sábado, 30 de abril de 2011

G. I. Gurdjieff - Paris, 21 de outubo de 1943


Gudjieff: Mãe, posso fumar? [Dirigindo-se para J.]: Note esse exemplo – ela é mãe, a mãe dessa casa, você se lembra do que eu disse da última vez, que ninguém deve fazer nada sem a permissão da mãe. A mãe é a chefe da casa.
[Sr. Gurdjieff brinca com J., diz que J. está com ciúmes pois sua mãe não pertence mais só a ele mas a todos os presentes e diz que quando ele perde-la ele perceberá o valor que ela possuía.]
Gurdjieff: Aí! Depois do que acabamos de ler sobre a cerimônia de Cristo penso que é difícil para qualquer um fazer perguntas. Mas mesmo assim vocês devem tentar, mesmo que seja egoísta fazer uma pergunta.
Hig: Senhor, eu gostaria de fazer uma pergunta. Tendo terminado há várias semanas as tarefas que coloquei para mim mesmo, encontro-me desde então em um feliz equilíbrio sem lacunas e sem um desejo. Eu gostaria de continuar trabalhando pois sinto que há um universo acima deste em que me encontro agora, mas não consigo fazer nenhum progresso desde aquele ponto e sinto que sozinho não posso fazer nada.
Gurdjieff: Esse é um mau sinal. Você deve procurar um choque que venha de fora. Você se contenta com pouco. Agora durante este período você deveria fazer um esforço. Deveria estar tendo uma luta entre a sua individualidade e suas funções. Você não deve se acalmar. O fato de que não pode trabalhar é um sinal muito bom. Você deve forçar-se a. Se você passar esta crise, essa pequena crise, você poderá começar de novo depois.
Hig: Não vejo exatamente que caminho seguir e que objetivo ter em vista.
Gurdjieff: Um caminho não é necessário. É apenas necessário que você obtenha resultados em você mesmo. Colete, acumule os resultados da luta. Você vai precisar deles para continuar. Você deve acumular essa substância, como eletricidade. Essa substância só pode ser acumulada através de esforços. Portanto, crie uma luta entre a sua cabeça e o seu animal. Eu já expliquei isso na última vez. Perdão, foi sábado que eu falei isso, minha memória está ficando falha. Eu não costumava cometer erros e agora começo a cometê-los. Eu lhe aconselho – agora que eu o conheço mil vezs melhor – a não parar. Continue a sua luta, mas sem esperar por resultados. Acumule os resultados do processo de luta. Quando lutamos internamente com pensamento, sentimento e corpo, isso gera uma substância no lugar que lhe pertence. Não temos interesse hoje em saber aonde é esse lugar. Acumule. É isso que está faltando em você. Você é jovem, não tem experiência, é vazio. Continue a luta que iniciou-se acidentalmente. Desse modo, se você diz que está satisfeito, isso provará que está na estrada certa. Mas você não deve parar. Seus planos de ir para o Etoile... Você está na rua d’Armaillé. O Etoile ainda está longe: Boulevard Carnot, existem vinte postes de luz, vinte estações. Agora então vire à direita. Essa é a estrada certa. Isto é, continue sua luta. Você está procurando pelos meios? O que você está fazendo não tem importância. O que é necessário é que deve ter em você o processo de luta. Que meios deve empregar? Isso não é importante. Lute. Você sabe melhor do que eu com o que lutar. Por exemplo, o que quer que seu corpo goste, o que quer que você tenha o hábito de dar para ele, não dê mais. A coisa importante é ter um processo contínuo de luta, porque você precisa da substância que o esforço lhe dará.
Jac: Sr. Gurdjieff, o senhor deu-me uma tarefa com o propósito de que eu lembrasse de mim mesmo, relacionado com o trabalhar com alguém que fosse próximo a mim. E eu notei, minha esposa também, que essa meta mudou nossa relação, mas só até certo ponto, e que havia um obstáculo que nem eu nem ela podíamos transpor. E você disse a ela que diria o que deveria ser feito para passar esse obstáculo.
Gurdjieff: Primeiro, todos os pais devem começar por trazerem à tona uma questão; você e sua esposa têm filhos. Bem, se vocês têm filhos eles criam para vocês obrigações especiais. Viver apenas para vocês mesmos está terminado. Você deveria estar obrigado a sacrificar tudo por seus filhos na sua vida ordinária. Ao mesmo tempo você e sua esposa devem planejar como uma meta viver por seus filhos; é o objetivo seu e da sua esposa. Nada deveria interferir em suas relações mútuas. Vocês deveriam ter essa meta em comum entre si, e essa meta em comum entre vocês irá oferecer um contato para o trabalho, pois é uma meta objetiva e o trabalho também é objetivo. Inicie isso. Discuta isso com sua esposa. Planeje com ela em ter como um objetivo sacrificar tudo por seus filhos. Não para sempre, mas por um período especial de tempo. Tudo para seus filhos. O objetivo de vocês será um objetivo comum. E na relação pessoal de vocês haverá uma luta, pois se vocês dois planejarem esse objetivo com suas mentes, sendo que seus caráteres são diferentes, cada um terá uma luta interna para sustentar, pois cada um terá escolhido seu objetivo. E aquele que alcançar esse objetivo terá passado no seu exame para poder ter outro caminho objetivo que virá posteriormente. Por enquanto, fale com calma e de maneira franca com sua esposa e planeje essa meta. Se vocês fizerem isso por uma ou duas semanas, vocês então merecerão saber do caminho objetivo.
Pom: Posso fazer uma pergunta?
Gurdjieff: Como quiser. Esta é a primeira vez que você fala, não é?
Pom: Eu gostaria de saber o que fazer para impedir que minha imaginação me leve embora para longe.
Gurdjieff: Bem, para isso vou dar-lhe um conselho muito simples e ordinário. Você também está no caminho correto. Assim sendo, o que o aconselho é algo muito simples. Entender de maneira lógica não poderá lhe dar absolutamente nada. Mais tarde você entenderá que apenas esse conselho que vou lhe dar é bom. Durante todo o seu tempo livre, conte: um, dois, três, quatro, cinco, seis, até cinquenta. Depois: cinquenta, quarenta e nove, quarenta e oito, etc. Até voltar ao início. O tempo todo. E se você fizer isso sete vezes, cinco ou dez minutos, sente-se, relaxe e diga para si mesmo: “eu sou”, “eu desejo ser”, “eu posso ser”, “não usarei isso para fazer o mal e sim o bem”, “ajudarei meu próximo quando tiver conseguido ser. Eu sou”. Depois disso, conte novamente. Mas conscientemente, não automaticamente. Faça isso durante todo o seu tempo livre. Na primeira vez vai parecer absurdo para você. Mas quando você tiver feito isso por duas ou três semanas, você me agradecerá com todo seu coração. Você me compreendeu?
Pom: Muito bem.
Gurdjieff: Não lhe dou nada mais. Conheço milhares de outras coisas. Mas lhe dou essa simples coisa. [Endereçando-se aos outros presentes] E isso o salvará. A vida toda dele irá mudar e até a hora de sua morte ele me agradecerá, ele nunca me esquecerá. Faça isso e isso é tudo.
Madame Et.: Posso pedir-lhe um conselho? Eu queria perguntar o seguinte: quando faço meu trabalho de lembrar de mim, sempre sou atrapalhada por alguma idéia deste tipo: como posso fazer meu trabalho, como posso organizar o meu dia de modo que todos em casa sintam-se felizes? E durante o dia acontece justamente o oposto. Sou atrapalhada pelas idéias que têm a ver com o trabalho. Penso no que tenho ouvido aqui e na casa de Madame de Salzmann e isso me impede constantemente.
Gurdjieff: Esse é o resultado das demandas da vida diária. Acontece com todo mundo. Eu tenho dito isso frequentemente. Você deve separar um momento especial a cada dia para o trabalho. Não o tempo todo, o Trabalho é uma coisa muito séria. Você não pode trabalhar internamente o dia todo. Você deve arrumar um momento especial e aumentá-lo pouco a pouco. Para este trabalho você dá meia hora das vinte e quatro horas. Durante essa meia hora você esquece de todo o resto, coloca de lado todo o resto. É algo pequeno. Você sacrifica por esse período todas as suas ocupações, todo o trabalho das suas funções externas. Sacrifique tudo em prol do seu trabalho interno e depois você o deixa de lado para fazer as coisas da vida ordinária. Você não pode fazer esse trabalho o dia todo.
Madame Et.: Eu penso assim. Isso torna-se mecânico. Eu sou, eu desejo ser.
Gurdjieff: Você mistura, não deve misturar. Não misture este trabalho com o trabalho ordinário. Nós temos dois tipos de estado desperto. Para este trabalho você deveria ter um estado desperto ativo. Mas meia hora desse estado é o bastante para o resto do dia, o qual você deve viver como está habituada a viver. Você pode fazer isso? E se você não puder fazer por meia hora, mesmo dez minutos são ricos para aquele que pode trabalhar dez minutos. Você deve dar e sacrificar para este trabalho um tempo especial. Você não pode dar todo o seu tempo. A vida é uma coisa, o trabalho é outra. A substancialidade de cada um é diferente: para este trabalho você deve ser mais ativa. Já disse isso muitas vezes. Quando você começa seu trabalho, sua tarefa, é o seu trabalho. Você deveria, mesmo antes de começar, relaxar-se, preparar-se, coletar-se. Depois, com todo seu ser, você realiza a sua tarefa. É algo muito complicado. Você não pode fazer isso por muito tempo. Logo você se cansa. Isso requer toda a sua força. Se você faz cinco minutos a mais toda sua força é drenada. É por esse motivo que digo que você deve aumentar pouco a pouco, até que você se acostume a fazê-lo: cinco minutos, seis minutos, dez minutos. Apenas este sistema sempre lhe dará um bom começo para prepará-la para adquirir o estado que é apropriado a um homem real. E se você trabalhar por um longo tempo, isso provará que você não trabalha com todo o seu ser – você está trabalhando apenas com sua mente. Mas fazendo assim, você pode fazer por mil anos sem obter nada; isso não vale nada. Trabalhe por um curto período, mas trabalhe bem. Aqui não é a quantidade mas a qualidade que conta. A vida é uma coisa, não a misture com outras. Cinco minutos de um bom trabalho é mais válido do que vinte e quatro horas de um trabalho de outro tipo. Se você não tem muito tempo, trabalhe por cinco minutos. Deixe a vida ordinária continuar automaticamente conforme o hábito o resto do tempo. O que você fala não diz respeito ao trabalho. Nossa vida é uma coisa, o trabalho é outra coisa. De outro modo você se tornará uma psicopata. Você se lembra de si com sua mente – isso é sem valor; lembre-se de si com todo o seu ser. Você não pode fazer isso por muito tempo, você se drena. Faça por cinco minutos, mas esqueça de todo o resto. Seja uma egoísta absoluta, esqueça tudo, seu Deus, seu marido, seus filhos, dinheiro – lembre apenas do trabalho. Curto mas substancial.
Bar: Posso fazer uma pergunta? Como posso distinguir entre meu centro mental e meu centro físico?Gurdjieff: Assuma uma simples tarefa. Quando você pensa, você pensa. As associações seguem automaticamente, essa é a sua mente. Quando você sente calor ou frio, quando você está nervoso, irritado, quando você gosta, quando você não gosta – esse é o seu sentimento.Bar: Mas em nossas ações, como podemos impedir que os centros invadam uns aos outros: pensar com meu sentimento, ter um sentimento mental e confundir um com o outro.
Gurdjieff: Você quer dizer que você não pode pensar porque você está sentindo?
Bar: Digo que eu tenho um pensamento emocional.
Gurdjieff: Você tem uma fraqueza, uma doença; você não deve pensar com seu sentimento, você deve pensar com sua cabeça. Pensar com seu sentimento é uma fraqueza, uma doença. O começo vem do sentimento e o centro do pensamento é apenas uma função. Mas o centro de gravidade deve ser o pensamento. E então você pode saber o que é individualidade. É quando seu centro de gravidade está no seu pensamento. Portanto, se seu centro de gravidade não está em seu pensamento, você não é um indivíduo, você é um autômato. É uma explicação simples. Todo homem deveria acostumar-se a ser um indivíduo, uma pessoa independente, algo definido, não uma merda (desculpe a palavra), um animal, um cão, um gato. Esse é um sintoma muito simples. Se você concentra seu ser em seu pensar, você é um indivíduo: existem muitos níveis entre os indivíduos, mas isso não é importante no momento. Você é um indivíduo quando você tem seu centro de gravidade no centro do pensamento. E se ele for em outro centro, você é apenas um autômato. Ele pode ser no seu corpo ou no seu sentimento, mas quando você trabalha você deve sempre ter o objetivo de estar em seu pensar. E faça isso conscientemente. Se você não o fizer, tudo se fará inconscientemente em você. Seu trabalho deveria ser exclusivamente concentrar-se em seu pensamento. É uma explicação simples. Phillip? Para você também isso deveria explicar muitas coisas.
Phillip: Teoricamente eu sei disso.
Gurdjieff: Mas para a sua compreensão isso deveria ter lhe dado algo novo, algumas conclusões interessantes.
Jac: Sr. Gurdjieff, agora há pouco eu estava muito interessado pela questão de Pom e por sua resposta. Em minha vida, que é muito agitada e trivial, observo o pouco espaço que há para o trabalho. Muito frequentemente sinto-me perdido. O que é normal. Mas o que é menos normal é que eu fico apegado, fico nas mãos dessa agitação, dessa trivialidade que adequa-se exatamente a mim, o eu (o mim) ordinário, o indivíduo que é mais forte em mim. E eu pergunto se em meu caso eu não deveria aplicar a recomendação que você deu a Pom, pois acredito que ela contém algo claro e simples que irá me puxar para fora da gaiola de esquilo dentro da qual estou sempre girando.
Gurdjieff: Isso não se aplicaria a você de jeito nenhum. É difícil contar desta maneira: um, dois, três, até cinquenta. Vou dar-lhe algo ainda mais simples. Você tem uma família. Um pai? Uma mãe? Um irmão?
Jac: E uma irmã.
Gurdjieff: Uma irmã também, cinco pessoas. Começando a partir de amanhã de manhã você assume como uma tarefa: a cada dez minutos, um pouco mais um pouco menos, por volta de dez minutos –é o mesmo para mim se for oito ou doze- lembre-se do seu pai, dez minutos depois de sua mãe, etc. Você lembra-se deles e representa-os para si mesmo. E quando você tiver terminado com os quatro, dez minutos depois, “eu sou”, “eu desejo ser”, com a sensação de toda a sua presença; e dez minutos depois você começa novamente – seu pai, sua mãe, etc. E dessa maneira você passa o seu tempo. É mais simples assim. Você entende? A propósito, você deve ter uma idéia fixa. Sempre quando você pensar na sua mãe pela quinta vez, pense que ela está aqui com coisas prateadas nas orelhas, coisas baratas, e você dá sua palavra a si mesmo que quando crescer e estiver ganhando dinheiro, irá assumir como uma tarefa, comprar para ela brincos de ouro. [Para Madame Et.] Dez por cento para mim. [Para Jac] Você entendeu?
Bar: Sr. Gurdjieff, quando somos assolados por um sentimento de profunda tristeza do qual não conseguimos nos livrar, que meios podemos usar para sair dele?
Gurdjieff: Se a pessoa não souber a causa dele?
Bar: Sim, se a pessoa não souber.
Gurdjieff: Não existe tal tristeza; isso é idiotice. Vá visitar um especialista. Posso recomendar um neuropatologista. Eu o conheço muito bem, ele me dá dez por cento.
Bar: Mas às vezes noto isso depois de almoçar.
Gurdjieff: Ah, ah, esse é um sintoma; você come mais do que deveria. Coma menos. Não coma o último bocado, é isso. Você entende? Você sabe o que é o último pedaço? Você entende? Então, bravo. Teste isso e na próxima vez nós conversamos. É possível que a causa disso esteja aí. Se não for descobriremos uma outra forma.
Hig: Senhor, gostaria de fazer outra pergunta. Eu não compreendo o que o amor consciente pode ser. Não entendo por que a lucidez com a qual examinamos nossas paixões e descobrimos suas causas não as exterminam de uma vez por todas.
Gurdjieff: Bem, então, digamos que o amor interessa apenas às funções. É apenas polaridade física que está operando. Quando você tiver pensado isso, o amor se tornará repugnante a você. O amor que todas as pessoas têm, você tem. Mas o amor consciente, esse é o amor real. Você tem apenas o amor baseado no sexo; isso é doença, é uma fraqueza. Você não pode ter amor. Aquele que talvez o seu avô tivesse. Hoje em dia, para todos, o amor é baseado no sexo e o sexo na polaridade. Então se a pessoa tem um nariz assim você a ama, se ela não tem o nariz de determinada forma você não a ama. O amor Real é objetivo, mas em Paris o amor objetivo não existe. Vocês tornaram a palavra sentimento como algo referente a sexo, a coisas sujas; vocês esqueceram o amor real.
Hig: Mas devemos procurar reprimir esse amor a fim de obtermos o outro?
Gurdjieff: Considere-o como uma fraqueza e deixe-o de lado. E ao mesmo tempo use isso para olhar para si mesma. Beneficie-se de tudo. E a partir do instinto talvez você conseguirá sentir o amor real. O gosto talvez virá para você. Uma vez que você tiver compaixão da pessoa que tem o nariz que você não gosta, ou por outra que parece doente, por uma criança que não tem mãe, pela pessoa que está passando fome, por um homem sem esposa – então, com cada pessoa, você conseguirá entrar na situação dela. Tenha contato com seus diferentes impulsos e se você permanecer imparcial, verá que tudo o que você tem tido em você até agora é merda e ao mesmo tempo você se sentirá apta a tentar ter o gosto de outra qualidade de amor. E se o gosto dele vier para você, poderei explicar-lhe os detalhes.
Ab: Senhor, para experimentar esse amor consciente, a polaridade pode ser uma ajuda ou é um empecilho?
Gurdjieff: Um empecilho, naturalmente. Mas você não pode fazer nada a esse respeito. Você é um escravo dessa lei. Querendo ou não. Seu corpo faz você amar ou não amar. Conscientemente, você pode deixar de ser um escravo de sua polaridade. Mas primeiro você tem de ter o gosto. Tudo o que posso dizer por enquanto é que o amor existe, o amor objetivo. Mas você deve ter o gosto dele. Depois falaremos sobre isso. Tudo o que podemos dizer de antemão permaneceria teórico. A esse respeito Belzebu* explica muitas coisas. Referente aos mandamentos de Ashiata Shiemash há isto:

O amor da consciência evoca o mesmo em resposta.
O amor do sentimento evoca o oposto.

O amor do corpo depende apenas do tipo e da polaridade.
E também há isto sobre esperança:

A esperança da consciência é força.
A esperança do sentimento é escravidão.

A esperança do corpo é doença.
E sobre a fé:

A fé da consciência é liberdade.
A fé do sentimento é fraqueza.

A fé do corpo é estupidez.
E agora, promotor, tente primeiro ganhar bastante; e você, mãe, venha me visitar. Conheço um lugar onde há artigos de ouro. Tenho um amigo na casa de penhores.
*Referência ao livro 'Relatos de Belzubu a seu Neto'

quinta-feira, 28 de abril de 2011

Bernard de Clairvaux - Cuide de domar a besta selvagem

Aquele cujo pecado da carne ainda reina não pode esperar por este reino, portanto devemos notar o que se segue: “Abençoados são os mansos”

Sendo que não pode haver acesso ao reino de Deus sem os primeiros frutos do reino, e que aquele ao qual não é dado governar seus próprios membros não pode esperar pelo reino do céu, segue-se: “Abençoados os mansos, pois herdarão a terra” (Mat. 5:5). Colocando mais claramente: “Examine os movimentos não domesticados da vontade e cuide de domar a besta selvagem. Você está cativo. Lute arduamente para desatar o que você não pode jamais quebrar. Essa vontade é a sua Eva. Você não vai triunfar contra ela usando a força”.
Não pode haver atraso. O homem, respirando novamente junto a essas palavras e pensando novamente que sua tarefa não é impossível, envergonhadamente aproxima-se da víbora da raiva e tenta dominá-la. Ele fala das tentações da carne e denuncia as consolações mundanas como sendo vaidades, triviais e sem valor, de vida curta e perigosas para todos aqueles que as amam.



Como colocar um fim nas idas e vindas da luxúria e da glutonia, da vaidade da curiosidade e do amor pelas riquezas.

“Por essa razão,” ele diz: “chame-se de um servo mau e inútil” (Mat. 25:30; Luc. 19:22). Você não pode negar que você nunca foi capaz de satisfazer essas demandas, mesmo que moderadamente. Os prazeres da garganta, que são tão altamente estimados hoje em dia, têm no máximo dois dedos de largura; e o pequeno desfrute desse pequeno fragmento é preparado com tamanha aflição e gera tanta ansiedade! Através disso as partes superior e inferior do corpo são dilatadas e o estomago inchado não é tão engordado quanto é emprenhado pela destruição; e quando os ossos não podem suportar o peso da carne, várias doenças se seguem.
Com que labor e a custo do que (às vezes da boa reputação e da honra e mesmo causando perigo para a vida) é agitado o sedutor turbilhão da luxúria, de modo que os vapores sulfúricos, embora brilhem muito pouco, conduzem suas vítimas enlouquecidas com as incitações e tratam seus corações intoxicados como abelhas, que primeiro derramam o mel e depois picam. Esse é o homem cujo coração está despedaçado, cujos desejos estão cheios de ansiedade e desapontamento, cujos atos são de abominação e infâmia, cujo destino de remorso e vergonha é por fim plenamente reconhecido pelo que é.
Em quê esses espetáculos beneficiam o corpo ou o que parecem conferir à alma? Pois você não encontrará uma terceira parte no homem que se beneficiará da curiosidade. Frívola, vã e vazia é a consolação, e eu não conheço fado mais difícil que pudesse ser trazido para uma pessoa, do que ela sempre ter o que deseja, ela que quando afugenta a doce paz deleita-se na curiosidade inquieta. É muito claro que apenas a passagem de todos esses “deleites” é uma felicidade. Além do mais, é óbvio por seu próprio nome, que a “vaidade das vaidades” não é nada (Ecl. 1:2). Vão de fato é o trabalho que é desempenhado a partir do zelo pela vaidade. “Ó glória, glória”, diz o sábio homem, “dentre os milhares de mortais, você não é nada além de um sopro nos ouvidos!”. E ainda assim, quanta infelicidade você acha que isso produz? (que não é tanto vaidade feliz quanto felicidade vã). Pois ela causa cegueira do coração, como está escrito: “Meu povo, aqueles que vos chamam de abençoados vos enganam” (Isa. 3:12). Isso produz a fúria persistente da animosidade, o ansioso trabalho da desconfiança, a tormenta cruel da frustração e a desgraça da inveja, que recebe mais miséria do que pena.
Assim, o amor insaciável pelas riquezas é um desejo que traz muito mais tormenta para a alma do que o seu desfrute traz descanso. Pois a aquisição de riquezas mostra-se ser labor máximo, sua posse temor máximo e sua perda pesar máximo. Desse modo: “onde há muitas riquezas, há muitos que as consomem” (Ecl. 5:10), e de fato a utilização que as outras pessoas fazem de suas riquezas deixa para o rico apenas a reputação pela riqueza e as precauções da riqueza. E tudo isso por algo tão insignificante. Não pensar nada sobre a glória que o olho não viu e nem o ouvido ouviu, nem entrou no coração do homem, a glória que Deus preparou para aqueles que O amam, parece ser mais do que sem sentido, é uma falta de fé.



Sobre a escravidão indigna aos vícios, a incerteza de quando a morte virá e a infelicidade de juntar riquezas

Certamente é culpa delas mesmas que este mundo, o qual se encontra nas garras do Malvado, ilude com promessas vãs as almas que se esquecem de sua criação e sua dignidade, almas que não se envergonham de alimentar-se com os porcos, de fazer companhia aos suínos em seus desejos e que nem mesmo assim ficam satisfeitas com sua comida nojenta? Daí surge tal debilidade de propósito e degradação miserável que essa nobre criatura não se envergonha de viver numa escravidão a essa imundice dos sentidos do corpo, embora seja capaz de desfrutar de bem-aventurança eterna e da glória da grandeza de Deus. Deus criou-a através de seu próprio sopro, distinguiu-a ao fazê-la à sua imagem, redimiu-a através de seu sangue, deu-lhe fé, adotou-a através do Espírito. Quando a alma deserta tal Noivo e vai atrás de tais amantes, não é surpresa que ela não possa capturar a glória que está preparada para ela. É apropriado que ela anseie por cascas de frutos e que lhe sejam negadas, quando ela prefere alimentar-se com os porcos em vez de regalar-se na mesa do Pai (Luc. 15:16). É o trabalho da loucura alimentar aquele que é estéril e que não produz nada, não estar disposto a dar nada para a viúva, não se importar nada com o coração e dar à carne tudo o que ela deseja, engordar e acarinhar um corpo pútrido que está há muito destinado a ser o alimento dos vermes. Pois quem não sabe que adorar o dinheiro, servir a avareza (que significa servir a ídolos) ou perseguir avidamente a vaidade é uma clara evidência de uma alma degenerada?

quarta-feira, 20 de abril de 2011

Philokalia - São Gregório Pálamas - A Ciência Natural e Teológica (parte 2)

A língua inspirada e universal do teólogo divino, São João de Damasco, diz no segundo de seus capítulos teológicos: “Um homem que deseja falar ou ouvir qualquer coisa a respeito de Deus deveria saber com toda clareza que no que diz respeito à teologia e à economia divina nem todas as coisas são inexprimíveis e nem todas são capazes de expressão, e que nem todas as coisas são incognoscíveis nem são todas conhecíveis”. Sabemos que essas realidades divinas das quais desejamos falar transcendem a fala, uma vez que tais realidades existem de acordo com um princípio que é transcendente. Elas não estão fora do reino da fala por causa de alguma deficiência, mas estão além do poder conceitual inato dentro de nós ao qual damos expressão quando falamos com os outros. Pois nem nossa fala pode explicar essas realidades através de interpretação, nem nosso poder conceitual inato tem a capacidade de alcançá-las por si próprio através de investigação. Portanto, não deveríamos nos permitir dizer nada concernente a Deus, e sim recorrer àqueles que em Espírito falam das coisas do Espírito, e isso mesmo quando as pessoas requererem alguma afirmação nossa.

É dito que nos portais da academia de Platão estavam inscritas as palavras: “Que não entre nenhum homem que seja ignorante em geometria.” Uma pessoa incapaz de conceber e discursar sobre as coisas inseparáveis como separadas é, de todo modo, ignorante em geometria. Pois não pode haver um limite sem algo limitado. Mas a geometria é quase que totalmente uma ciência de limites e ela até mesmo define e estende limites por eles mesmos, abstraídos daquilo que eles limitam, porque o intelecto separa o inseparável. Como pode, então, uma pessoa que nunca aprendeu a separar em seu intelecto um objeto físico de seus atributos, estar apta a conceber a natureza em si mesma? Pois a natureza não é meramente inseparável dos elementos naturais que lhe são inerentes, mas não pode nem mesmo existir em momento algum sem eles. Como ele pode conceber os universais como universais, sendo que eles existem como tais em particulares e são distinguidos deles apenas pela inteligência e pela razão, sendo percebidos intelectualmente como anteriores aos muitos particulares embora na verdade não possam de maneira nenhuma existir separados desses muitos particulares? Como ele poderá compreender as coisas intelectuais e espirituais? Como poderá entender quando dizemos que cada intelecto também tem pensamento e que cada um de nossos pensamentos é nosso intelecto? Como ele não irá nos ridicularizar e nos acusar de dizermos que cada homem possui duas ou mais mentes?
Se, portanto, uma pessoa não consegue falar ou conceber as coisas indivisíveis como distintas, como poderá discutir ou ser ensinada sobre algo desse tipo no que se refere a Deus, a respeito do qual, de acordo com os santos, existem e é dito existirem muitas uniões e distinções? Mas embora as uniões pertencentes a Deus prevaleçam e sejam anteriores às distinções, elas não as abolem e nem as impedem. Os seguidores de Akindynos, entretanto, não podem aceitar ou compreender a distinção indivisível que existe em Deus, mesmo quando nos ouvem falar, em harmonia com os santos, de uma união dividida. Pois a Deus pertencem a incompreensibilidade e a compreensibilidade, embora Ele em Si seja um. O mesmo Deus é incompreensível em sua essência, mas compreensível pelo que Ele criou de acordo com Suas energias divinas, ou seja, de acordo com Sua vontade pré-eterna relacionada a nós, Sua providência pré-eterna referente a nós, Sua sabedoria pré-eterna no que diz respeito a nós e, usando as palavras de São Máximo, Seu poder, sabedoria e bondade infinitos. Mas quando aqueles que não nos compreendem nos ouvem falar dessas coisas que somos obrigados a dizer, eles nos acusam de falarmos de muitos deuses e de muitas falsas realidades e de tornarmos Deus composto. Pois eles são ignorantes do fato de que Deus é indivisivelmente dividido e é unido divididamente e ainda assim, a despeito disso, não sofre nem multiplicidade nem torna-se composto.

Cada natureza criada está distante e é completamente estrangeira à natureza divina. Pois se Deus é uma natureza, as outras coisas não são natureza; mas se todas as outras coisas são natureza, Ele não é uma natureza, assim como Ele não é um ser se todas as outras coisas são seres. E se Ele é um ser, todas as outras coisas não são seres. E se você aceitar isso como verdade também no que diz respeito a sabedoria, a bondade e a todas as coisas em geral pertencentes a Deus ou atribuídas a Ele, então sua teologia estará correta e de acordo com os santos. Deus é e é dito ser a natureza de todos os seres, na medida que todos participam Dele e subsistem por meio dessa participação: porém, não pela participação em Sua natureza – longe disso – mas pela participação em Sua energia. Nesse sentido ele é o Ser de todos os seres, a Forma de todas as formas bem como o autor da forma, a Sabedoria dos sábios e, simplesmente, o Tudo de todas as coisas. Ademais, Ele não é uma natureza, pois Ele transcende toda natureza; Ele não é um ser, pois transcende todo ser e Ele não é e nem possui uma forma porque Ele transcende a forma. Como, então, podemos nos aproximar de Deus? Ao nos aproximarmos de sua natureza? Mas nem um único ser criado teve ou pode ter qualquer comunicação ou proximidade com a natureza sublime. Assim, se alguém conseguiu aproximar-se de Deus, evidentemente aproximou-se Dele por meio de Sua energia. De que maneira? Através da participação natural nessa energia? Mas isso é comum a todos os seres criados. Desse modo, não é em virtude das qualidades naturais, mas em virtude do que é atingido pela livre escolha que a pessoa fica perto ou longe de Deus. Mas a livre escolha pertence apenas aos seres dotados de inteligência. Portanto, dentre todas as criaturas apenas aquelas dotadas de inteligência podem ficar longe ou perto de Deus, aproximando-se através da virtude ou distanciando-se através do vício. Assim, apenas tais seres são capazes de miséria ou de bênção.

São Paulo ensinou-nos que a alma adornada com inteligencia pode ficar como que morta mesmo possuindo a vida como seu ser, pois ele escreve: “a viúva que só busca prazer já está morta mesmo se vive”(1 Tim 52.6). Ele não podia ter dito pior a esse respeito sobre o presente assunto de nosso discurso, isto é, da alma dotada com inteligencia. Pois se a alma privada do Noivo espiritual não se humilha e não se aflige e não adota uma vida de doloroso e rigoroso arrependimento, e ao invés disso, de maneira libertina mergulha nos prazeres sensuais e na auto-indulgencia, ela está morta mesmo enquanto vive, mesmo que ela seja imortal em essência. Ela tem a capacidade para o que é pior, ou seja, a morte, e da mesma maneira para o que melhor - a vida. O apostolo diz que se uma viúva privada de seu noivo mundano vive só para satisfazer seus prazeres, mesmo que esteja viva em seu corpo, ela está completamente morta em sua alma. Ele também diz em outro lugar: “mesmo quando estávamos mortos por causa de nossos pecados, Deus nos vivificou juntamente com Cristo”(Efé. 2.5). E São João também diz: “existe um pecado que conduz à morte e existe um pecado que não conduz à morte”(1 João 5:16,17). E o Próprio Senhor ao ordenar um homem a: “deixar os mortos enterrarem seus mortos”(Mat. 8.22), deixou claro que aqueles envolvidos no funeral embora vivessem no corpo estavam plenamente mortos em alma.

Os ancestrais de nossa raça desistiram voluntariamente da vigilância e da contemplação de Deus. Eles desconsideraram Seus mandamentos, fizeram de si mesmos uma mente com o espirito morto de satã, e contrariamente à vontade do Criador, comeram da árvore proibida. Despidos de suas vestimentas resplandecentes e vivificantes de esplendor celestial, tornaram-se mortos em espirito como satã. Mas uma vez que satã não é meramente um espirito morto, mas também traz a morte àqueles que aproximam-se dele, e uma vez que aqueles que compartilham de sua escuridão possuíam um corpo através do qual seus conselhos funestos podiam operar, eles transmitiram esses espíritos mortos, esses mercadores da morte, a seus próprios corpos. O corpo humano teria se decomposto imediatamente e retornado de onde ele foi tirado se não tivesse sido preservado pela providência divina e pelo poder divino, pacientemente esperando a decisão Daquele que cria todas as coisas através de Sua palavra apenas. Sem essa decisão absolutamente nada é realizado e ela é sempre justa. Como o salmista diz: “o Senhor é justo e Ele ama a justiça”(Sal. 2:7).

A escritura nos diz: “Deus não criou a morte”(Sab.1:13). Ao contrário ele impediu sua concepção até onde foi possível e até onde foi compatível com Sua justiça para obstruir aqueles aos quais Ele próprio tinha dado livre arbítrio quando os criou. Pois no início Deus deu-lhes um conselho que iria conduzi-los a imortalidade, e para que fossem salvaguardados na medida do possível, Ele transformou seu conselho vivificante num mandamento. Ele claramente prognosticou e advertiu que a morte seria a consequência da rejeição desse mandamento vivificante, de modo que ou através do amor, ou do conhecimento ou do temor, eles se protegeriam da experiência da morte. Sendo que no mais alto grau possível Deus ama, conhece e tem o poder de efetuar o que é vantajoso para cada ser criado, tudo o que vem Dele a nós, mesmo que seja sem que desejemos isso, certamente provará ser para nosso benefício. Por outro lado, devemos muito temer que aquilo que nos engajamos por nossa própria iniciativa, como criaturas dotadas de livre arbítrio, provará ser desvantajoso para nós.
Quando, entretanto, em Sua providência Deus proibiu definitivamente alguma coisa, seja falando diretamente, como Ele o faz no Paraíso e no Evangelho ou seja falando através dos profetas, como ele faz nos Israelitas, ou através dos Apóstolos e de seus sucessores, como o faz na lei da graça, é claramente desvantajoso e destrutivo para nós desejar e possuir isso. E se alguém profere isso a nós e nos induz a obter tal coisa, através de palavras persuasivas ou ao nos encantar com uma aparente amizade, essa pessoa é manifestadamente um inimigo e é hostil a nossa vida.

Dessa forma, seja por causa do amor por Aquele que quer que vivamos (pois por que Deus teria nos criado como criaturas vivas se Ele não quisesse especialmente que vivêssemos?), ou porque reconhecemos que Ele sabe mais o que é vantajoso para nós do que nós mesmos sabemos (e como Aquele que nos concede o conhecimento e é o Senhor do conhecimento não saberia disso incomparavelmente melhor do que nós?), ou por causa do temor de Seu poder Onipotente – não deveríamos ter sido enganados, atraídos e persuadidos naquele momento a rejeitarmos os mandamentos e conselhos de Deus. E o mesmo é válido hoje no que diz respeito a esses mandamentos e conselhos salvadores que recebemos posteriormente. Assim como agora aqueles que não escolhem resistir corajosamente ao pecado e que não se põe a praticar os mandamentos divinos em nada, terminam – se não renovam suas almas através do arrependimento- seguindo o caminho que conduz à morte interna e eterna, também nossos dois ancestrais primais, ao não resistirem àqueles que lhes persuadiam a desobedecer, violaram o mandamento. Por causa disso a sentença previamente proclamada a eles por Aquele que julga de maneira justa, imediatamente efetuou-se, de modo que assim que comeram da árvore eles morreram. Nesse caso eles entenderam na prática o significado do mandamento que haviam esquecido – o mandamento da verdade, do amor, sabedoria e poder – e eles se esconderam de vergonha (ref. Gen. 3 – 7,8), percebendo-se despojados da glória que confere aos espíritos imortais uma vida mais excelente e sem a qual a vida dos seres espirituais é de fato pior do que muitas mortes.

Que ainda não era para o benefício de nossos ancestrais comer da árvore, fica claro quando São Gregório de Nizianzos escreve: “A árvore, na minha visão das coisas, é a contemplação divina, a qual apenas aqueles estabelecidos num alto grau de perfeição podem se aproximar com segurança, enquanto que não é bom para aqueles que ainda são imaturos e ávidos em seus desejos, do mesmo modo que a comida sólida não é boa para aqueles que ainda são frágeis e necessitam de leite”. Mas mesmo se você não quiser referir-se àquela árvore e seu fruto de maneira anagógica à contemplação divina, penso que não seja difícil de ver que comer seu fruto não foi benéfico para nossos ancestrais, uma vez que eles eram ainda imaturos. Na minha opinião, eles viram que a árvore era muito atraente de se olhar e de se alimentar no paraíso. Mas a comida mais atraente para os sentidos não é verdadeiramente e em todos os sentidos boa, e não é boa sempre e nem para todas as pessoas. Ela é boa para aqueles que podem utilizá-la sem serem dominados por ela, e, então, somente quando é necessária, na medida que seja necessária e que seja pela glória Daquele que a criou; mas não é boa para aqueles que não estão aptos a usá-la de tal maneira. Penso que é por causa disso que a árvore foi chamada de a árvore do conhecimento do bem e do mal. (ref. Gen. 2:17)

Pois apenas aqueles plenamente estabelecidos na prática da contemplação divina e das virtudes podem concursar com coisas fortemente atraentes aos sentidos sem afastarem-se da contemplação de Deus e dos hinos e preces a Ele. Apenas tais pessoas podem fazer dessas coisas um material e um ponto de partida para elevarem-se para Deus, e através desse movimento espiritual na direção de Deus podem dominar totalmente os prazeres sensuais. E mesmo que o prazer seja novo e possa ser maior e mais poderoso por causa de sua novidade, eles não permitirão que a inteligência de sua alma seja sobrepujada pelo que é mau, mesmo que seja considerado naquele momento como bom por aqueles totalmente dominados e capturados por aquilo.

O mediador e a causa da morte, de caráter retorcido e astúcia excessiva, introduziu-se numa serpente rastejante no paraíso de Deus. Ele não tornou-se uma serpente (nem poderia, exceto numa forma ilusória; e isso ele preferiu não adotar naquele momento por medo de ser detectado), mas, não ousando se arriscar a uma confrontação aberta, ele escolheu uma aproximação traiçoeira, acreditado que dessa maneira escaparia de ser detectado. Assim, tendo o aspecto visível de um amigo ele poderia secretamente insinuar as coisas mais detestáveis, e pelo fato extraordinário de seu discurso – pois a serpente visível não era dotada de inteligência, nem previamente parecia capaz de falar – ele pôde impressionar Eva e atrair toda sua atenção para si e através de seus artifícios torná-la fácil de se lidar. Dessa forma, ele pôde imediatamente induzi-la a sujeitar-se ao que é inferior e assim escravizá-la a coisas às quais ela estava designada a reinar dignamente, sendo que apenas ela entre os seres visíveis tinha sido honrada por Deus com inteligência e sido criada à imagem do Criador. Deus permitiu isso para que o homem, vendo o conselho vindo de uma criatura inferior a si – e, de fato, o quão inferior a ele é uma serpente – pudesse perceber o quanto era completamente sem valor esse conselho e pudesse corretamente rejeitar com indignação a idéia de se submeter ao que era claramente inferior a ele. Dessa maneira ele preservaria sua própria dignidade e ao mesmo tempo, ao obedecer ao mandamento divino, manteria a fé com o Criador. Assim ele teria vencido facilmente o espírito que havia caído da vida verdadeira e teria recebido a imortalidade abençoada, podendo habitar eternamente na vida divina.

segunda-feira, 18 de abril de 2011

Meher Baba - Maya



Parte I - Falsos Valores


Todo mundo quer conhecer e perceber a Verdade, mas a Verdade não pode ser conhecida e compreendida como Verdade a menos que a ignorância seja conhecida e compreendida como sendo ignorância. Daí surge a importância da compreensão de Maya, ou o princípio da lgnorância. As pessoas lêem e ouvem muito sobre Maya, mas poucos entendem o que ela realmente é. Não basta ter uma compreensão superficial de Maya, é necessário que Maya seja entendida como ela é, na sua realidade. Entender Maya, ou o princípio da Ignorância, é saber a metade da Verdade do universo. A ignorância em todas as suas formas deve desaparecer de modo que a alma possa se estabelecer no estado de Autoconhecimento.
Por isso, é imperativamente necessário que a humanidade saiba o que é falso, que reconheça o que é falso para se livrar do falso ao saber que ele é falso. Qual é a natureza essencial da falsidade? Se o verdadeiro é conhecido como sendo verdadeiro ou se o falso é conhecido como sendo falso, não há falsidade, apenas uma forma de conhecimento. A falsidade consiste em tomar o verdadeiro como sendo falso ou o falso como sendo verdadeiro, isto é, ao considerar que algo é diferente do que realmente é em si mesmo. A falsidade é um erro no julgamento da natureza das coisas.
De um modo geral, existem dois tipos de conhecimento: os julgamentos puramente intelectuais sobre os fatos da existência, e os julgamentos de valor, que implicam na apreciação do valor ou da importância das coisas. Os julgamentos puramente intelectuais ou as crenças derivam sua importância do fato de estarem relacionados com valores de alguma forma. Divorciados de valores, têm muito pouca importância em si mesmos. Por exemplo, ninguém tem muito interesse em contar exatamente o número de folhas de uma determinada árvore, apesar de que do ponto de vista puramente teórico tal informação seria uma forma de conhecimento. Tal informação ou conhecimento é tratado como insignificante porque não está vitalmente ligado a outros valores. O conhecimento intelectual torna-se importante quando permite ao homem perceber certos valores, dando-lhe o controle sobre os meios para sua realização ou quando ele entra na própria avaliação como um importante fator, modificando ou afetando de alguma outra forma os valores aceitos.
Assim como existem dois tipos de julgamento, há dois tipos de falsidade: os erros em aceitar como fatos coisas que não são fatos e erros de avaliação e valorização. Os erros de avaliação podem ser cometidos nos seguintes aspectos: (1) ao tomar como importante o que não é importante, (2) ao tomar como sem importância o que é importante, ou (3) ao dar uma importância a uma coisa diferente da importância que ela realmente tem. Todas essas falsidades são criações de Maya. Embora Maya inclua todas as falsidades do ponto de vista espiritual, há algumas falsidades que contam e algumas falsidades que não contam muito. Se uma pessoa considera um trono ser maior do que ele é, seria uma falsidade, mas isso não importa muito. Por outro lado, se uma pessoa considera o trono como sendo tudo e como o objetivo de sua vida, essa seria uma falsidade que afetaria substancialmente o curso e o significado de sua vida. Em geral, os erros de valorização são muito mais eficazes em desencaminhar, perverter e limitar a vida do que os erros nos julgamentos puramente intelectuais sobre certos fatos objetivos.
Os erros na valorização surgem devido à influência de vontades e desejos subjetivos. Os valores verdadeiros são valores que pertencem às coisas em seu próprio direito. Eles são intrínsecos e por serem intrínsecos são absolutos e permanentes e não são passíveis de mudança de tempos em tempos ou de pessoa para pessoa. Falsos valores são derivados de desejos ou vontades. Eles são dependentes de fatores subjetivos e sendo assim dependentes, são relativos e impermanentes, podendo sofrer alterações ao longo do tempo e de pessoa para pessoa.
Por exemplo, um indivíduo que está com muita sede e está em um deserto como o Saara pensa que nada é mais precioso do que a água, enquanto alguém que tem em mãos uma abundância de água e que não está com muita sede não dá a mesma importância a ela. Da mesma forma, uma pessoa que está com fome, considera a comida muito importante, mas o indivíduo que teve um jantar completo nem sequer pensa em comida até que esteja com fome novamente. A mesma coisa aplica-se a outros desejos e anseios que projetam valores imaginários e relativos para os objetos que satisfarão esses desejos e anseios.
O valor dos objetos dos sentidos é grande ou pequeno de acordo com a intensidade ou a urgência com que são desejados. Se esses desejos e anseios aumentam, os objetos correspondentes assumem maior importância. Se sua intensidade ou urgência diminui, os objetos também perdem muito de sua importância. Se os desejos e anseios aparecem intermitentemente, eles retêm seu possível valor quando os desejos e anseios estão latentes e seu valor real quando eles se manifestam. Esses são todos os falsos valores, pois não são inerentes aos próprios objetos. Quando, à luz do verdadeiro conhecimento, todos os desejos e anseios desaparecem completamente, os objetos trajados com importância através da operação desses desejos e anseios perdem imediatamente toda sua importância emprestada e parecem sem sentido.
Assim como uma moeda que não esteja em uso corrente é tratada como sem valor, embora tenha uma espécie de existência, os objetos dos desejos e anseios, quando vistos em sua vacuidade são tratados como falsos, ainda que esses objetos posam continuar a ter algum tipo de reconhecimento. Eles todos existem e podem ser conhecidos e vistos, mas já não significam a mesma coisa. Eles sustentam a falsa promessa de satisfação de uma imaginação pervertida pela luxúria e pelos desejos; ainda assim, para uma percepção tranquila e constante, são vistos como sem importância alguma quando considerados como separados da alma.
Quando um ente querido morre, há tristeza e solidão, mas essa sensação de perda está enraizada no apego à forma, independentemente da alma. É a forma que desapareceu e não a alma. A alma não está morta; em sua verdadeira natureza ela nem mesmo foi embora, pois ela está em toda parte. No entanto, através de apego ao corpo, a forma era considerada importante. Todos os anseios, desejos, emoções e pensamentos estavam centradas sobre a forma, e quando, a forma desaparece através da morte, existe um vácuo, que se expressa através de falta do falecido.
Se a forma como tal não tivesse sido sobrecarregada com falsa importância, não haveria tristeza em perder a pessoa que faleceu. O sentimento de solidão, a memória persistente da pessoa amada, o anseio de que ele ou ela devesse ainda estar presente, as lágrimas de luto e os suspiros de separação, devem-se todos à valorização falsa, ao trabalho de Maya. Quando uma coisa sem importância é considerada importante, temos uma manifestação principal do trabalho de Maya. Do ponto de vista espiritual, é uma forma de ignorância.
Por outro lado, o trabalho de Maya também se expressa ao fazer uma coisa importante parecer banal. Na realidade, a única coisa que tem importância é Deus, mas muito poucas pessoas estão realmente interessadas em Deus por Si mesmo. Se por acaso a pessoa mundana voltasse para Deus, é principalmente para seus próprios fins egoístas e mundanos. Eles buscam a satisfação de seus próprios desejos, esperanças e até mesmo vingaças através da intervenção do Deus de sua imaginação. Eles não buscam a Deus como a Verdade. Eles anseiam por todas as coisas, exceto a única Verdade, a qual consideram como sem importância. Novamente isso é a cegueira da visão causada pelo trabalho de Maya. As pessoas buscam sua felicidade em tudo, exceto em Deus, o qual é a única fonte inesgotável de alegria permanente.
O trabalho de Maya também expressa-se ao fazer a mente dar uma importância para algo diferente da importância que aquilo realmente tem. Isso acontece quando os rituais, cerimônias e outras práticas religiosas externas são considerados como fins em si mesmos. Eles têm seu próprio valor como meios para um fim, como veículos da vida, como meios de expressão, mas, tão logo assumem créditos a seu próprio favor, está recebendo uma importância diferente daquela que lhes pertence. Quando são considerados importantes em si mesmos, eles limitam a vida ao invés de servir o propósito de expressá-la. Quando é permitido que o inessencial predomine sobre o essencial, dando-lhe importância errada, tem-se a terceira forma principal de ignorância relativa a avaliação. Este novamente é o trabalho de Maya.



Parte II - Falsas Crenças






As algemas que mantêm a alma em um cativeiro espiritual, consistem principalmente de valores errados ou falsidades referentes à valorização. Algumas falsidades relacionadas a crenças erradas, também desempenham um papel importante no processo de manter a alma em cativeiro espiritual. Falsas crenças implementam falsos valores, e estes, por sua vez, reúnem força dos falsos valores nos quais a alma baseou-se. Todas as falsas crenças assim como os falsos valores são grandemente criações de Maya, e eles são usados por Maya para manter a alma em suas garras, ainda na ignorância.
Maya se torna irresistível ao apossar-se da própria sede do conhecimento, que é o intelecto humano. Sobrepujar Maya é difícil porque, com o intelecto sob o seu domínio, Maya cria barreiras e sustenta falsas crenças e ilusões. Ela cria barreiras para a realização da Verdade através de tentativas persistentes de sustentar e justificar as crenças errôneas. O intelecto que funciona em liberdade prepara o caminho para a Verdade, mas o intelecto que é um joguete nas mãos de Maya cria obstáculos para a verdadeira compreensão.
As falsas crenças criadas por Maya são tão profundamente enraizadas e fortes que parecem ser auto-evidentes. Elas assumem a feição de verdades autênticas e são aceitas sem questionamento. Por exemplo, uma pessoa acredita que ela é seu corpo físico. Normalmente, nunca lhe ocorre que ela pode ser algo diferente de seu corpo. A identificação com o corpo físico é assumida por ela instintivamente, sem exigência de uma prova, e ela mantém a crença mais fortemente ainda porque ela é independente de uma prova racional.
A vida de um indivíduo é centrada em torno do corpo físico e seus desejos. Abandonar a crença de que ele é o corpo físico envolve o abandono de todos os desejos relacionados com o corpo físico e os falsos valores que eles implicam. A crença de que ele é seu corpo físico é propícia aos desejos físicos e apegos, mas a crença de que ele é algo diferente do seu corpo físico é contrária aos desejos e apegos aceitos. Portanto, a crença de que o indivíduo é o seu corpo físico torna-se natural. É uma crença fácil de manter e difícil de se desenraizar. Por outro lado, a crença de que ele é algo diferente de seu corpo físico parece exigir uma prova convincente. É difícil de segurar e fácil de resistir. Igualmente, quando a mente não está sobrecarregada com todos os desejos e apegos físicos, a crença de que ele é seu corpo físico é vista como falsa e a crença de que ele é algo diferente de seu corpo é vista como verdade.
Mesmo quando uma pessoa consegue deixar cair a falsa crença de que ela é o corpo físico, ela continua a ser uma vítima da falsa crença de que ela é o seu corpo sutil. Sua vida é, então, centrada em torno do corpo sutil e seus desejos. Abandonar a crença de que ela é o corpo sutil envolve o abandono de todos os desejos relacionados com o corpo sutil e os falsos valores que eles implicam. Portanto, a crença de que ela é seu corpo sutil agora torna-se natural para ela, e a crença de que ela é algo diferente de seu corpo sutil parece exigir uma prova convincente. Mas quando a mente não está sobrecarregada com todos os desejos e apegos referentes ao corpo sutil, a pessoa abandona a falsa crença de que ela é seu corpo sutil, tão facilmente como abandonou a falsa crença de que ela era o seu corpo físico.
No entanto, esse não é o fim das falsas crenças. Mesmo quando uma pessoa abandona a falsa crença de que ela é seu corpo sutil, ela alimenta a crença ilusória de que ela é o seu corpo mental. A pessoa alimenta essa crença falsa, porque a aprecia. Ao longo de sua longa vida como uma alma individual, ela se agarrou com carinho à falsa idéia de sua existência separada. Todos os seus pensamentos, emoções e atividades têm repetidamente assumido e confirmado somente uma afirmação, ou seja, a existência do "eu" separado. Abandonar a falsa crença de que ela é a mente-ego do corpo mental é entregar tudo o que parecia constituir sua própria existência.
Para abandonar a falsa crença de que ela é o seu corpo físico ou o sutil, é necessário abandonar vários desejos e apegos. É um abandono de algo que a pessoa teve durante muito tempo. Ao abandonar a falsa crença de que ele é a sua mente-ego, o indivíduo é chamado a entregar a própria essência do que ele pensava ser ele mesmo. Apagar esse último vestígio da falsidade é, portanto, a coisa mais difícil. Mas essa última falsidade não é mais duradoura do que as falsidades anteriores que pareciam ser certezas incontestáveis. Ela também tem o seu término e é removida quando a alma renuncia seu desejo por uma existência separada.
Quando a alma se conhece como sendo diferente dos corpos grosseiro, sutil e mental, ela se conhece como sendo infinita. Como a Alma infinita, ela não faz nada, ela simplesmente É. Quando a mente é adicionada à alma individualizada, ela parece pensar. Quando o corpo sutil é adicionado à alma com a mente, ela parece desejar. Quando o corpo grosseiro é adicionado à eles, a alma parece estar envolvida em ações. A crença de que a alma está fazendo algo é uma crença falsa. Por exemplo, um indivíduo acredita que ele está sentado na cadeira, mas na verdade é o corpo que está sentado na cadeira. A crença de que a alma está sentada na cadeira é devida à identificação com o corpo físico. Da mesma forma, uma pessoa acredita que está pensando, mas na verdade é a mente que está pensando. A crença de que a alma está pensamento é devida à identificação com a mente. É a mente que pensa e é o corpo que se senta. A alma não está envolvida nem no pensar, nem em quaisquer outras ações físicas.
Claro que não é simplesmente a mente ou o mero corpo que realizam o pensar ou outras ações físicas, pois a mera mente e o mero corpo não existem. Eles existem como ilusões da alma individualizada, e é quando a alma falsamente se identifica com eles que o pensar ou a realização das coisas ocorre. A alma e o corpo mental, sutil e grosseiro tomados em conjunto, constituem o agente das ações, ou o "eu" limitado, mas a alma em sua verdadeira natureza não é responsável nem pelos pensamentos, nem pelos desejos, nem pelas ações. A ilusão de que a alma é a mente ou os corpos e a ilusão de que a alma é o agente do pensar, do desejar, ou das ações são criadas por Maya, a qual é a Ilusão e o princípio da Ignorância.
Da mesma forma, a crença de que a alma experimenta os prazeres e as dores da vida ou de que esteja passando pelos opostos da experiência também é falsa. A alma está além dos opostos da experiência, mas não se conhece como tal. E dessa forma ela assume as experiências que são características dos opostos devido à identificação com a mente e os corpos sutil e grosseiro. A alma que se confunde com a mente e o corpo torna-se destinatária de dores e prazeres. Assim, todos os prazeres e as dores aos quais a pesoa está sujeita estão enraizados na ignorância.
Quando um indivíduo pensa que ele é a pessoa mais infeliz do mundo, ele está adotando uma ilusão que sugiu por causa da ignorância, ou de Maya. Ele não é realmente infeliz, mas imagina que é infeliz porque se identifica com a mente e os corpos. Claro que não é a mente por si só, ou os corpos por si só que podem ter alguma experiência dos opostos. É a alma, a mente e os corpos tomados juntos que se tornaram o sujeito da experiência dual; mas a alma, em sua verdadeira natureza, está além dos opostos da experiência.
Assim, é a mente e os corpos em conjunto que constituem o agente das atividades e o sujeito das experiências duais. No entanto, eles não assumem esse papel duplo por seu direito próprio, mas somente quando eles são tomados juntamente com a alma. É a mente e os corpos que estão sendo animados que, juntos, tornam-se o agente de atividades ou o sujeito da experiência dual. O processo de vivificação pela alma se baseia na ignorância, pois a alma em sua verdadeira natureza é eternamente sem qualidades, sem modificações e ilimitada. Ela parece ser qualificada, modificada e limitada por causa da ignorância, ou do trabalho de Maya.



Parte III - Transcendendo as falsidades de Maya


Inúmeras são as falsidades que uma pessoa guiada por Maya abraça no torpor da ignorância; e desde o início, as falsidades carregam dentro de si sua própria insuficiência e falência. Cedo ou tarde elas são conhecidas como mentiras. Isso leva a pessoa à pergunta: Como discernir a falsidade como falsidade? Não há nenhuma saída da falsidade, exceto ao conhecê-la como falsa, mas esse conhecimento da falsidade como falsidade nunca chegaria a menos que estivesse de alguma forma latente na própria falsidade, desde o início.
A aceitação da falsidade é sempre um acordo forçado. Mesmo nas profundezas da ignorância, a alma oferece algum tipo de desafio para a falsidade. Não importa o quão fraca e desarticulada pareça estar em seus estágios iniciais, é o início daquela busca da Verdade que finalmente aniquila toda a falsidade e toda a ignorância. Na aceitação de uma falsidade há uma inquietação crescente, uma profunda desconfiança e um medo vago. Por exemplo, quando um indivíduo considera a si mesmo e os outros serem idênticos com o corpo grosseiro, ele não consegue reconciliar-se totalmente a essa crença. Ao abraçar essa falsa crença há o medo da morte e o medo de perder os outros. Se uma pessoa depende somente da posse de formas para sua felicidade, ela sabe em seu coração que está construindo seus castelos na areia movediça, sabe que este certamente não é o caminho para a felicidade permanente, que o apoio ao qual ela tão desesperadamente se apega pode a qualquer dia desaparecer. Por isso, ela está profundamente desconfiada de suas bases.
O indivíduo está inquietamente consciente de sua própria insegurança. Ele sabe que algo está errado em algum lugar e que ele está contando com falsas esperanças. A falsidade é traiçoeiramente desconfiável. Ele simplesmente não pode-se dar ao luxo de abraçá-la para sempre. Ele poderia muito bem colocar uma cobra venenosa em torno de seu pescoço ou ir dormir no topo de um vulcão que está apenas temporariamente inativo. A falsidade traz a marca de ser incompleta e insatisfatória, temporária e provisória. Ela aponta para algo mais. Para a pessoa ela parece estar escondendo algo maior e mais verdadeiro do que aquilo que ela parece ser. A falsidade trai a si mesma e ao fezer isso leva a pessoa a conhecer a verdade.
As falsidades são de dois tipos: aquelas que surgem devido ao pensamento irregular e desconexo, e aquelas que surgem devido ao pensamento viciado. As falsidades que surgem devido ao pensamento irregular são menos prejudiciais do que aquelas que surgem do pensamento viciado. As falsidades de natureza puramente intelectual surgem por causa de algum erro na utilização do intelecto. Enquanto que falsidades que são importantes do ponto de vista espiritual surgem por causa do vício do intelecto, através da operação dos desejos irracionais que cegam.
A diferença entre esses dois tipos de falsidade pode ser interposta por uma analogia fisiológica. Alguns distúrbios dos órgãos vitais do corpo são funcionais e alguns são estruturais. Doenças funcionais surgem por causa de alguma irregularidade no funcionamento de um órgão vital. Nesses casos não há nada de muito errado com a estrutura do órgão vital. Ele apenas tornou-se lento ou irregular e precisa apenas de um pequeno estímulo ou correção a fim de funcionar corretamente. Nos distúrbios estruturais, a doença passa a existir por causa do desenvolvimento de alguma deformidade na estrutura ou na constituição do órgão vital. Nesses casos, o distúrbio do órgão vital é de natureza muito mais grave. Ele tornou-se danificado ou ineficaz devido a algum fator concreto que afetou a própria constituição do órgão. Ambos os tipos de doenças podem ser corrigidas, mas é muito mais fácil a correção de problemas meramente funcionais do que corrigir os estruturais.
As falsidades que surgem devido a alguma irregularidade na utilização do intelecto são como os distúrbios funcionais e as falsidades surgidas deveido ao vício do intelecto são como os disturbios estruturais. Assim como os distúrbios funcionais são mais fáceis de corrigir do que os estruturais, as falsidades decorrentes de irregularidades na aplicação do intelecto são mais fáceis de corrigir do que aquelas que surgem devido ao vício do intelecto. A fim de corrigir uma doença funcional de um órgão vital, tudo o que é necessário é dar-lhe uma melhor modulação e mais força. Se há uma doença estrutural, muitas vezes é necessário realizar uma operação. Da mesma forma, se as falsidades surgem devido a alguns erros na aplicação do intelecto, tudo que é necessário é mais cuidado na aplicação do intelecto. Mas se as falsidades surgem devido ao vício do intelecto, é necessário purificar o intelecto. Isso exige o doloroso processo de remoção daqueles desejos e apegos que são responsáveis por viciar o intelecto.
As falsidades do pensamento viciado provêm de erros na avaliação inicial. Surgem como um subproduto da atividade intelectual, que consiste na busca de determinados valores aceitos. Eles entram em existência como uma parte da racionalização e da justificação dos valores aceitos e devem seu domínio sobre a mente humana à seu aparente suporte dos valores aceitos. Se eles não afetassem os valores humanos ou a sua realização, passariam imediatamente para a insignificância e perderiam seu controle sobre a mente. Quando as falsas crenças derivam seu ser e vitalidade dos desejos profundamente enraizados, elas são alimentadas por falsas buscas. Se o erro nas falsas crenças é puramente intelectual, é fácil de ser corrigido. Mas as falsas crenças que são alimentadas por falsas buscas são as fortalezas de Maya. Elas envolvem muito mais do que o erro intelectual e não são diminuídas através de meras afirmações contrárias de natureza puramente intelectual.
A eliminação de desejos e apegos que viciam o pensamento não é realizada exclusivamente pelo mero intelecto. Isso requer esforço correto e ação correta. Não é através de especulações irrosolutas, mas sim através da execução de coisas que as verdades espirituais devem ser descobertas. A ação honesta é uma ação preliminar à eliminação das falsidades espirituais. A percepção das verdades espirituais exige não apenas pensamentos intensos e furiosos, mas pensamento claro e a verdadeira clareza de pensamento é fruto de uma mente pura e tranquila.
Não até o desaparecimento do último vestígio da falsidade criada por Maya, Deus é conhecido como a Verdade. Somente quando Maya é completamente superada que surge o conhecimento supremo de que Deus é a única Verdade. Só Deus é real. Tudo o que não é Deus, tudo o que é impermanente e finito, tudo o que parece existir dentro do domínio da dualidade, é falso. Deus é uma Realidade infinita una. Todas as divisões que são concebidas dentro desta realidade são falsamente concebidas, pois elas não existem de fato.
Quando Deus é considerado divisível, isso é devido a Maya. O variado mundo da multiplicidade não implica no fracionamento de Deus em várias partes diferentes. Existem diferentes mentes-ego, diferentes corpos, diferentes formas, mas uma só alma. Quando a Alma uma (Deus) assume diversas mentes-ego e corpos, há diferentes almas individualizadas, porém, isso não introduz nenhuma multiplicidade dentro da própria Alma uma. A Alma é e permanece sempre indivisível. A Alma única indivisível é a base das diferentes mentes-ego e dos diferentes corpos, que produzem os pensamentos e as ações de vários tipos e que passam por inúmeros tipos de experiências duais. Mas a Alma é indivisível e permanece sempre além de todo pensamento e ação e além de toda experiência dual.
As diferentes opiniões ou diferentes maneiras de pensar, não introduzem multiplicidade dentro da Alma indivisível pela simples razão de que não existem opiniões ou quaisquer formas de pensar dentro da alma. Toda a atividade do pensamento e as conclusões extraídas deles estão dentro da mente-ego, que é finita. A alma individualizada como Alma não pensa, é apenas a mente-ego que pensa. O pensamento e o conhecimento que vem através do pensamento são possíveis no estado de conhecimento imperfeito e incompleto pertencente à mente-ego finita. Na própria alma individual não há nem pensamento, nem o conhecimento que vem através do pensamento.
A alma individualizada como Alma é o pensamento infinito e a infinita inteligência, não há divisão entre o pensador e o pensamento e as conclusões do pensamento, nem a dualidade do sujeito e do objeto. Somente a mente-ego com o pano de fundo da alma pode se tornar o pensador. A alma individual como Alma, a qual é pensamento infinito e inteligência infinita, não pensa ou tem qualquer atividade do intelecto. O intelecto com o seu pensamento limitado surge apenas com a mente-ego finita. Na completude e suficiência da inteligência infinita, que é Alma una, não há necessidade para o intelecto ou suas atividades.
Com a queda do último vestígio das falsidades criadas por Maya, a alma individual não só conhece a sua realidade como sendo diferente do corpo grosseiro, do sutil, ou do mental, mas conhece a si mesma como sendo Deus, que é a única Realidade. Neste estado a alma sabe que a mente, o corpo sutil e o corpo físico eram todos igualmente criações de sua própria imaginação, e que na realidade nunca existiram. Ela sabe que por ignorância ela concebeu-se como sendo a mente ou o corpo sutil ou corpo físico. A alma individual sabe também que, em certo sentido, ela tornou-se a mente, o corpo sutil e o corpo grosseiro e então indentificou-se com todas essas ilusões auto-criadas.


Parte IV - Deus e Maya





Deus é infinito porque Ele está acima dos opostos limitantes da dualidade. Ele está acima dos aspectos limitados de bom e mau, grande e pequeno, certo e errado, virtude e vício, felicidade e miséria; por isso Ele é infinito. Se Deus fosse bom e não mau ou mau em vez de bom, ou se Ele fosse pequeno e não grande ou grande em vez de pequeno, ou se Ele estivesse certo e não errado ou errado em vez de certo, ou se Ele fosse virtuoso ao invés do malvado ou malvado e não virtuoso, ou se Ele fosse feliz e não infeliz ou infeliz ao invés de feliz, - Ele seria finito e não infinito. Somente por estar acima da dualidade Deus é infinito.
O que quer que seja infinito transcende a dualidade, não pode ser uma parte da dualidade. Aquilo que é verdadeiramente infinito não pode ser a parte dual do finito. Se o infinito é considerado existir lado a lado com o finito ele já não é infinito, pois torna-se então a segunda parte da dualidade. Deus, que é infinito, não pode descender na dualidade. Assim, a aparente existência da dualidade, como o Deus infinito e o mundo finito, é ilusória. Só Deus é real, Ele é infinito, um sem um segundo. A existência do finito é apenas aparente, é falsa, não é real.
Como o falso mundo das coisas finitas veio a existir? Por que ele existe? Ele é criado por Maya, ou o princípio da ignorância. Maya não é ilusão, é a criadora da Ilusão. Maya não é falsa, é aquilo que é criado por Maya que dá falsas impressões. Maya não é irreal, ela é o que faz com que o real pareça irreal e o irreal pareça real. Maya não é dualidade, é o que provoca a dualidade.
Para efeitos de explicação intelectual, no entanto, Maya deve ser encarada como sendo infinita. Ela cria a ilusão de finitude, ainda assim não é em si finita. Todas as ilusões criadas por Maya são finitas e todo o universo da dualidade, que parece existir devido a Maya, também é finito. O universo pode parecer conter inúmeras coisas, mas isso não significa que seja infinito. As estrelas podem ser inúmeras, há um número enorme, mas o conjunto total de estrelas é, contudo, finito. O espaço e o tempo podem parecer infinitamente divisíveis, mas, no entanto, são finitos. Tudo o que é finito e limitado pertence ao mundo da ilusão, embora o princípio que causa esta ilusão das coisas finitas deve, em certo sentido, ser considerado como não sendo uma ilusão.
Maya não pode ser considerada como sendo finita. A coisa torna-se finita ao ser limitada pelo espaço e pelo tempo. Maya não existe no espaço e não pode ser limitada por ele. Maya não pode ser limitada no espaço porque o espaço é em si a criação de Maya. O espaço, com tudo o que ele contém, é uma ilusão e é dependente de Maya. Maya, no entanto, não é de forma nenhuma dependente do espaço. Por isso, não pode ser finita devido a nenhuma limitação de espaço. Maya também não pode ser finita por causa de nenhuma das limitações do tempo. Embora Maya chegue ao fim no estado de superconsciência, não precisa ser considerada finita por esse motivo. Maya não pode ter um começo nem um fim no tempo, porque o próprio tempo é uma criação de Maya. Qualquer visão que torne Maya um acontecimento que tem lugar em algum tempo e desaparece depois de algum tempo coloca Maya no tempo e não o tempo em Maya. O tempo está em Maya; Maya não está no tempo. O tempo, bem como todos os acontecimentos no tempo, são a criação de Maya. Maya não é de forma alguma limitada pelo tempo. O tempo chega à existência por causa de Maya e desaparece quando Maya desaparece. Deus é a Realidade atemporal, portanto, a realização de Deus e o desaparecimento de Maya, é um ato atemporal.
Maya também não pode ser considerada finita por quaisquer outras razões. Se fosse finita, seria uma ilusão e sendo uma ilusão, não teria nenhuma potência para criar outras ilusões. Assim, Maya é melhor considerada como sendo real e infinita, da mesma forma que Deus é geralmente considerado como sendo real e infinito. Entre todas as explicações intelectuais possíveis, a explicação de que Maya, assim como Deus, é real e infinita é mais aceitável para o intelecto do homem. No entanto, Maya não pode ser realmente verdadeira. Onde há dualidade, há finitude em ambos os lados. Uma coisa limita a outra. Não pode haver dois infinitos reais. Pode haver duas entidades enormes, mas não pode haver duas entidades infinitas. Se tivéssemos a dualidade de Deus e Maya e se ambos fossem considerados como existências coordenadas, então, a realidade infinita de Deus poderia ser considerada como a segunda parte de uma dualidade. Portanto, a explicação intelectual de que Maya é real não tem o selo do conhecimento final, embora seja a explicação mais plausível.
Há dificuldades em considerar Maya como ilusória e também como real em última análise. Assim, todas as tentativas do intelecto limitado para entender Maya levam a um impasse. Por um lado, se Maya é considerada como finita, ela própria torna-se ilusória e então não pode dar conta do mundo ilusório das coisas finitas. Assim, Maya tem de ser considerada real e infinita. Por outro lado, se Maya é considerada como sendo essencialmente real, Maya se torna uma segunda parte da dualidade de uma outra realidade infinita, ou seja, Deus. Portanto, deste ponto de vista, Maya parece realmente tornar-se finita e, portanto, irreal. Então, Maya não pode ser real em última análise, embora tenha de ser considerada como tal, a fim de explicarmos o mundo ilusório dos objetos finitos.
De qualquer forma que o intelecto limitado tentar entender Maya, ele ficará aquém da verdadeira compreensão. Não é possível compreender Maya através do intelecto limitado, ela é tão insondável quanto Deus. Deus é insondável, incompreensível, assim também Maya é insondável, incompreensível. Dessa forma, é dito que Maya é a sombra de Deus. Onde uma pessoa está há a sombra dela também. Onde Deus está, há esta Maya inescrutável. Embora Deus e Maya sejam inescrutáveis para o intelecto limitado que opera no domínio da dualidade, eles podem ser perfeitamente entendidos em sua verdadeira natureza com o conhecimento final da Realização. O enigma da existência de Maya nunca pode ser definitivamente resolvido até que ocorra a Realização, quando descobre-se que Maya não existe na realidade.
Há dois estados em que Maya não existe: no estado original inconsciente da Realidade - não há Maya; e no estado Auto-consciente (Consciente do Ser), ou superconsciente, estado de Deus - não há Maya. Ela existe apenas na consciência de Deus do mundo fenomenal da dualidade, ou seja, quando há a consciência do mundo grosseiro ou do mundo sutil ou do mundo mental. Maya existe quando não há Autoconsciência (consciência do Ser), mas somente a consciência dos imaginados outros, e quando a consciência está irremediavelmente dominada pelas falsas categorias da dualidade. Maya só existe a partir do ponto de vista do finito. É apenas como ilusão que Maya existe como uma criadora verdadeira e infinita de coisas irreais e finitas.
Na Verdade final e única da Realização, não existe nada exceto o Deus infinito e eterno. A ilusão das coisas finitas aparecendo como separadas de Deus desapareceu e com ela também desapareceu Maya, a criadora dessa ilusão. O Autoconhecimento vem para a alma ao olhar para dentro, e ao superar Maya. Nesse Autoconhecimento ela não apenas sabe que as diferentes mentes-ego e os diferentes corpos nunca existiram, mas também que todo o universo e Maya mesma nunca existiram como um princípio separado. Seja qual for a realidade que Maya tinha até então é agora engolida pelo Ser indivisível da única Alma. A alma individualizada agora conhece a si mesma como sendo o que ela sempre foi - eternamente Autorealizada, eternamente infinita em conhecimento, graça, força e existência, e eternamente livre da dualidade. Mas essa forma mais elevada de Autoconhecimento é inacessível ao intelecto e é incompreensível, exceto para aqueles que alcançaram o cume da Realização final.