”, disse ele ao Senhor Buda,
“Eu tremo só de pensar em ver Vimalakīrti novamente. Por favor, não me envie.
Suddata
Os sutras nos dizem que os indianos ricos adoravam fazer oferendas generosas aos seus mestres espirituais, como se cobrissem prados inteiros com ouro. Até hoje, as famílias indianas abastadas continuam a manter a tradição de fazer ofertas regulares e generosas aos monges, monjas e àqueles que renunciam a vida mundana para seguir um caminho espiritual.
Suddata era um monge, um bodhisattva, filho de um homem extravagantemente rico, um comerciante. Ele foi a próxima escolha de Buda como emissário. Suddata visitaria Vaiśālī em seu nome? Mas a memória do encontro do próprio Suddata com Vimalakīrti ainda estava muito fresca em sua mente e ele também implorou para ser dispensado da missão. "Por favor, Senhor Buda, não me faça ir.”
Suddata estava fazendo grandes oferendas a um enorme número de pessoas, quando de repente, vindo do nada, Vimalakīrti apareceu diante dele.
“O que você está fazendo, Suddata!” exclamou Vimalakirti. "Você realmente considera essas escassas ofertas como generosas? É esta a extensão da sua chamada generosidade? É isso? Bem, então não é generosidade genuína. Qual é o objetivo? O que você deveria oferecer a essas pessoas é a ‘verdade’
– Esse é o tipo supremo de generosidade. Você também deveria oferecer amor, compaixão, alegria, equanimidade e tudo mais...”
Suddata ficou extremamente impressionado. Tenho a sensação de que ele estava particularmente receptivo, porque é dito que ele ficou tão comovido com as palavras de Vimalakīrti que reuniu todas as joias que possuía – pérolas, diamantes, ouro, tudo – e ofereceu para Vimalakīrti. A princípio, Vimalakīrti não quis aceitar nada disso.
“Por favor, aceite o que eu ofereço”, disse Suddata, “e faça o que quiser com isso."
Eventualmente, Vimalakīrti aceitou tudo, escolheu uma inestimável série de pérolas enormes, cortou-as em duas e ofereceu metade aos budas e a outra metade para os mendigos mais desprezados da cidade. Tendo oferecido exatamente o mesmo número de pérolas tanto para os budas quanto para os mendigos, ele fez um longo discurso sobre mérito.
Este é outro ensinamento muito importante. Tendemos a imaginar que ‘acumular mérito’ significa fazer oferendas aos budas e seres sublimes. Mas aqui, Vimalakīrti afirma inequivocamente que os seres sencientes são um campo de mérito tão importante quanto os budas o são.
Mañjuśrī
E o Buda se volta então para Mañjuśrī. Ele seria o emissário do Buda? Seria ele a visitar Vaiśālī para descobrir como Vimalakīrti estava? E para surpresa de todos, Mañjuśrī concordou imediatamente.
“Vimalakirti? Sim, eu irei. Esse homem é tão talentoso!” Ele então cantou louvores a Vimalakīrti por algum tempo. Vimalakīrti é um ser excepcional, disse Mañjuśrī. Ele sabe exatamente como outra pessoa experimenta seus sentidos. Ele vê o que eles veem, ouve o que ouvem, prova do que provam, e assim por diante – o que, se você pensar bem, é um grande negócio. O resto de nós só pode imaginar o que é macarrão ou curry de frango e o gosto que tem na boca de outra pessoa, mesmo quando essa pessoa está bem à nossa frente, e o sabor que imaginamos é inteiramente baseado no macarrão ou no curry de frango que
nós mesmos já provamos. Vimalakīrti, por outro lado, podia experimentar o que outra pessoa provava através de seus sentidos, sem qualquer referência aos seus.
O fato de Mañjuśrī admirar Vimalakīrti por tais qualidades foi um grande elogio, e demonstrou que, longe de ser um empresário comum, Vimalakīrti não era apenas um ser sublime, mas um ser excepcionalmente realizado. Pessoas como nós, que afirmam entender como as outras pessoas se sentem, só podem se basear na compreensão projetada daquilo que nós mesmos vivenciamos. Em outras palavras, nunca sabemos realmente como é nos colocarmos no lugar de outra pessoa, não sabemos como nos colocar nos sapatos delas, simplesmente calçamos nossos próprios sapatos e fingimos que são de outra pessoa. Somente seres muito realizados – como Vimalakīrti, ou Mañjuśrī – podem provar como o outro prova, ver através dos olhos do outro, e cheirar como o outro cheira, sem ter que confiar em seus próprios limites e sua incompleição para termos de referência.
Não é difícil imaginar o quão emocionados e entusiasmados todos no mangueiral se sentiram quando Mañjuśrī concordou em visitar Vimalakīrti. Ou como decidiram que deveriam segui-lo até Vaiśālī para testemunhar o que prometia ser um encontro histórico imensamente significativo – seria como o mesmo tipo de excitação que filósofos sentiriam diante da perspectiva de Lao Tzu conhecer Aristóteles, ou Karl Marx aparecendo em um talk show com Chuang Tzu.
Quando Mañjuśrī concordou em visitá-lo, Vimalakīrti, que supostamente ainda estava doente na cama, soube instantaneamente que aquele estava a caminho. Ele também sabia que Mañjuśrī viria acompanhado por uma grande e curiosa multidão.
“Mañjuśrī está chegando”, pensou Vimalakīrti, “Então devo deixar minha casa vazia.”
Instantaneamente, as pessoas, móveis, tapetes, sofás e cadeiras desapareceram deixando o palácio vazio, exceto pela cama em que Vimalakīrti estava deitado. Foi como esvaziar todos os setecentos e setenta e cinco quartos no Palácio de Buckingham, deixando uma cama de solteiro no meio de um dos quartos com a Rainha deitada nele. Como os servos de Vimalakīrti, atendentes e guarda-costas também desapareceram junto com os móveis, não havia ninguém para cumprimentar Mañjuśrī e sua comitiva quando eles chegaram aos portões do palácio. Tudo o que encontraram foi um palácio grande e vazio e Vimalakīrti deitado em sua cama.
Mañjuśrī cumprimentou Vimalakīrti educadamente e perguntou sobre sua saúde fazendo todas as perguntas habituais. "Como vai você? Quando você adoeceu? O que há realmente de errado com você? E assim por diante. À primeira vista, esta conversa sobre a doença pareceria bastante comum, mas as respostas surpreendentemente brilhantes de Vimalakīrti
tornaram-na filosoficamente inovadora.
“Seus médicos dizem quando você começará a se sentir melhor?” perguntou Mañjuśrī.
“Acho que nunca vou melhorar”, disse Vimalakīrti. “Porque enquanto houver desejo e apego, haverá existência.”
Claro, pessoas como você e eu não conseguem entender uma única palavra do que esses dois ilustres bodhisattvas disseram naquele dia. Nossas mentes são muito superficiais, monótonas e preconceituosas para compreender a profundidade e acuidade de mentes tão gigantes.
Mas quando Vimalakīrti disse ‘existência’, ele poderia estar se referindo ao saṃsṃ āra – ou
seja, tudo que é limitado pelo tempo, espaço, direção e quantidade.
Se temos um desejo, esse desejo nos faz projetar, e essa projeção é o que chamamos ‘existência’. O chamado ‘saṃsṃ āra’ não é, portanto, outra coisa senão a existência em si. A famosa frase de Descartes, “Penso, logo existo”, sugere algo semelhante, mas a declaração de Vimalakīrti abrange muito mais. Ele parece estar dizendo que enquanto houver desejo, haverá existência samsárica e enquanto existirem seres saṃsṃ āricos, eu, Vimalakīrti, permanecerei doente. Ou, enquanto houver existência, também haverá saṃsṃ āra; e enquanto houver saṃsṃ āra, nós continuaremos a imaginar que exista compaixão pelos seres samsáricos.
Vimalakīrti prosseguiu dizendo: “Quando todos os seres sencientes estiverem livres de todas as doenças... ou quando os seres sencientes estiverem livres de fazer distinções – que é outra maneira de descrever a liberação absoluta – “... só então eu, Vimalakīrti,
estarei livre da doença do sujeito e do objeto.”
Que coisa para dizer! Que assunto para discutir! E lembre-se, ele estava respondendo a uma pergunta feita apenas por cortesia. Ainda assim, desencadeou um dos ensinamentos
mais convincentes do Sūtra de Vimalakīrti.
“Como você pegou essa doença?”
“A compaixão me deixou doente”, respondeu Vimalakīrti. “Bodhisattvas ficam doentes por causa da compaixão.”
Outra resposta sensacional! Foi então que Mañjuśrī percebeu que o palácio estava completamente vazio.
"O que aconteceu? Por que sua casa está vazia? Onde está todo mundo? Por que você não tem ao menos uma enfermeira?
“Os campos de Buda (Buddhafields) estão sempre vazios”, respondeu Vimalakīrti.
“Vazios de quê?” perguntou Mañjuśrī.
“Vazios do vazio.”
“Como pode o ‘vazio’ser ‘vazio’?”
“Estar ‘vazio do vazio’ é pensar ‘vazio é vazio’ e ser vazio disso.”
Não demorou muito para Vimalakīrti chegar ao âmago da questão! Ele estava dizendo que estar “vazio do vazio” é estar além de fazer a distinção entre ‘vazio’ e ‘cheio’? Estar vazio de conceitos? É o que parece para mim.
“Onde está o vazio?” perguntou Mañjuśrī.
“Você encontrará isso nas sessenta e duas visões erradas”, respondeu Vimalakirti.
(As sessenta e duas visões erradas podem ser encontradas no Brahmajāla Sutra.)
Que resposta fantástica! E um excelente ponto. Muitos seguidores do Dharma, especialmente do Mahāyāna, teriam esperado a resposta para ‘Onde está o vazio?’ ou ‘O que é o vazio?’ ‘Vazio é o ensinamento final do Buda. O vazio é encontrado no mais alto sutras, como o Prajñāpāramitā Sūtra...’ e assim por diante. Mas em vez disso, Vimalakīrti cita não as visões corretas para descrever o vazio, mas as visões erradas. Nós todos deveríamos tomar nota disso.
“De onde vêm essas sessenta e duas visões erradas?” perguntou Mañjuśrī. Obviamente, controlar qualquer parte dessa troca é extremamente difícil, muito menos tentar descrever o que Vimalakīrti disse a seguir. Eu tinha compreendido em nível intelectual o que Mañjuśrī e Vimalakīrti discutiam neste sutra, ou nas muitas outras conversas sobre este assunto que foram registradas, minha percepção do mundo samsárico seria de pouca importância, nada mais que sombras. Ou uma bolha. Ou um jogo de faz de conta. Ou um brinquedo. Mas não entendi nada disso, em nenhum nível. Quando pessoas como você e eu olhamos, vemos, ouvimos e provamos, nossa experiência não é a de uma bolha ou de um sonho ou de um brinquedo, nossa experiência é tangível, concreta, sólida e muito palpável.
“As sessenta e duas visões erradas surgem como uma exibição, vibração, matiz ou humor que reflete a qualidade do Tathāgatagarbha, a natureza búdica”, respondeu Vimalakirti.
Uma declaração chocante na melhor das hipóteses. Mas particularmente escandaloso para aqueles de nós que tendem ao puritanismo, moralismo e dualismo, e cujo forte hábito é julgar o certo do errado. Pessoas como nós sempre esperam que visões erradas rastejem para fora de poços imundos ou masmorras fétidas. Mas parece que é isso que Vimalakīrti está dizendo a Mañjuśrī, que a fonte de todos os erros e pontos de vista é encontrada naquilo que consideramos o sublime. Esta declaração é citada muitas vezes nos ensinamentos Vajrayāna. Mesmo assim, é uma noção virtualmente incompreensível para seres dualistas como nós. É como ouvir que a fonte das trevas é a luz. Mas pensando bem, o escuro e o claro não são uma justaposição natural? A escuridão não existe apenas quando comparada com a luz, e vice-versa? Não pode haver apenas escuridão, pode? Nem pode haver apenas luz. Se as trevas e as sombras não nascessem da luz, ou a luz nascesse da sombra, como os fotógrafos seriam capazes de fazer sua mágica?
Ao mesmo tempo, tenho a sensação de que esta conversa não é apenas sobre o surgimento dependente de luz e sombra – o que em si é mistificador, especialmente quando você ouve isso pela primeira vez. Não, essa conversa é sobre muito mais. É como desenterrar algo acreditando que aquilo é uma pedra e depois descobrir que na verdade é um diamante.
Disseram-me que o diamante Koh-i-Noor não foi lapidado e polido até bem tarde em sua história, mas sempre foi um diamante. Se você o visse antes de ser cortado, pensaria que era apenas mais uma pedra feia, o que seria uma visão errada. Agora que foi cortado, é fácil reconhecer – é um dos diamantes mais famosos do mundo – até hoje, a Índia e o Paquistão reclamam de como os britânicos o roubaram dos Sikhs no século XIX. Mas a questão aqui é que, seja lá o que fosse antes de ser cortado e polido, já era o famoso diamante Koh-i-Noor, e era um diamante genuíno muito antes de ser chamado de Koh-i-Noor. Então, assumir que fosse apenas um pedaço de rocha, teria sido uma visão errada.
“Onde estão seus atendentes?” perguntou Mañjuśrī. “Por que não há ninguém aqui para ajudá-lo?”
“Demônios e aqueles que me perturbam são meus atendentes”, respondeu Vimalakirti.
Lembre-se, a doença de Vimalakīrti e seus sintomas são detalhes importantes porque toda essa conversa foi desencadeada por uma comoção num certo mangueiral sobre quem visitaria um homem que devia estar doente. Novamente, é uma luta entender os insights profundos que esses dois bodhisattvas superlativos continuam a trazer, mas parece-me que eles chegam à conclusão de que estar doente é acreditar em um self. Você está doente se você se apega à ideia de um self e fica doente ao imaginar que esse self é verdadeiro, presente e vivo. ‘Eu’ é, obviamente, uma referência; mas por mais forte e teimosa que esta referência possa parecer à primeira vista, quanto mais de perto você a examina, menos distinta ela se torna. No entanto, a nossa constante referência a esse ‘Eu’ é a fonte de todas as nossas outras referências, e tendo estabelecido um ‘Eu’, muitas outras designações se criam – outros, meus, deles, bom, mau, feio, certo, errado, doador, receptor, vítima, predador, céu, terra, inferno, saṃsṃ āra, nirvāṇaṇ , moral, imoral, homens, mulheres – e a cada um delas tentamos desesperadamente nos agarrar. Algumas nos agarramos porque achamos que são boas, outras tentamos deixar de lado ou eliminar completamente porque nos parecem ruins, perigosas ou indignas de confiança. E examinando tudo para julgar se as coisas são dignas ou indignas para nós, acabamos nos apegando tanto ao que é bom quanto ao que é mau, e cada vez mais firmemente.
Do ponto de vista desses dois bodhisattvas, nossa tendência ao apego é realmente a
doença. Só estamos saudáveis, bem e fortes quando não temos pontos de referência.
Embora queiramos curar nossas doenças aplicando o remédio de um caminho espiritual – ou seja, as práticas de generosidade, paciência, concentração e assim por diante – porque esse caminho tem o objetivo da iluminação, é apenas outra forma de doença. Portanto, no que diz respeito ao que Mañjuśrī e Vimalakīrti estão ocupados, seja o que for que pratiquemos nesse caminho – mesmo meditação – também é uma doença.
Eles vão ainda mais fundo ao dizer que se pensarmos que temos algo que precisa ser extraído, apagado ou purificado – como o desejo, a raiva ou o ciúme – o próprio fato de pensarmos que temos de nos livrar deles, já é em si uma doença. Assim como também é ficar imaginando que devemos adotar, alcançar, adquirir ou acumular algo, seja nirvāṇaṇ ou iluminação. Ou mesmo a compaixão subjetiva e objetiva de acreditar que existe um ‘Eu’ que sente compaixão e seres sencientes pelos quais sentir compaixão.
Basicamente tudo é uma doença ou um conflito. Uma referência, um movimento e uma corrente de pensamento são todas doenças porque nos afastam da verdade. Imaginar que existe uma doença também é uma doença, assim como a ideia de que existe um remédio ou uma cura. O que torna o anseio pela liberação uma doença, é porque esse é o resultado de acreditar que você está vinculado ao saṃsṃ āra e que aquilo que o prende a ele está impedindo você de se libertar.
Todas as nossas referências são doenças, são como vírus, “vírus de doenças”. Mas de todas as doenças que existem no saṃsṃ āra, duas requerem nossa atenção especial: a referência à “liberação” e a referência à “escravidão”.
Liberação e Escravidão
O que queremos dizer com “liberação” e “escravidão”? Um dos ensinamentos fundamentais do Mahāyāna é que a base é o vazio, o caminho não tem características e o resultado está além da aspiração. Com base nesse ensinamento, se um bodhisattva acredita na liberação e pensa que pode aspirar a essa liberação, sua crença em um resultado é uma forma de escravidão. Mas se esse bodhisattva estiver no saṃsṃ āra, armado com métodos hábeis, como a compaixão motivada pelo desejo de liberar os seres sencientes, o resultado é a liberação. Isso é o que Vimalakīrti quis dizer quando disse que se a meditação de um bodhisattva for sem distrações, mas isenta de sabedoria, ela é “escravidão”.
Assim, um bodhisattva está doente se medita, e mesmo que essa meditação seja livre de distrações, mas estiver isenta de sabedoria, então é pior – na verdade, é aí que o bodhisattva fica realmente doente. Da mesma forma, o tipo de permanência calma, concentrada e sem distrações que os praticantes modernos de vipashana tanto prezam, também é uma doença fundamental.
Um bodhisattva só estará livre da doença se puder sentir o sabor de sua meditação – por exemplo, através da prática da calma quietude. Mas se em vez de apenas se contentar com estabelecer esse estado de calma ele conhecer os métodos hábeis necessários para transcender e desfazer essa permanência calma, indo além de estar simplesmente atarefado com a capacidade de concentração, então sim o bodhisattva será libertado.
Se um bodhisattva tiver sabedoria, mas essa sabedoria for desprovida de qualquer habilidade e métodos – em outras palavras, se a sabedoria carecer de compaixão – é uma doença. Mas ele será liberado se a sua sabedoria for acompanhada de métodos hábeis (as orientações transmitidas).
Como um bodhisattva fica preso, restringido ou escravizado por métodos hábeis aos quais falta sabedoria? O que causa esse tipo de escravidão?
Vimalakīrti diz que todas as visões, emoções, propensões e ações virtuosas que não foram dedicadas à iluminação de todos os seres sencientes escravizarão um bodhisattva. Como um bodhisattva alcança a liberação usando métodos hábeis acompanhados por sabedoria?
Dedicando tudo para a iluminação de todos os seres sencientes.
Que ótima maneira de praticar o desapego! E isso sem dizer que devemos ter como objetivo não ter apego a posses, fama, família ou mesmo ao nosso próprio ‘Eu’. No entanto, Vimalakīrti parece indicar que há algo mais além disso tudo. Não ter nenhum apego ao caminho, diz ele, irá libertar você de todas as outras formas de apego. Uau! Mas é realmente possível desenvolver esse tipo de habilidade, já que você é um praticante espiritualmente poderoso e maduro? Bem, não. Vimalakīrti e Mañjuśrī sugerem exatamente o oposto. Mesmo alguém tão comum como eu pode e deve começar a praticar o sentimento de não ter nenhum apego ao caminho ou ao resultado. E todos nós deveríamos adotar o hábito de dedicar sempre nossa prática à iluminação de todos seres conscientes.
Imagine que você tivesse a oportunidade de testemunhar uma conversa entre Platão e Lao Tsé, imagine que, como um filósofo, você tivesse a capacidade de apreciar seus insights e estivesse realmente disposto a aprender com eles! Uma vez tudo terminado, você não se vangloriaria de sua experiência e mostraria o que aprendeu? Você não tentaria reter na memória tanto quanto pudesse do que aqueles dois pensadores disseram sobre direitos humanos, destino, predestinação, livre-arbítrio e assim por diante? É dessa forma que sinto sobre essa conversa entre Vimalakīrti e Mañjuśrī. A diferença, porém, é que aquilo de que falavam era muito mais profundo do que uma mera ontologia.
Na verdade, o que deveria fazer seria simplesmente ler e contemplar as conversas
apresentadas neste sutra. Só isso já me faria muito bem. Melhor ainda seria se eu não os contemplasse, mas apenas lesse suas palavras com uma mente completamente aberta, sem fazer quaisquer suposições ou abrigando quaisquer expectativas. Se eu pudesse mergulhar no texto, sem hesitar por um só momento e com toda devoção de meu coração, eu rapidamente seria libertado do fardo da confidência e da dúvida. (dualismo) Eu poderia colher ainda mais benefícios simplesmente colocando o texto do Sūtra de Vimalakīrti numa prateleira alta em meu quarto, oferecendo velas, flores, incenso e comida, depois venerando-os como a conversa mais profunda que já ocorreu nesta terra. Fazendo isso elevaria minha compreensão deste texto a um nível totalmente diferente. Mas olhe para mim! Estou dividido entre querer aumentar meu conhecimento e fazer anotações extensas por um lado, e por outro, querendo gabar-me desses dois gigantes espirituais e impressionar vocês com citações de suas conversas – é por isso que estou escrevendo este prefácio. Ao mesmo tempo, minha própria incapacidade de entender até mesmo uma fração de sua discussão é profundamente humilhante.
Sariputra
Enquanto Vimalakīrti e Mañjuśrī conversavam, Śāriputra examinava a sala vazia.
“Não há cadeiras aqui. Nem mesmo esteiras”, pensou. “Esses grandes bodhisattvas, arhats e dignitários percorreram todo o caminho até Vaiśālī para visitar este comerciante, mas não há lugar para eles se sentarem. Onde estão todas as cadeiras dele? Lendo instantaneamente sua mente, Vimalakīrti disse: “Ei, Śāriputra, você veio aqui pelo Dharma ou para sentar-se numa cadeira?”
Honestamente, Śāriputra não estava nem aí para onde ele estivesse sentado. Mas como a discussão que se seguiu sobre ‘assentos’ e o desejo de sentar tão importante, as bênçãos do Buda devem, mais uma vez, ter colocado esse pensamento na mente de Śāriputra - esses seres incomparáveis não desperdiçaram seu tempo com trivialidades. Cadeiras ou assentos de qualquer tipo significam o desejo de estabelecer um lar em algum lugar, seja para morar ou fazer um ninho de amor, o objetivo é tirar o peso dos seus pés, ocupar território ficando ocioso sem se mover. Tudo isso é significativo porque a discussão agora toca no assunto de ‘ālaya’. (o lugar de armazenamento da consciência, o depósito)
Quando nos comportamos mal, se não nos redimirmos, sofreremos consequências, quando nos comportamos bem, colheremos benefícios. Mas até que qualquer um dos resultados se manifeste, para onde vai o poder dessas causas e condições? Onde tudo isso está armazenado? Onde mora? Onde está o seu ‘assento’? Deve estar em algum lugar.
Nesta conversa, um ‘assento’ representa referências, bases ou fundamentos, e o que é transferido de uma vida para outra. Basicamente, trata-se da continuidade do carma.
Atualmente, até a ciência notou que um ladrão condenado a certa pena de prisão no ano passado é, em nível celular, um ser completamente diferente um ano mais tarde. No entanto, no mundo relativo, continuamos a acreditar na continuidade, e que causa, condição e efeito são transportados. Muitos, muitos comentários foram escritos sobre este assunto. Nesta conversa entre Vimalakīrti e Mañjuśrī, descobrimos que o Budismo ensina que não existe tal coisa como uma alma verdadeira e permanente, com existência independente, que leva você para a próxima vida, ou céu, ou iluminação, nem há tal coisa como essa de uma base terrestre verdadeiramente existente.
A resposta de Vimalakīrti à pergunta de Śāriputra sobre onde eles deveriam se sentar é fulminantemente sarcástica: “Aqueles que anseiam por um lugar para sentar não estão procurando o Dharma.” Desejar um assento, disse ele, significa que você está procurando uma base, uma referência, um dogma, um sistema. Isso significa que você deseja se aninhar.
Tenho a sensação de que Vimalakīrti comparou a maneira como iludimos os seres e interagimos com o mundo – como julgamos, falamos, pensamos e valorizamos as coisas, como a forma com que o esterco da vaca cai no chão. Assim que atinge a terra, o esterco não se move, da mesma forma, quando ficamos presos a uma ideia, ela se torna tão arraigada a ponto de ficar virtualmente gravada em nossas mentes. Quando Sariputra perguntou-se sobre um lugar para sentar, Vimalakīrti aproveitou a oportunidade para explicar que querer um assento indica um desejo de um lugar para se estabelecer. Se você quiser se estabelecer, disse ele, você não está procurando a verdade – o Dharma. A única maneira de descobrir a verdade é puxando constantemente o tapete debaixo de seus pés, e isso significa que não há tempo para se acomodar. Com efeito, isso significa que não há tal coisa como esperar estabelecer-se ou sentar-se e nem mesmo assento – e é aqui que as coisas começam a ficar complicadas.
“Mas eu quero o Dharma”, insistiu Śāriputra. “Eu não estou apenas procurando um lugar para me sentar – claro que não! Só mencionei isso porque sou um convidado em sua casa, e como você é meu anfitrião, é natural que eu traga à tona o fato de não haver cadeiras ou tapetes onde possamos nos sentar. Isso não significa que não estou aqui pelo Dharma.”
“Mas Śāriputra, se você deseja o Buda, ou o Dharma, ou o Sangha”, retrucou Vimalakīrti:
“Você não deseja a verdade. O que você está procurando é algum lugar para se estabelecer.
E no seu caso, você quer se estabelecer nos três grandes assentos do Buda, Dharma e Sangha. Se você estivesse procurando a verdade, você estaria disposto a se contentar apenas em entender a verdade do sofrimento, ou a capacidade de abandonar as causas do sofrimento”.
Estas são declarações muito grandes! Se você realmente quer a verdade absoluta, você não se contentará com a cessação do sofrimento. E se você realmente quiser compreender a verdade, você não se contentará em praticar o caminho. Uau!
Vimalakīrti é realmente difícil! Mas por mais contraditórias que sejam as suas declarações como parecem ser à primeira vista, na verdade, não o são.
“Não importa onde você deseja se estabelecer, ou que tipo de ‘estabelecimento’ você está procurando, não é a verdade – mesmo que você se contente com a iluminação. Você é como uma mosca. As moscas adoram pousar no esterco ou em qualquer coisa que cheire.
Iluminação tem um cheiro muito forte e por isso você se sente atraído por ela. Mas tudo que você realmente quer fazer é pousar na iluminação e estabelecer-se nela. Você quer grudar seus quatro membros para a iluminação para que possa ficar lá para sempre. Esse é o tipo de 'resolução' que você está procurando! Você não está procurando a verdade.
Portanto Śāriputra, se você realmente deseja o Dharma, você deve primeiro aprender a não querer isto."
A refutação de Vimalakīrti à insistência de Śāriputra de que ele quer o Dharma, expondo o que realmente significaria “querer o Dharma”, é longa e muitas vezes sarcástica. Mas depois de ter dito tudo o que queria, Vimalakīrti convocou milagrosamente um número suficiente dos mais belos tronos existentes para que cada um dos grandes discípulos do Buda tivesse um lugar para se sentar. Só que havia um problema: os tronos eram gigantescos e impossivelmente altos.
Pense no impensável
Como filósofos, devemos aprender a interpretar com precisão e dar significado ao que dizemos. Por exemplo, o que você quer dizer quando diz “incrível” ou 'impensável'? Seja o que for, é muito vago. A única maneira de entender algo plenamente é ser capaz de pensar o impensável e, ao mesmo tempo, deixe o impensável permanecer impensável. Se você puder fazer isso, você está melhorando. Neste momento, a maioria de nós não consegue pensar o impensável. Os poucos que podem, descobrirão rapidamente que ser capaz de pensar o impensável significa que o impensável não é mais impensável, é um “impensável pensável”. Portanto, os bodhisattvas devem ser capazes de pensar o impensável enquanto permitem que a qualidade e o sabor do ‘impensável’ permaneçam.
Como o sapo que vive num poço e não tem vontade de ver o mundo lá fora, precisamos de coragem para sair de nossos pequenos mundos para pegar de jeito essas ideias. Não estou sugerindo que você manufature uma espécie de credulidade para si mesmo, pensar o impensável não tem a ver com credulidade, tem a ver com “mente incomensurável”.
O que temos de aprender é como não evitar automaticamente o impensável, aceitando que o impossível é possível. Mas como? Aprendendo que impossível e possível são iguais e que possível é tão absurdo quanto impossível.
Esta seção do Sūtra de Vimalakīrti está repleta de explicações semelhantes que formam um estudo aprofundado do incrível, do impensável e do inconcebível – se eu tivesse de dar-lhe um título, seria algo como ‘Explicando o que está Acontecendo’, ou ‘Os Prós e Contras da Incredibilidade’. Se você tiver tempo, você deve lê-lo.
Praticamente falando, achamos difícil pensar o impensável porque não sabemos como, e só podemos falar sobre o impensável se imaginarmos algo que seja de alguma forma crível.
Então, estamos perdendo nosso tempo? Vimalakirti diz que não, não estamos. De jeito algum. Se você morder um pedaço do céu, não é errado dizer que você mordeu o céu; se você nadar na Praia de Copacabana, não é errado dizer que você nadou no oceano. E é assim que começamos.
Nenhum daqueles que seguiram Mañjuśrī até Vaiśālī naquele dia eram pessoas comuns.
Alguns eram grandes bodhisattvas que destruíram montanhas de pensamentos, hábitos e apegos dualistas e, portanto, libertaram-se da necessidade de discernir tamanho, forma, altura, cor, certo e errado.
Neste ponto, tendo convocado tronos para eles se sentarem, Vimalakīrti disse aos arhats e bodhisattvas que cabia a cada indivíduo resolver como subir ao seu trono; e uma vez lá em cima, eles também teriam que descobrir por si mesmos como se sentir genuinamente à vontade.
Os bodhisattvas saltaram para seus tronos sem nenhum problema. Mas por alguma razão os arhats simplesmente não conseguiram. Mesmo o grande Śāriputra não conseguiu conceber em sua mente a ideia de que um trono estupendamente vasto também era exatamente o tamanho certo para seu corpo comparativamente pequeno. Seria como você ou eu deitados numa cama do tamanho de um estádio de futebol. Estaríamos confortáveis?
Não, porque nossas mentes simplesmente não conseguiriam lidar com a aparente contradição ou como lidar com isso. E nem os arhats podiam.
“Prostre-se diante do Buda Merupradīparāja, o Rei da Iluminação,” disse Vimalakīrti para Śāriputra. “Se você fizer isso, você acumulará mérito suficiente para superar tal constrangimento.
À primeira vista, a interpretação mais óbvia do que Vimalakīrti está dizendo é que existe um indivíduo chamado Merupradīparāja, um poderoso Buda verdadeiramente existente, semelhante a um deus, e que ele pode conceder todos os nossos desejos, incluindo a capacidade de sentar-se e sentir-se confortável num trono tão alto quanto uma montanha e tão largo quanto um estádio de futebol. Mas não tenho certeza se é isso que Vimalakīrti quis dizer aqui. Existe outra interpretação? Sim, mas requer irmos além de nossas mentes estreitas e teístas.
Acho que Vimalakīrti poderia estar sugerindo que prostrar-se diante do Buda Merupradīparāja não é apenas uma forma de mostrar respeito a uma pessoa exterior, um Buda, é, sim, um estado de realização. Ao entrar nesse estado de realização, os arhats poderiam ignorar o que restava de seus hábitos dualistas de fazer distinções. Depois que isso acabasse, seria então muito mais fácil para eles lidar com a estranheza de corpos humanos de tamanho normal sentados em tronos imensos.
Mas por que todo esse drama? Por que passar por toda essa bobagem só para que os arhats possam sentar-se confortavelmente nos tronos? E por que os arhats aceitariam o fardo de rezar a um Buda apenas para sentar-se num trono? É o que essencialmente Vimalakīrti estava dizendo para os arhats fazerem. O que esta história faz é levar-nos à compreensão de que através da devoção e da realização do Buda Merupradīparāja, é possível para um praticante transcender o constrangimento de ter de fazer distinções entre grande e pequeno, e que a devoção ao Buda Merupradīparāja não é outra senão devoção à não-dualidade
absoluta.
Mañjuśrī
Mañjuśrī inicia a próxima conversa com uma pergunta.
“Vimalakīrti, como um bodhisattva deveria olhar para um ser senciente?”
“Um bodhisattva deve olhar para um ser senciente da mesma forma que uma pessoa sábia olha para o reflexo da lua na água.”
Por que um bodhisattva deveria ver um ser senciente como um reflexo? Nós usualmente assumimos que um reflexo é apenas um reflexo, que não existe realmente. Ainda assim, embora uma reflexão não exista verdadeiramente, é impossível negar que podemos ver a lua refletida na superfície da água parada. E quando a lua não é obscurecida pelas nuvens ou pela água lamacenta, porque a clareza e o vazio surgem ao mesmo tempo, o reflexo da lua é tão completo, perfeito e claro como a lua lá no céu. Então, o que Vimalakīrti parece estar dizendo é que se você acredita que um ser senciente verdadeiramente existente está em algum lugar, e que os bodhisattvas podem gerar compaixão por esse ser, você está efetivamente afirmando que: a pessoa realmente existe; seus problemas e os sofrimentos existem independentemente, o diagnóstico de seus problemas não é subjetivo ou fabricado, e a solução não é fabricada, ela existe de verdade.
Imagine um médico especializado no funcionamento da mente. Sua ideia do normal é baseada nos livros que ele leu enquanto estudava para seu doutorado e como como
resultado, esse tipo de normalidade tornou-se seu objetivo. Quando ele examina você, se você não se conformar com a ideia que ele tem do que é ‘normal’, o diagnóstico dele será que você precisa de ajuda. A ajuda que ele lhe dará terá como objetivo remodelar sua mente para que se pareça com o tipo ‘normal’ dele. Na verdade, é você que sempre foi mais normal do que nunca.
Isso não é tudo. Quando você tenta ajudar alguém, simplesmente porque acredita que exista um problema, um objeto desse problema, um diagnóstico do problema e uma solução, você acabará se tornando vítima de sua própria compaixão, tristeza e preocupação. Os californianos têm uma palavra para isso: codependência. Por exemplo, uma mulher tenta ajudar o marido alcoólatra, mas no processo fica enredada no problema de como ajudar, do que é realmente ajuda, do fato de não poder ajudar e assim por diante.
O que Vimalakīrti está sugerindo aqui é que um bodhisattva deve olhar para a pessoa que está tentando ajudar da mesma maneira que olhamos para o reflexo da lua na água.
Ele também tem outras sugestões.
“Um bodhisattva deveria olhar para um ser senciente da mesma forma que um mágico olha para a exibição mágica que ele acabou de conjurar.
“Um bodhisattva deve olhar para um ser senciente da mesma forma que você olha seu próprio rosto no espelho.” Como uma miragem.
Como um bodhisattva deveria olhar para um ser senciente que pratica, realiza a prática e purifica suas contaminações? Em outras palavras, como um bodhisattva deveria olhar para um praticante que está progredindo?
“Olhe para o praticante da mesma forma que você olha para a trilha deixada por um pássaro voando no céu.” É claro que um pássaro voando não deixa rastro. Portanto, de acordo com Vimalakīrti, não há progresso, nada é abandonado e nada é alcançado. Tudo o que você pode fazer é pensar que um pássaro voou daqui para lá. É assim que um bodhisattva deveria ver o progresso de um praticante. A maioria de nós dificilmente fez qualquer progresso digno em nossa espiritualidade.
Na verdade, poucos de nós conseguimos alguma coisa. Mas como você se sentiria se seu professor lhe dissesse diretamente que o pouco que você imagina que alcançou, nada mais é do que o rastro que um pássaro deixa atrás de si enquanto voa no céu? Você se sentiria encorajado? Ou, desanimado? Eu suspeito do último.
“Então”, disse Mañjuśrī a Vimalakīrti, “se um bodhisattva vê seres sencientes como miragens e reflexões, e assim por diante, como pode esse bodhisattva então gerar amor por esses mesmos seres sencientes?” “Quando um bodhisattva vê um ser senciente como uma miragem, um reflexo ou a trilha deixada por um pássaro voador”, respondeu Vimalakīrti, não há nenhum vestígio de suposição, expectativa ou julgamento em sua opinião. A maneira como ele vê o ser senciente não é enganosa. Como ele não se deixa enganar pela sua própria visão dos seres sencientes, não há engano algum. Isso não é amor?
Vimalakīrti continua descrevendo vários tipos de amor: amor protetor, amor pacificador, amor indolor, amor inato, amor que não é contraditório, amor não dual, amor imóvel ou imperturbável, amor estável, amor puro, amor que derrota os inimigos, amor natural, amor de Buda, amor generoso, amor disciplinado, amor paciente, amor diligente, amor sincero, amor sábio, amor hábil, amor que não é hipócrita, amor que não engana, amor que não tem etiqueta de preço, amor feliz, etc. E então ele descreve compaixão, alegria e equanimidade, alcançados quando o bodhisattva sabe que os seres sencientes são como os reflexos da lua na água.
Os Ensinamentos de Vimalakirti – Parte 4
A Deusa
Mañjuśrī
Como tornar-se um Buda?
O que é não-dualidade?
Śāriputra
Ānanda
Epílogo
A Deusa
Enquanto isso, uma Deusa estava escutando a conversa deles. Ela ficou tão impressionada com esta notável manifestação do Dharma que, alegrando-se de todo o coração com tudo o que ouvira, espalhou botões e pétalas de flores sobre todos os arhats e bodhisattvas como expressão de sua devoção. As flores que pousaram sobre os bodhisattvas deslizaram graciosamente para o chão, mas aquelas que pousaram nos arhats ficaram presas aos corpos deles. Como era considerado impróprio que flores adornassem as vestes austeras de um renunciante, os arhats tentaram sacudi-las. Mas elas não cediam. Alguns arhats até recorreram à magia para tentar removê-las, mas as flores da deusa ficaram exatamente onde estavam.
Histórias semelhantes existem na tradição Zen. Como aquela sobre dois monges prestes a atravessar um rio quando uma menina, que também queria atravessar, pediu a ajuda deles.
O monge mais velho imediatamente a pegou, carregou-a até o outro lado e colocou-a na margem oposta. Mais tarde, o mais jovem monge disse: “Você é um monge, mas concordou em carregar uma mulher através do rio. Como você pôde fazer aquilo?"
O monge mais velho respondeu: “Deixei aquela garota para trás na margem do rio, mas você ainda a está carregando.”
O mesmo princípio e sabedoria se aplicam às flores pegajosas. Para os arhats, as flores
eram uma espécie de mancha, enquanto para os bodhisattvas não eram.
Eais uma vez, Śāriputra foi desafiado, desta vez não por Vimalakīrti, mas pela Deusa. E é aqui que o Sūtra de Vimalakīrti se torna ainda mais ousado.
“Não é ‘liberação’ estar livre da raiva, do desejo e da ignorância?” perguntou Sariputra.
“Isso não é liberação?”
“Esses ensinamentos só são dados àqueles que estão cheios de orgulho”, respondeu a Deusa. “Quem não tem orgulho já sabe que não existem tais coisas como raiva, desejo e ignorância e, portanto, não há nada para desdenharem ou dominarem.
Esta troca foi desconcertante para os monges Śrāvakayāna do Buda, os discípulos que estavam vinculados à disciplina do Vinaya e que tendiam a evitar mulheres. Também pode ter feito com que até alguns dos seguidores do Mahayana se sentissem um pouco desconfortáveis, mas foi muito pior para os monges. Para uma mulher ter até mesmo a audácia de discutir tais ensinamentos num tom de voz perfeito, puro e seguro com um monge altamente talentoso e respeitado era algo quase intolerável. Todavia a conversa de Śāriputra com a deusa continuou.
“O que deu errado?” perguntou Sariputra. "O que aconteceu com você?"
"O que você quer dizer?" respondeu a Deusa.
"Bem, você é uma mulher!" disse Sariputra. “O que aconteceu a você na vida anterior que fez com que renascesse como mulher nesta vida?”
"De que você está falando?" disse a Deusa, irritada. "Eu estou morando nesta casa há doze anos e nunca vi uma mulher! Os chamados “homem”, “mulher” e “gênero”, são tão inexistentes quanto a magia do mágico ou um reflexo da lua na água, que pode parecer claro e completo, mas não tem qualquer natureza inerentemente existente.”
E ela continuou então discorrendo sobre como é errado pensar em termos de gênero. “Eu não consigo compreender o porquê, Śāriputra, de você estar tão obcecado por isso.”
E para demonstrar seu ponto de vista, ela magicamente mudou de lugar com Sariputra.
Num instante, ele se encontra no corpo dela e ela no dele.
“Há algo errado?” ela perguntou.
“Bem, eu certamente pareço muito estranho!” respondeu Sariputra. “Mas fora isso, ser mulher não é muito diferente de ser homem!”
Eles agora falam sobre como as aparências enganam.
“O que faz você pensar que eu sou um homem? Porque você me viu no corpo de um homem por algumas décadas? Esse é o seu único motivo? Se for, é uma razão patética.” E o mesmo argumento é aplicado à razão pela qual pensamos que uma mulher é uma mulher.
Eventualmente, ambos têm outra mudança mágica de sexo e os dois retornam a suas formas anteriores.
“Então, onde está sua forma feminina agora?” perguntou a Deusa.
“Não existe mais”, respondeu Śāriputra, e eles discutem o que significa ‘não mais'. Como pode haver gênero verdadeiramente existente, disseram eles, já que pode mudar como mudou agora, e até mesmo duas vezes, como foi o nosso caso?
Esta conversa sobre igualdade de género aconteceu perto da bela e remota cidade de Vaiśālī, no norte da Índia, na presença talvez dos mais significativos praticantes espirituais vivos daquela época. E aconteceu há mais de dois mil e quinhentos anos, séculos antes da fundação das religiões cristã e islâmica, e mais de dois milênios antes de a escritora francesa Olympe de Gouges publicar a Declaração dos Direitos da Mulher e da
Cidadã em 1791 e da filósofa inglesa Mary Wollstonecraft adicionar sua voz feminista com A Reivindicação dos Direitos da Mulher em 1792.
Mañjuśrī
Atualmente, as pessoas investem muito esforço e dinheiro para cumprir seus sonhos.
Alguns economizam meses apenas para voar até Chicago e participar de um dos talk shows
ao vivo de Oprah Winfrey, ou visitar a Inglaterra para assistir o Liverpool FC jogar em Anfield. As pessoas que viveram durante a vida do Buda tinham sonhos bem diferentes.
Elas sonhavam em ter a oportunidade de testemunhar conversas como essas que ocorreram
entre Mañjuśrī e Vimalakīrti e que agora podemos ler no Sūtra de Vimalakīrti.
Não se esqueça, essas conversas não apenas foram inspiradas pelo próprio Buda, mas a audiência incluía Śāriputra, Maudgalyāyana, Kāśyapa, vários reis e rainhas, mercadores fabulosamente ricos, senhores da guerra influentes e muitos cidadãos comuns de Vaiśālī.
Todos estavam ocupados em ouvir cada palavra, sem ousar sequer limpar a garganta ou fazer qualquer ruído, tão ansiosos estavam para captar cada sílaba proferida por esses dois grandes bodhisattvas.
Como tornar-se um Buda?
Tendo examinado muitos assuntos profundos, Vimalakīrti fez duas perguntas muito significativas. A primeira foi “Como tornar-se um Buda?” ou seja, que ingredientes ou
componentes são necessários para tornar-se um Buda? Seria como perguntar hoje “Qual é a receita do ‘kimchi’ coreano?” E a segunda pergunta foi: “A que família ou casta pertence um Buda?”
Hoje não é fácil entendermos essas questões, mas naquela época elas foram consideradas extremamente relevantes. Historicamente, certos empregos eram dados sempre àqueles que nasciam em famílias e contextos sociais específicos. Até muito recentemente, por exemplo, cargos políticos e sociais mais elevados na Inglaterra eram dados quase que exclusivamente a homens que foram educados em certas escolas como Harrow e Eton, e o Príncipe de Gales está sempre à espera de se tornar o próximo rei da Inglaterra. O mesmo também pode ser dito para o outro extremo da escala social – ninguém se surpreende quando o filho de um sapateiro faz sapatos excelentes. Da mesma forma, as pessoas na época do Buda esperavam que os budas tivessem nascido exclusivamente em certas castas ou famílias.
“Quais são os componentes ou ingredientes que fazem do Buda Śākyamuni um ‘Buda’?”
O sangue deve correr nas veias de um Buda? É necessária uma boca? E ouvidos? Existe um DNA especial de Buda, ou um código que é passado de uma geração a outra, como o DNA que causa o elevado colesterol hereditário?
“O há de potencial para tornar-se um Buda?” ‘Potencial’ aqui no mesmo sentido que o leite tem potencial para se transformar em iogurte.
“Será que ‘Buda’ é apenas uma figura histórica?” Ou seja, 'Buda' é apenas o Buda que
vemos retratado em estátuas e nas paredes do templo com uma protuberância no topo de sua cabeça e com os cabelos cacheados, filho de Śuddhodana e Mahāmāyā? “A quem nos referimos quando dizemos ‘Buda’?”
A essa altura, Vimalakīrti não estava mais respondendo às perguntas de Mañjuśrī, era Mañjuśrī quem estava respondendo a Vimalakīrti. E como é tocante e lindo que Mañjuśrī começa a referir-se a Vimalakīrti não como um patrono, mas como o ‘Filho de uma Nobre Família’.
Eu me pergunto se algum dia seremos capazes de apreciar plenamente essa conversa!
É insuportável para muitos de nós até mesmo contemplar a noção de que a limpeza pode ser encontrada no meio da sujeira. No entanto, a limpeza só pode ser encontrada na sujeira.
E para aqueles de nós que estão presos à ideia de que a limpeza é um estado puro totalmente independente e separado da sujeira, das emoções e das impurezas, tal afirmação é tão desconcertante que chega a ser virtualmente inconcebível.
“Filho de uma Nobre Família”, disse Mañjuśrī, “As emoções são os ingredientes que fazem um Buda. Ignorância, apego, desejo, e raiva são a família do Buda."
Aqui, Mañjuśrī oferece esperança e encorajamento fazendo uma zombaria de nossas ideias sobre limpo e sujo. Ele fala que o bem só pode ser encontrado no ruim e no feio. Ele estava dando esse discurso estimulante, politicamente correto ou mesmo dizendo coisas que não
queria apenas para nos animar? Não, ele estava expressando uma verdade dura e penetrante. Para alguns, é uma verdade insuportável, mas para outros é a coisa mais encorajadora já ouvida.
“Se você plantar uma semente no céu”, disse Mañjuśrī, “ela nunca crescerá e se tornará uma flor. Da mesma forma, um Buda não pode surgir de um estado não-composto. O Buda – iluminação – só surgirá onde houver fenômenos.”
Portanto, Mañjuśrī não está denegrindo fenômenos compostos, ele não está dizendo que fenômenos compostos são profanos ou têm algum tipo de mácula. O que ele está dizendo é que os fenômenos compostos são impermanentes, mas mesmo assim nós os veneramos.
Para quem tem mentalidade filosófica, este é um ponto importante.
O que é não-dualidade?
Um pouco mais adiante, Vimalakīrti perguntou aos bodhisattvas: “O que é não-dualidade?”
Cada um deles deu uma resposta extremamente impressionante – afinal, os bodhisattvas
não eram assim tão burros.
“Quando penso ‘eu’ e ‘meu’, isso é dualidade. Quando 'eu' e 'meu' entram em colapso, isso é não-dualidade.”
“Onde há contaminação e purificação, isso é dualidade. Quando você vai além da contaminação e da purificação, isso é não-dualidade.
“Onde existem ações virtuosas e não virtuosas, isso é dualidade. Quando você vai além do virtuoso e do não-virtuoso, isso é não-dualidade.”
Desejaria que aqueles que afirmam que são budistas – mas que estão tão enredados em suas próprias versões de virtude, moralidade e ética que menosprezam e detestam os não-virtuosos – lessem isso, e eu gostaria mesmo de ver a expressão em seus rostos à medida que percebem o que isso significa.
“Se você acha que este mundo é mundano e que um outro mundo mais sublime também existe, isso é dualidade. Quando você vai além do mundano e do sublime, isso é não-dualidade.”
Os exemplos tornam-se cada vez mais elaborados e incluem explicações relativas a todos os Seis Paramitas. (As Seis Perfeições: Generosidade, Paciência, Concentração, Sabedoria, Diligência e Perseverança com Entusiasmo) “Se o paramitā da generosidade for entendido como não-dualidade, esse tipo de generosidade o levará à liberação. O bodhisattva que compreende isso verá também que a própria liberação é em si mesma generosidade.”
“Se você anseia pela liberação porque não gosta do saṃsṃ āra, isso é dualidade. A única maneira de concretizar a não-dualidade é ir além do gostar da liberação e ter antipatia pelo saṃsṃ āra.”
Sariputra
Os monges Śrāvakayāna devem terminar de almoçar antes do meio-dia. Se eles não o fizerem ou perderem completamente o almoço, têm de esperar até o café da manhã do dia seguinte para saciar a fome. A essa altura, o estômago de Śāriputra já estava roncando.
Verificando rapidamente a posição do sol, ele viu que era quase meio-dia, mas não havia nem sinal de almoço. Ele começou a ficar inquieto. Sabendo muito bem que Śāriputra estava faminto, Vimalakīrti lançou outra de suas repreensões implacáveis:
“Śāriputra, você está distraído! Você não consegue ouvir os ensinamentos corretamente com a mente distraída. Por que você não está ouvindo! Esta é a sua oportunidade
de ‘comer’ algo que você nunca provou antes!”
Neste ponto, Vimalakīrti apresenta a todos o Buddhafield das Fragrâncias, onde absolutamente tudo tem um cheiro divinamente delicioso. E como também era hora do
almoço, o aroma devia ser especialmente daqueles de dar água na boca.
“Quem dentre vocês se atreve a ir ao Campo Perfumado do Buda para pegar alguns
deliveries?" perguntou Vimalakīrti, olhando significativamente para os bodhisattvas.
Uma coisa que você precisa saber antes de prosseguirmos é que Mañjuśrī pediu a Vimalakīrti que demonstrasse algo aos bodhisattvas e, como sempre, Vimalakīrti estava
mais do que disposto a obedecer. Mas para criar direito as circunstâncias corretas, Mañjuśrī teve de mergulhar em seu extenso repertório de habilidades e truques para
garantir que nenhum dos bodhisattvas se oferecesse como voluntário.
"Você não está envergonhado?" zombou Vimalakīrti, enquanto se virava para encarar Mañjuśrī. “Olhe para sua comitiva. Nenhum deles está disposto a buscar o almoço!”
“Mas você esquece”, retrucou Mañjuśrī. “O Buda disse que nunca deveríamos desprezar os desinformados.”
Instantaneamente, Vimalakīrti criou um avatar de si mesmo na forma de um lindo e dourado bodhisattva e disse a ele:
“Vá para o Campo dos Budas Perfumados e circunde o Tathagata Gandhottamakūṭaṭ*,
prostre-se diante daquele Buda, preste homenagem a ele e implore que ele lhe dê as sobras do almoço. Então traga-as aqui.”
*(O ‘buddhafield’ do Buda Gandhottamakūṭaṭ é um universo onde o Dharma é ensinado por meio de perfumes)
O avatar de Vimalakīrti seguiu as ordens ao pé da letra. O Campo de Budas Perfumados é bem diferente do nosso mundo, e seus habitantes ficaram fascinados pelo avatar do bodhisattva de Vimalakīrti, que parecia tão estranho para eles quanto um E.T. olhando para
nós. O avatar prostrou-se e prestou homenagem ao Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ e então
implorou ao Buda por suas sobras, o que, disse ele, seria extremamente benéfico em nosso mundo.
“Eu venho do mundo abençoado pelo Buda Śākyamuni”, disse o avatar. “As pessoas do nosso mundo amam a mediocridade e qualquer coisa de classe baixa, inferior ou kitsch.
Pode-se dizer que venho de um mundo onde bom gosto falta por completo.”
Os discípulos do Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ só conheciam os mais elevados
ensinamentos e, como não tinham ideia do que eram referências ou comparações, eles certamente não conseguiam entender o conceito de mediocridade.
“O que você quer dizer?” eles perguntaram.
Aqui, no mundo de Vimalakīrti, somos ensinados a desprezar a mediocridade e o mau gosto, mas a atitude do Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ e seus discípulos no Campo dos Budas Perfumados era bem diferente. Na verdade, o Tathāgata começou a cantar louvores ao mundo alienígena do avatar e ao seu povo que amam tanto o comum e o usual. Ele também elogiou Buda Śākyamuni, que, segundo ele, era excepcional, mesmo entre os budas, por ter a coragem, sabedoria e habilidade para aparecer em um reino povoado por seres bípedes tão sem brilho. Quem mais teria escolhido ir para lá? Era como morar no Boulevard Saint-Germain ou na Rue Saint-Honoré e fazer todas as suas compras na Champs-Élysées.
O Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ explicou aos seus discípulos que o avatar foi uma manifestação de um dos discípulos do Buda Śākyamuni.
“Esta é a aparência de um discípulo de Śākyamuni. Ele não é magnífico! E ainda vem de um mundo onde as pessoas se contentam voluntariamente com aquilo que é meramente adequado.”
Enquanto falava, o Tathāgata juntou suas sobras, embalou-as lindamente e deu-as ao avatar de Vimalakīrti.
Muitos dos discípulos do Tathagata ficaram intrigados com a ideia de tal mundo diferente, e quando chegou a hora do avatar partir, eles se ofereceram para voltar com ele. Eles queriam ver a mediocridade por si mesmos, como os japoneses que visitam a Índia pela emoção de experimentar poeira, caos, sujeira e mau cheiro.
“Tenha muito cuidado,” disse o Tathagata. “Duvido que as pessoas do mundo deste avatar sejam capazes de tolerar suas belezas e fragrâncias. Elas possivelmente ficarão loucas! Então, não se animem tanto.”
Antes de todos saírem, houve uma discussão sobre a diferença entre como o Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ e o Buda Śākyamuni ensinavam. Um deles ensinou seres de bom gosto, e o outro ensinou seres com muito mau gosto. Mas o que significa “mau gosto” e o que é “mediocridade”?
Especificamente, o que torna o nosso mundo tão comparativamente prosaico? Enquanto eles conversavam, ficou claro o quão difícil é ensinar os indiferentes, e o que o Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ demonstrou quando falou longamente sobre sua imensa admiração pela
excepcional capacidade do Buda Shakyamuni em ensinar pedestres. Ele até elogiou a própria mediocridade dos ensinamentos de Śākyamuni.
Neste ponto, o Sūtra de Vimalakīrti parece examinar o gosto e a classe. Ensinar aqueles que amam a mediocridade é como tentar apresentar a um homem da China atual que se veste da cabeça aos pés com Versace – roupas íntimas Versace, camisa Versace, chapéu
Versace, perfume Versace – o conceito de bom gosto. Como convencê-lo de que ele ficaria muito mais elegante de uma maneira simples? Camiseta branca, jeans azul e lenço cinza do que nos confeitos multicoloridos de Versace? Você não pode! Porque o fã da Versace só
tem interesse em comprar coleções inteiras de marcas que são instantaneamente reconhecíveis e extremamente caras. Persuadir tal pessoa a desenvolver um senso de
elegância está longe de ser fácil.
Ensinamentos como carma, reencarnação, generosidade, disciplina e mindfulness, caem todos na categoria de ensinamentos medíocres. Agora, você provavelmente estará se perguntando o que significa “medíocre”. Pelo que entendo, para Vimalakīrti, ensinamentos
medíocres dizem coisas como: se você é mau e agir mal você sofrerá e irá para o inferno; se você é bom e suas ações forem boas, você experimentará a felicidade e irá para o céu, se você sentir desejo, deve domesticá-lo e se você ficar com raiva, deve controlar sua raiva e
então livrar-se dela. Ensinamentos medíocres são aqueles que fazem julgamentos severos e distinções, e são dados a pessoas que só conseguem mastigar e digerir informações
medíocres. Deste ponto de vista, todo o passo a passo dos ensinamentos e métodos do Buda caem na categoria de ensinamentos medíocres.
Por exemplo, um método medíocre para desmamar o chinês de sua obsessão por Versace é levá-lo a Paris ou Roma e apresentá-lo a um círculo de pessoas gentis, seguras de si e verdadeiramente elegantes. À medida que o homem chinês passar cada vez mais tempo com seus novos amigos, eles vão gentilmente desencorajando-o a sair como um novo-rico, mostrando-lhe por exemplo, que vestir-se com marcas chamativas e caras nunca trará a
autoconfiança que ele tanto deseja. Lentamente, passo a passo, a bondade e o equilíbrio natural deles irão atraí-lo para longe dessa sua obsessão por Versace aproximando-o de um estilo mais refinado. E é exatamente isso o que os ensinamentos medíocres fazem. Eles nos atraem para as verdades mais elevadas através de ensinamentos. Para muitos de nós, este método é nossa única esperança de alguma vez nos aproximarmos das verdades superiores.
No entanto, amamos tanto os ensinamentos medíocres! Nós nos apegamos a eles e não podemos viver sem eles, e é por isso, por sua grande compaixão, que o Buda deu tantos ensinamentos.
Ananda
De volta ao mangueiral, o Buda Shakyamuni continuou a ensinar, assistido apenas por Ānanda – todos os outros discípulos seguiram Mañjuśrī até Vaiśālī. De repente, o bosquese encheu de uma luz dourada.
"O que está acontecendo?" perguntou Ananda.
“É um sinal de que Vimalakīrti e Mañjuśrī terminaram de conversar. Eles estão no caminho de volta”, respondeu o Buda.
Não eram só Vimalakīrti e Mañjuśrī que estavam voltando para o mangueiral. Eles foram seguidos por todos que testemunharam a conversa – todos os reis, rainhas, ministros, monges e pessoas de todas as esferas da vida - em uma procissão caótica e improvisada,
que tenho certeza também deve ter incluído toda a parafernália indiana habitual, como sombrinhas, chifres, elefantes, cavalos, leques de penas de pavão, dançarinas, cores berrantes, tecidos brilhantes, luzes e incenso.
Assim que entrou no mangueiral, Vimalakīrti se jogou aos pés do Buda, como uma árvore derrubada – uma outra lição a ser observada. Até agora, esse sensualista de cabelos oleosos parecia arrogante, mimado e francamente difícil de lidar. Mas aqui nos é dito que ele se
prostra humildemente diante do Gautama Buda e então o circunda, seguido por todos os arhats e bodhisattvas.
Enquanto Vimalakīrti prestava homenagem, Śāriputra atualizou o Buda sobre o que acontecera.
"Que cheiro é esse?" perguntou Ananda. “Eu não reconheço isso!”
“Esse é o perfume exalado pelos bodhisattvas do Buddhafield das Fragrâncias,” explicou o Buda.
“Mas até mesmo os membros de nosso próprio Sangha parecem ter percebido isso,” disse Ananda. "Como isso foi acontecer?"
“Eles cheiram como os bodhisattvas do Campo de Budas Perfumados porque comeram das sobras do Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ”, disse Buda.
Por que a comida – aliás, restos de comida – são tão importantes no contexto dessa estória?
A comida geralmente implica sustento, e comer é uma das maneiras de nós mantermos nossos corpos. Mas do ponto de vista budista, corpo, fala e mente também exigem métodos de sustento para manter o prumo. Seres iludidos como nós fazem um alarido terrível sobre
a manutenção de nosso corpo físico, mas a ênfase do Buddhadharma está em sustentar a mente. E aqui, no Sūtra de Vimalakīrti, as sobras do Tathāgata Gandhottamakūṭaṭ levam a uma discussão profunda e longa sobre como fazer exatamente isso.
A Meditação do Samādhi, dizem-nos, é o único método para sustentar a mente. Embora esta afirmação possa ser tomada metaforicamente, também deve ser tomada literalmente.
Meditação, concentração e permanência calma definitivamente mantêm a saúde da mente.
Ao mesmo tempo, como a mente está no comando e lidera o corpo, o apetite por comida de quem medita será visivelmente diferente daquele de alguém que não medite. A ganância experimentada por não-meditadores pode ser insaciável – algumas pessoas comem como suínos.
Disseram-me que não muito antes da queda do Império Romano, os romanos ricos empanturravam-se e depois vomitavam, para poderem recomeçar a refeição. Até hoje, a maioria de nós é mais ou menos bulímica. Assim como não precisamos de mais de um ou dois pares de sapatos – e certamente não precisamos de tantas roupas até que nossos guarda-roupas se abram de tão cheios – comemos muito mais do que o estritamente necessário. Mais frequentemente, não comemos apenas para nos nutrir e sustentar, mas só porque queremos. É ridículo! Nossa ingestão de alimentos é motivada por “desejo” e não
pela “necessidade”.
Mas uma vez que você comece a praticar meditação, mesmo que sua prática de shamatha seja medíocre, você não precisará comer tanto porque somente um pouco já lhe dará toda a energia que você precisa. E lembre-se, uma diminuição do apetite por comida não é nem
mesmo um milagre, é apenas um efeito colateral da prática do shamatha.
À medida que praticamos, à medida que nos acostumamos cada vez mais com a visão correta e nos tornamos mais experientes sobre como superar a distração, nossa definição de 'sustentação', ‘manutenção’ e ‘comida’ mudarão. Nós nos tornaremos mais exigentes sobre
nossos hábitos alimentares e veremos que é muito mais saudável comer comida de verdade do que refeições processadas prontas. Também nos tornaremos mais criteriosos sobre muitas das outras “dietas” que seguimos, como as nossas dietas de som, roupas, carros, saldos bancários, planos de pensão, relacionamentos, amizades e assim por diante.
Como nos libertarmos do desejo e da necessidade é um assunto muito extenso, mas essencialmente, isso pode ser alcançado através da prática e, à medida que gradualmente nos libertarmos de nós mesmos, a nossa definição de “sustento” também mudará. Um grande passo para seguir uma alimentação saudável é aprender a lidar com a necessidade de comer.
Além disso, seres iludidos que não conseguem compreender a não-dualidade, sentimos uma necessidade de ‘união’, e é por isso que ansiamos por relacionamentos e amizade, abraços, contato, relação sexual, beijos, beliscões...
De volta ao mangueiral, todos aqueles que seguiram Mañjuśrī até Vaiśālī agora havia retornado.
“Então, Vimalakīrti”, disse o Buda, “como você vê o Buda?”
“Buda está além da forma, disse Vimalakīrti, além do sentimento, além das formações cármicas, além do símbolo, além do tempo. Tathāgata não é escuridão, nem iluminação, nem um nome, nem uma marca, nem uma referência, nem poderoso, nem fraco.
Tathāgata não tem forma, nem olhos, nem ouvidos, nem gênero...”
E assim por diante. Para a maioria de nós, o termo “Buda” significa o Buda histórico Śākyamuni, cuja manifestação aderiu às categorias de gênero, tempo e espaço. Mas aqui,
Vimalakīrti explica como ver Buda num nível absoluto: como ver o ‘Buda absoluto’.
Então, um pouco mais adiante neste capítulo, o tapete é mais uma vez arrancado de debaixo de nossos pés quando Buda pede a Vimalakīrti para mostrar a todos o Buda
Akṣoṣ bhya (um dos cinco da Família dos Budas Dyani, o azulado) e seu campo búdico.
Num instante, Vimalakirti realizou um milagre estupendo e o magnífico campo búdico de Abhirati (o nome do campo búdico onde está Aksobhya, na direção leste) foi exibido para que todos vissem.
Como sempre, o cenário desta cena é importante. Um grande número de discípulos tinha acabado de ouvir que o “Buda” estava além da forma, do sentimento e tudo mais. No entanto, o Buda Shakyamuni pede a Vimalakīrti que revele a manifestação física do campo búdico de Akṣoṣ bhya. E Vimalakīrti faz o que Buda pede, e o texto sugere que foi como se ele simplesmente tivesse aberto uma cortina. Lá, exibido diante deles, todos viram as altas
montanhas, rios largos, exuberantes vales, palácios reluzentes cercados por lagos de lótus e cisnes, florestas de árvores que realizam desejos e céus brilhantes cheios de pássaros que compõem a imagem do reino de Akṣoṣ bhya.
Mas sejam quais forem os campos búdicos que nos apareçam, eles são definidos em termos de não-dualidade. Por exemplo, um prado num campo búdico não terá leste. E se não há leste, não pode haver sul, nem meio, nem fronteira, nem superior e nem inferior.
Tudo isso nos leva de volta à não-dualidade e como explicar o inexplicável.
Epílogo
A parte final do Sūtra de Vimalakīrti é uma discussão sobre o futuro entre Mañjuśrī, Vimalakīrti e os outros bodhisattvas; especificamente, sobre o que acontecerá no tempo de degeneração, muito depois da morte do Buda, de seu parinirvāṇaṇ .
.
Alguns de nós ainda podem querer rotular tudo o que lemos no Sūtra de Vimalakīrti como mito e lenda, ou na melhor das hipóteses, um relato histórico de eventos que aconteceram há milênios. Poderíamos também pensar que Śāriputra, Ānanda e todos os outros seres vivos naquela época tiveram muita sorte de conhecer o Buda pessoalmente, e de ter conhecido bodhisattvas tão notáveis como Vimalakirti em carne e osso. Como nenhum de nós teve essa oportunidade, será que nascemos no lugar errado e na hora errada? Não necessariamente.
Neste epílogo, o Buda afirma claramente que se este sutra for escrito, estimado, guardado em casa ou mesmo utilizado, quer você copie trechos num caderno e venere cada palavra ou beneficie-se deste sutra ou se você ama discuti-lo e adora ouvir os outros falarem sobre
ele, você acumulará mérito. Não apenas um pequeno mérito. Imagine-se dando almoço e jantar a todos os budas das dez direções e bodhisattvas por eras, enquanto continuamente faz oferendas de centenas de quilos de ouro, diamantes, prata e outros bens materiais
valiosos e desejáveis. Não seria esse tipo de generosidade capaz de acumular uma enorme quantidade de mérito? Claro que sim! Uma imensa e incalculável montanha de mérito.
Mas nada em comparação com o mérito que você pode acumular, especialmente nestes tempos degenerados, simplesmente discutindo os assuntos mencionados neste sutra apenas por alguns momentos.
Quando o Buda ficou em silêncio, o Senhor Indra, o Rei dos Deuses, levantou-se e ofereceu-se para ser o protetor deste Sutra. Não importa onde este sutra for ouvido,
ensinado, discutido, impresso, escrito, armazenado ou encontrado – seja nas cidades, aldeias, ruas, jardins, piscinas, ermidas ou cumes de montanhas – o Senhor Indra prometeu venerar e prestar homenagem a todos que forem tocados por ele, por quem o ama e por aqueles que desejam preservá-lo.
Buda regozijou-se com o compromisso do Senhor Indra. “Essas discussões são a oferta suprema do Dharma, da verdade”, disse ele.
“Proteger quaisquer estratégias, sabedoria ou livros que estejam em conflito com o saṃsṃ āra é uma atividade incalculavelmente digna. Se você quiser resistir ou criar atrito com a dualidade, você encontrará toda a munição necessária neste sutra. Este é o melhor!
Portanto, Rei dos Deuses, você está fazendo a coisa certa. Proteja-o bem e valorize-o, pois, o Sūtra de Vimalakīrti é uma arma excepcionalmente eficaz por causar estragos e até mesmo destruição em massa, no mundo dualista.”
Finalmente, o Buda voltou-se para Ananda e pediu-lhe que valorizasse este ensinamento, e todos no mangueiral, bodhisattvas, arhats, śrāvakas, deuses, semideuses, rākṣaṣsas e yakṣaṣs – regozijaram-se.
Até agora você deve ter percebido que o Sūtra de Vimalakīrti não é um sutra comum.
É difícil para aqueles de nós que vivem no mundo de hoje engolir a verdade quando a ouvimos, e o Sūtra de Vimalakīrti contém muito sobre a mais elevada das verdades. Não imagine, porém, que a natureza da verdade mais elevada seja mística ou mitológica, porque não é. Embora a verdade absoluta não possa ser expressa, concebida ou conceituada, todas as técnicas e ferramentas necessárias para estabelecê-la foram ensinadas
para nós pelo próprio Buda. O Sūtra de Vimalakīrti, por exemplo, descreve métodos surpreendentemente eficazes para desconstruir tudo e qualquer coisa que não seja
a verdade.
Eu sei que estou me repetindo, mas não se engane, este sutra é extremamente profundo. E é porque sutras como este são tão profundos que estudamos os comentários, os ‘śāstras’, que ajudam a explicá-los. Os discípulos do Buda e célebres bodhisattvas escreveram alguns dos comentários disponíveis para nós, mas muito mais foi escrito por grandes estudiosos indianos, chineses, japoneses e tibetanos. Esses estudiosos não eram apenas
lógicos ou teóricos, eles eram praticantes altamente talentosos que colocaram os ensinamentos que encontraram nos sutras como o Sūtra de Vimalakīrti em prática e, como resultado, não foram mais vítimas de elogios, críticas, ganhos ou perdas – uma conquista
que eles demonstraram incansavelmente inúmeras vezes.
As discussões que encontramos neste sutra não são meros exercícios intelectuais. Não são como as especulações filosóficas de franceses existencialistas engajados que usam boinas como no início do século 20 pelos cafés e bares à margem esquerda do Rio Sena, enquanto
fumavam charutos e apertavam os olhos através de lentes grossas fundo-de-garrafa. Posso afirmar com total confiança que cada método oferecido pelo Buda para ajudar os seres sencientes está enraizado nas conversas registradas no Sūtra de Vimalakīrti e outros textos
semelhantes.
Acender velas, por exemplo, queimar incenso, raspar a cabeça e renunciar à vida mundana, abstendo-se de comer carne e fazer sexo são apenas alguns dos métodos mencionados.
Outros métodos foram projetados para bodhisattvas, que são ativamente encorajados a fazer tudo e qualquer coisa que sociedades temporais desaprovam ou consideram imorais, como roubar e mentir.
Todos nós já ouvimos histórias sobre bodhisattvas que deram seus bens mais preciosos, filhos, propriedades, casas e até mesmo seus entes queridos e cônjuges para poderem ajudar os outros. E, claro, há a famosa história sobre o bodhisattva que ofereceu seu próprio corpo a uma família de tigres famintos. Mas para a maioria de nós, esse tipo de atividade parece não apenas algo rebuscado como também inacreditável, assim como o conto de fadas sobre a princesa que beijou um sapo.
Ainda que historicamente tenham existido, ainda existem bodhisattvas que podem mastigar e engolir histórias aparentemente inacreditáveis. Esses bodhisattvas podem beber o néctar de todos os assuntos discutidos neste sutra porque ambos esmagaram o hábito de se
apegarem aos seus egos e demoliram o muro da dualidade. Tais bodhisattvas não estão sujeitos às distinções entre bom e mau, ou quantidade e qualidade; eles veem tudo como uma ilusão, um sonho ou magia. Eles têm tão poucos escrúpulos em oferecer sua própria
carne a tigres famintos, tanto quanto nós teríamos ao achatar um castelo de areia, por mais bonito que fosse esculpido. E se, ao doar seu bem mais precioso eles puderem ajudar alguém, então não pensam duas vezes. Basicamente, os bodhisattvas fazem o que for preciso para ajudar.
O Sūtra de Vimalakīrti não é um sutra conveniente porque, ao contrário do Sūtra dos Sábios e dos Tolos (o Damamūka Sūtra), ou os Contos Jātaka, ou mesmo os textos do Vinaya (são os primeiros sutras dentro do Kangyur e estão diretamente relacionados aos preceitos de ética e disciplina para os monges e renunciantes), em certo nível, não podem ser interpretados literalmente. Sutras convenientes eram ensinamentos condicionais
ensinados para aqueles que pensam em termos de ética, moralidade, disciplina, reencarnação, carma e consequências, ou seja, para pessoas que querem fazer a coisa certa e não querem fazer a coisa errada.
O Sūtra de Vimalakīrti definitivamente não é esse tipo de sutra. Os sutras convenientes são para aqueles que não conseguem mastigar ideias realmente grandes. Da mesma forma que os bebês não conseguem mastigar ou engolir alimentos sólidos, os sutras convenientes são
projetados para aqueles que acham grandes ideias difíceis de digerir. Sutras convenientes são interessantes e fáceis de aceitar; eles empregam lógica e pensamento comuns, padrões como não matar, não roubar, andar devagar, lavar bem as mãos, não usar palavras duras, sentar-se direito e concentrar-se na respiração. 'Todas as coisas são impermanentes’, ‘todas as emoções são dor’ e ensinamentos semelhantes que requerem uma pequena explicação também estão entre aqueles projetados pelo Buda para serem mastigáveis e digeríveis.
Ensinamentos como aqueles encontrados no Sūtra de Vajracchedikā, no Sūtra de Vimalakīrti e no Sutra de Mañjuśrī (Mañjuśrīnirdeśasūtra) são mais parecidos com
alimentos sólidos – ou uma boa dose de tequila que você bebe numa só talagada, sem sal nem limão. Estes definitivamente não são ensinamentos moralistas e corretos. São diretos e vão direto ao cerne da questão. Embora muitos de nós sejamos inspirados e possamos até
estar bastante familiarizados com os ensinamentos do Buda, nós realmente não os entendemos. Compreender verdadeiramente o Dharma do Buda é difícil, extremamente difícil. Por exemplo, não se iluda pensando que entende śūnyatā, (o vazio) porque você não entende – a mente habitual e subjetiva não se permite compreender śūnyatā.
Embora gostemos de pensar que nossas mentes são objetivas, elas não são. Na verdade,
não existe uma mente objetiva. Muito pelo contrário, pois a dose da mente subjetiva encontrada em seres humanos como nós é perigosamente alta – especialmente entre os
adultos e os mais instruídos. Pessoas inteligentes, dolorosamente sobrecarregadas como estão com suas próprias ideias, são geralmente os mais subjetivas e teimosas de todas. Mas não se ocupe de tentar apontar sua completa falta de objetividade, porque elas não ouvem.
Em seus śāstras, grandes comentaristas como Nāgārjuna, Asaṅga, Vasubandhu, Bhāvaviveka, Śāntideva, Maitreya e todos os outros, traçaram um caminho sistemático
de pensar, decifrar e desconstruir pensamentos e ideias a partir de todos os ângulos possíveis. Esses textos são inestimáveis, porque sem eles é quase impossível chegar ao fundo de conceitos budistas como śūnyatā de uma só vez. É por isso que o início do Sūtra de Vajracchedikā, que estabelece a cena para todo o restante do sutra, é tão importante e um bom exemplo de quão imprescindível pode ser a configuração do cenário nos sutras.
Com isso aprendemos, junto com muitos outros detalhes, como a tigela de esmola do Buda foi lavada, como sua mesa foi posta, como o manto do dharma foi dobrado corretamente, como o assento de um monge foi coberto com um tecido especial e de como quando o Buda se sentava de pernas cruzadas, suas costas ficavam eretas. Também somos presenteados com belas descrições de árvores e da serenidade do ambiente natural em que
os ensinamentos ocorreram. O contexto da cena foi levado muito a sério! E é só depois de a cena estar muito bem definida e delineada que nos são apresentados então os
ensinamentos sobre śūnyatā.
No Sūtra de Vajracchedikā, há o relato de uma conversa entre o Buda e Subhūti, que incluía uma questão muito significativa.
“Eu ensinei?” perguntou Buda.
“Não, você não fez isso”, respondeu Subhūti. E o Buda concordou.
"Exatamente!" ele disse. “O Buda nunca ensinou!”
Ao mesmo tempo, devemos lembrar que śūnyatā nunca deve ser entendido como uma negação total ou uma forma de niilismo. Este ponto é demonstrado primorosamente no
Sūtra de Vimalakīrti. Como no Sūtra de Vajracchedikā, a cena é definida com cuidado escrupuloso e em grandes detalhes. Lembre-se do começo do livro, onde Buda
milagrosamente transforma quinhentos para-sóis em um só e então todo o universo cabe sob ele? É uma coisa incompreensível, como assistir a um filme de fantasia. Em menos de cinco minutos o leitor é fisgado, e então, trazido de volta à terra com um solavanco.
Uma coisa que adoro neste sutra é que ele envolve muitos personagens grandiosos, como Śāriputra, Maudgalyāyana, Ānanda e Subhūti. Esses homens foram o epítome dos maiores filósofos, pensadores e renunciantes espirituais daquela época e, assim como os intelectuais e acadêmicos de hoje que desprezam empresários de cabeça vazia, grosseiros e novos-ricos. Também aqueles ficaram horrorizados com Vimalakirti. Como poderia tal fariseu saber algo que valesse a pena? Como, no que lhes dizia respeito, Vimalakīrti só servia para ganhar dinheiro, devorando comida caríssima, dando festas dissolutas e
ganhando mais dinheiro ainda. Porventura ele pelo menos teve acesso ao seu mundo interior? Na cabeça deles, claro que não!
Nós, seres ignorantes, habitualmente julgamos pelas aparências. Dada a aparência e estilo de vida de Vimalakīrti, quem de nós poderia supor que ele soubesse alguma coisa sobre o Dharma? E que ele era um ser tão realizado? Ele era do tipo de homem a quem perguntaríamos sobre a cotação da prata ou do ouro, mas nenhum de nós sequer pensaria em consultá-lo sobre o significado de śūnyatā. E quanto à sua capacidade de desconstruir os ensinamentos como ele fazia – inimaginável!
Como devem ter olhado para as joias obscenamente caras que ostentava em seu corpo, sem mencionar sua pele brilhante – resultado de longas horas gastas em banhos perfumados enquanto garotas esfoliavam cada centímetro de seu corpo com essências e óleos preciosíssimos. Tais detalhes sobre como pessoas abastadas aparecem em vários sutras – não apenas neste – são importantes porque mostram como era Vimalakīrti e como ele vivia
e isso ajudou a definir todo o cenário para o resto do sutra.
O Sūtra de Vimalakīrti demonstra repetidas vezes que a compreensão e a sabedoria que são a verdade última não precisam ser abordadas usando métodos convencionais. Nosso hábito é estudar algo lendo, escrevendo, questionando, debatendo, fazendo notas de rodapé,
percorrendo bibliotecas e fazendo um ótimo trabalho de apreciação. Mas, na verdade, a iluminação pode ser alcançada usando qualquer método. A mudança de sexo de Śāriputra, os restos de certos alimentos de um determinado Buda e o uso de deliciosas fragrâncias são
apenas alguns dos métodos que evocam a prática tântrica da visualização. Quando praticamos a visualização, imaginamos seres de ambos os sexos, cujos corpos poderiam ser de qualquer cor e que poderiam ter qualquer número de braços, pernas ou cabeças. Eles
também têm a capacidade de sentar-se em frágeis pétalas de lótus sem esmagá-las.
Se adicionarmos um pouco de suco de limão ao leite, o que acontece? O leite talha e a coalhada e o soro se separam. À primeira vista, os limões nada têm a ver com leite. No entanto, depois de conhecer esse truque simples, você poderá fazer coalhada. A palavra
tibetana para métodos hábeis é thabs (sânsc. upāya). Thabs traz consigo a conotação de “truque”, ou mesmo de “catalisador”, porque métodos hábeis aceleram as coisas sem afetar os elementos envolvidos. Neste caso, usamos métodos hábeis para domar a mente – e como Buda, Mañjuśrī, Maitreya, Śāntideva e todos os grandes mestres disseram, a mente realmente precisa é de domesticação. Então, nos sentamos eretos e olhamos para nossas
mentes. Mas o que significa sentar-se com as costas eretas? Tem a ver com a mente? Não faz sentido. Se sentar com as costas retas realmente ajuda a domar a mente, então dormir com as costas eretas também deveria funcionar? Ou andando com as costas retas? Não, de
jeito nenhum. Porque é apenas sentar-se com as costas retas que provoca de forma rápida e indolor um certo efeito.
Idealmente, um mestre espiritual habilidoso mudará o método ou truque hábil que ele utiliza para se adequar à capacidade da pessoa com quem está lidando. Limão tem no vinho o mesmo efeito que tem no leite de vaca? Não. Mesmo que litros e litros de suco de limão fossem adicionados ao vinho, ele não se separaria em coalhada e soro de leite. Da mesma forma, um método hábil que funciona extremamente bem para uma pessoa pode ser inútil para outra pessoa. É por isso que o caminho é tão meticuloso e complexo e também por isso é tão intrigante. Quando o truque certo é aplicado à pessoa certa, o
resultado certo é alcançado. O Mahāyāna realmente se destaca quando se trata deste tipo de método, e especialmente do caminho do Tantra, que conhece todos os truques.
O Sūtra de Vimalakīrti não é um texto tântrico, é um sutra Mahāyāna, mas muitas das declarações feitas neste texto são idênticas às feitas no Tantrayāna. Na verdade, alguns dos princípios tântricos mais importantes podem ser encontrados neste sutra. Ou dito de outra forma, a coragem, a abertura ultrajante do Vajrayāna, bem como seus métodos chocantes e muitas vezes enervantes, são um resultado direto dos ensinamentos e da sabedoria que são discutidos abertamente no Sūtra de Vimalakīrti, que por sua vez fornece uma base firme base para a sabedoria e os métodos inconcebíveis do Vajrayāna.
O Vajrayāna pode empregar sem hesitação seu método único de tomar emoções como o caminho, porque sua base está em afirmações como: “As emoções são o esplendor do Buda” e “Lótus só podem ser encontrados na lama, não onde está seco”. Mesmo que uma
determinada cadeira só tenha sido usada como mesa, assim que alguém se senta nela, torna-se instantaneamente multifuncional. Naquele momento colapsa a ideia de que aquela cadeira funcionasse apenas como uma mesa e a partir dali ela poderá ser utilizada de ambas as maneiras, tanto como mesa quanto como cadeira.
De uma perspectiva mais intelectual e prática, as emoções apenas tornam-se as chamadas emoções – ‘assim chamadas’ é importante aqui – quando elas não são acompanhadas de consciência. Como isso funciona? Imagine que você estivesse fazendo xixi ao ar livre. De
repente, você percebe alguém andando em sua direção. Qual é a sua reação automática?
Parar de fazer xixi – isso faz parte do nosso condicionamento. Da mesma forma, quando
você sente extrema raiva, ciúme e orgulho, se você injetar até mesmo uma gota de vírus de consciência nessa emoção, ela vai ficar doente. E uma emoção doentia é tudo o que você precisa, porque uma emoção doentia é uma emoção fraca. O problema é que a maioria de nós deixa para mais tarde para injetar consciência, e esse atraso ajuda nossas emoções a se tornarem obesas e surpreendentemente ágeis. É por isso que o Buda nos ofereceu este caminho, e é um caminho que pode ser distinguido de todos os outros porque simplesmente estar consciente é totalmente indolor.
A maioria das pessoas espera que a primeira injeção de consciência funcione imediatamente, mas como é a primeira vez em centenas de vidas que aplicamos
consciência às nossas emoções, o efeito durará apenas uma fração de segundo. Também esperamos que cada resquício de ciúme, raiva ou orgulho desapareça instantaneamente e para sempre – o que obviamente não acontece. É porque continuam a experimentar tais emoções que alguns praticantes ficam desiludidos com a prática. Tendo passado tantos anos meditando e
esmagando centenas de almofadas, como é possível ainda sentir ciúme? É muito desanimador.
Aprenda a ficar satisfeito com a consistência. Cada vez que surgir uma emoção, fique satisfeito por ter se lembrado de injetá-la com aquele vírus irritante da consciência. Levará alguns anos para ver quaisquer efeitos observáveis, mas com o tempo, você começará a
notar suas emoções à medida que elas forem surgindo e, eventualmente, você poderá até mesmo ser capaz de ser o primeiro a rir de si mesmo por sentir ciúme. Ciúme não é a única emoção que pode dominá-lo, todas as emoções podem – sentir-se ridículo, por exemplo.
Os iniciantes no caminho espiritual não têm ideia de como são os obstáculos. Suas respostas às suas instabilidades emocionais são como ervas daninhas num canteiro de
flores e, a menos que você seja um jardineiro não saberá a diferença. Aprendendo a identificar uma erva daninha levará tempo, mas uma vez que você consiga fazer isso, você não estará se saindo tão mal assim.
A sabedoria discutida no Sūtra de Vimalakīrti e a sabedoria do Vajrayāna de ‘você deve fazer e pensar o impensável’ é a mesma. Graças a esta sabedoria, o Budismo nunca se limitou a uma região geográfica ou a questões de raça. Nem se tornou um kit de sobrevivência para apenas uma nacionalidade ou subproduto de luta política, debate psicológico ou da investigação científica.
Os ensinamentos budistas e o caminho para a iluminação foram inspirados por uma experiência pura de sofrimento. Essa experiência despertou o desejo de chegar ao fundo do que realmente é o sofrimento, despertou a determinação de livrar completamente os seres
humanos do sofrimento e culminou na compreensão de que a ignorância da verdade é a causa de todo sofrimento.
Em última análise, o Buddhadharma leva a uma verdade final, a verdade absoluta. Essa verdade absoluta está longe de ser fácil de entender, mas está no cerne de todas as
conversas fascinantes, reveladoras, esclarecedoras e muitas vezes hilariantes que encontramos no Sutra de Vimalakirti.
Como já disse muitas vezes, é impossível para alguém como eu entender os ensinamentos deste sutra ou, nesse caso, qualquer um dos profundos e vastos ensinamentos do Buda.
Mais de vinte e cinco séculos já se passaram desde que o Tathagata, o Rei dos Bípedes, o Homem-Touro, o Príncipe dos Śākyas, o Conquistador dos Três Mundos, o Professor de Deuses e Humanos e Salvador de Todos os Seres, fingiu não existir neste planeta. Desde então, os ensinamentos do Buda se espalharam por lugares tão distantes e exóticos quanto os palácios ricamente ornamentados dos imperadores japoneses e chineses, que são tão vibrantes e ornamentados que até mesmo Vimalakīrti poderia tê-los invejado.
Algumas das pessoas mais altruístas, ilustres e eficazes do mundo, desde Nāgārjuna à Imperatriz Tang Wu Zetian, honraram e adoraram as Palavras do Buda. Hoje, suas palavras estão sendo traduzidas para que seres de olhos azuis, narizes sardentos, peles cor de mogno
e café e cabelos em tons de dourado e coral também podem ler, apreciar e contemplar sua sabedoria. Aqueles de vocês que realmente levam a sério o conselho do Buda colherão muitas recompensas, e não menos importante é aprender como se libertar do estresse sem sentido, tensão, apego e obsessão que tanto caracterizam a vida moderna.
Depois que um ensinamento já existir por certo tempo, é importante consultar e examinar seus textos de origem. Para os muçulmanos essa fonte é o Alcorão, para os Cristãos é a Bíblia e para os judeus é a Torá. A fonte de todos os os ensinamentos do Buda são os sutras, porque são os sutras que registram fielmente as próprias palavras do Buda. Como os sutras são a palavra final do Buddhadharma, é crucial para todos os budistas lê-los,
aprendê-los e explorá-los com o coração aberto.
Há aqueles que, fingindo abertura de espírito e objetividade – que na realidade é mais culpa e hipocrisia – tentam desesperadamente identificar algo bom e que vale a pena em filosofias que são essencialmente violentas e odiosas. Feito isso, eles colocam toda a sua energia para nos convencer de que, ainda que enterrado em hostilidade brutal, esse fragmento de “bom” faz com que uma filosofia geradora de ódio valha a pena, sendo até admirável. Ao mesmo tempo, por ciúme ou raiva ou o que quer que seja, outros parecem igualmente determinados a encontrar falha num caminho que é extremamente benéfico, compassivo e útil. (Este parágrafo, sinceramente não compreendi. Talvez ele se refira a algo muito específico que me escapa completamente!)
Eles fazem de tudo para persuadir qualquer um que queira ouvir que, apesar de aparências, nenhuma filosofia pode ser tão boa a ponto de não haver algo suspeito nela. Num tal clima, é ainda mais importante para os budistas examinar nosso material de origem. É por isso
que é crucial que traduzamos os sutras tornando-os tão amplamente disponíveis quanto for possível, não apenas para os estudantes de hoje, mas para garantir o futuro do
Buddhadharma.
Você provavelmente está se perguntando onde encontrei coragem para tentar escrever este texto, ou como alguém como eu poderia pensar em apresentar as palavras do Perfeito? Há algum tempo, dois empresários, Tianqiao e Chrissy Chen solicitaram que eu escrevesse um
prefácio para uma nova edição do Sūtra de Vimalakīrti. Fiquei tão comovido com a aspiração tão forte e saudável deles em seu desejo de tornar este sutra disponível para o
maior número possível de pessoas que eu concordei. Claro, o perigo é que eu acabe de alguma forma manchando os ensinamentos do Perfeito – criatura imperfeita que sou. Mas quando pensei sobre isso, percebi que se este livro pode encorajar vocês, seus leitores a
escavar suas mentes e extrair apenas mais alguns bons pensamentos; se puder inspirá-los a fazer um esforço para acumular mérito; se isso pode atiçar sua curiosidade o suficiente para que você comece a explorar a vasta e profunda sabedoria do Buda, então vale a pena o
risco. É por isso que concordei em escrever este prefácio. Minha amiga Janine Schulz ajudou a torná-lo legível. Andreas Schulz, Du Yi, Helena Wang, Huang Jing Rui, Jain Feng, Jennifer Qi, John Canti, Kris Yao, Naya Fang,
Sarah K. C. Wilkinson, Ushnisha Ng e muitos outros esforçaram-se muito para ilustrar, traduzir, editar e revisar, pesquisando, corrigindo e distribuindo-o. Que eles e todos aqueles que leiam, segurem e possuam este sutra, alcancem a iluminação. Enquanto isso, todos podemos encontrar alguém como Vimalakīrti, que tem a coragem de abrir buracos em nossos conceitos, apontar nossos problemas e provocar nossas inibições.