quarta-feira, 12 de maio de 2010

P. D. Ouspensky - As primeiras tentativas de lembrança de Si e a divisão da atenção



Tudo que Gurdjieff disse, tudo o que eu mesmo pensei e, especialmente, tudo o que minhas tentativas de lembrança de si tinham me mostrado, muito em breve me convenceram que eu estava diante de um problema inteiramente novo com o qual a ciência e a filosofia não tinham se deparado até agora. Mas antes de fazer deduções, vou tentar descrever as minhas tentativas de lembrar de mim. A primeira impressão foi que as tentativas de me lembrar ou de ter consciência de mim mesmo, de dizer para mim mesmo: 'eu estou andando', 'eu estou fazendo' e continuamente sentir esse eu - paravam os pensamentos. Quando eu estava sentindo a mim mesmo, eu não podia pensar nem falar, mesmo as sensações se ofuscavam. Além disso, só era possível lembrar de si dessa forma por um tempo muito curto. Eu já tinha feito anteriormente algumas experiências em parar os pensamentos, que são mencionadas nos livros sobre práticas de Yoga. Por exemplo, há uma descrição desse tipo no livro de Edward Carpenter, 'Do pico de Adão à Elefanta', embora seja de uma forma muito geral. E minhas primeiras tentativas de lembrar de mim mesmo me recordaram exatamente aquelas minhas primeiras experiências. Na verdade, foi quase a mesma coisa, com a diferença que ao parar os pensamentos, a atenção é inteiramente direcionada para o esforço de não admitir pensamentos, enquanto que na lembrança de si a atenção se divide, uma parte é direcionada para o mesmo esforço e a outra parte para o sentimento de si (do Self). Essa última realização permitiu-me chegar a uma certa definição, possivelmente muito incompleta, da "lembrança de si", que, no entanto, provou ser muito útil na prática. Estou falando da divisão da atenção, que é o traço característico da lembrança de si. Eu representava isso para mim da seguinte forma: Quando eu observo algo, a minha atenção é dirigida para o que eu observo, uma linha com uma seta:

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Eu ----------------> o fenômeno observado.


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Quando ao mesmo tempo, eu tento lembrar de mim mesmo, a minha atenção é direcionada tanto para o objeto observado quanto para mim mesmo. Uma segunda seta aparece na linha: .

Eu <---------------> o fenômeno observado.


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Tendo definido isso, eu vi que o problema consistia em direcionar a atenção sobre si mesmo sem comprometer ou obliterar a atenção direcionada para outra coisa. Além disso, essa "outra coisa" poderia tanto estar dentro de mim como fora de mim. As primeiras tentativas de uma tal divisão de atenção me mostraram a sua possibilidade. Ao mesmo tempo, vi duas coisas claramente: Em primeiro lugar vi que a lembrança de si resultante desse método não tinha nada em comum com o "sentir-se", ou com "auto-análise." Era um estado novo e muito interessante, com um gosto estranhamente familiar. E em segundo lugar, percebi que os momentos de lembrança de si, ainda que raramente, podem ocorrer na vida. Apenas a produção intencional desses momentos criava a sensação de novidade. Na verdade eles tinham sido familiares a mim desde a infância. Eles vinham em ambientes novos e inesperados, em um lugar novo, entre pessoas novas durante uma viagem, quando, por exemplo, olhamos de repente ao nosso redor e dizemos: 'Que estranho! Eu e neste lugar', ou em momentos de grande emoção, em momentos de perigo, nos momentos em que é necessário se controlar para não perder a cabeça, quando ouvimos a nossa própria voz e nos vemos e nos observamos de fora. Eu vi muito claramente que minhas primeiras recordações da vida, que no meu caso eram bem prematuras, foram momentos de lembrança de si. Essa última realização revelou muito mais para mim. Ou seja, eu vi que eu só me lembrava realmente desses momentos do passado quando havia lembrado de mim mesmo. Dos outros eu só sabia que haviam ocorrido. Eu não sou capaz de revivê-los inteiramente, de experimentá-los novamente. Mas os momentos em que eu tinha lembrado de mim mesmo estavam vivos e não eram de maneira alguma diferentes do presente. Eu ainda estava receoso de chegar a conclusões. Mas já via que eu estava diante de uma descoberta muito grande. Sempre fiquei espantado com a fraqueza e a insuficiência de nossa memória. Tantas coisas desaparecem. Por algum motivo ou outro o principal absurdo da vida para mim consistia nisso. Por que experimentar tanta coisa para esquecê-las depois? Além disso, havia algo de degradante nisso. Um homem sente algo que lhe parece muito grande, muito importante, ele acha que nunca vai esquecê-lo; um ou dois anos passam e não resta mais nada daquilo. Agora ficava claro para mim porque isso era assim e porque não poderia ser diferente. Se nossa memória realmente mantém vivos apenas os momentos de lembrança de si, fica claro porque ela é tão pobre. Todas essas foram as percepções dos primeiros dias. Mais tarde, quando comecei a aprender a dividir a atenção, vi que a lembrança de si dava sensações maravilhosas que, de uma forma natural, isto é, por si só, vêm a nós só muito raramente e em condições excepcionais. Desse modo, por exemplo, naquele tempo eu costumava gostar muito de passear por São Petersburgo durante a noite e "sentir" as casas e as ruas. São Petersburgo está repleta dessas sensações estranhas. As casas, especialmente as antigas, eram muito vivas, eu não cessava de falar com elas. Não havia nenhuma "imaginação" nisso. Eu não pensava em nada, eu simplesmente caminhava enquanto tentava lembrar de mim e olhava à minha volta, as sensações vinham por si mesmas. Mais tarde vim a descobrir muitas coisas inesperadas da mesma maneira. Mas vou falar sobre isso mais adiante. Às vezes a lembrança de si não era bem sucedida, em outros momentos era acompanhada por observações curiosas.

Certa vez eu estava andando na rua Liteiny na direção da Nevsky, e apesar de todos os meus esforços eu não conseguia manter minha atenção na lembrança de si. O barulho, o movimento, tudo me distraía. A cada minuto eu perdia o fio da atenção, encontrava-o novamente e depois perdia novamente. Finalmente senti uma espécie de irritação ridícula comigo mesmo e virei para a rua à esquerda tendo firmemente decidido manter minha atenção sobre o fato de que eu me lembraria de mim mesmo pelo menos por algum tempo, pelo menos até que eu chegasse à rua seguinte. Cheguei à Nadejdinskaya sem perder o fio da atenção, exceto talvez por breves momentos. Então, eu novamente voltei para a Nevsky percebendo que, em ruas tranquilas, era mais fácil para mim não perder a linha de pensamento, e desejando, desse modo, testar-me nas ruas mais ruidosas. Cheguei à Nevsky ainda me lembrando de mim mesmo, e já estava começando a experimentar o estranho estado emocional de paz interior e confiança que vem depois de grandes esforços desse tipo. Ao virar a esquina na Nevsky havia uma tabacaria onde faziam meus cigarros. Ainda lembrando de mim mesmo pensei em tocar lá e encomendar alguns. Duas horas depois eu acordei na Tavricheskaya, ou seja, muito longe. Eu estava indo de trenó para a gráfica. A sensação de despertar foi extraordinariamente vívida. Posso quase dizer que tinha voltado a mim. Lembrei-me de tudo de imediato. Como eu vinha andando na Nadejdinskaya, como eu tinha lembrado de mim mesmo, como eu havia pensado sobre os cigarros e como durante esse pensamento pareceu-me de repente cair e desaparecer num sono profundo. Ao mesmo tempo, enquanto imerso nesse sono, eu tinha continuado a realizar ações coerentes e convenientes. Saí da tabacaria, telefonei para meu apartamento na Liteiny e depois para a gráfica. Escrevi duas cartas. Então outra vez saí de casa. Andei no lado esquerdo da Nevsky até o Dvor Gostinoy com a intenção de ir para a Offitzerskaya. Então mudei de idéia, pois estava ficando tarde. Eu tinha tomado um trenó e estava seguindo para Kavalergardskaya até a gráfica. E no caminho enquanto seguia pela Tavricheskaya eu comecei a sentir um desconforto estranho, como se eu tivesse esquecido de algo. E de repente, eu lembrei que tinha esquecido de lembrar de mim mesmo.

Falei de minhas observações e deduções para as pessoas no nosso grupo, bem como para vários de meus amigos do círculo literário e outros. Eu lhes disse que este era o centro de gravidade de todo o sistema e de todo o trabalho sobre si mesmo, que agora o trabalho sobre si mesmo não era apenas palavras vazias, mas um fato real cheio de significado, graças ao qual a psicologia se tornara uma ciência exata e ao mesmo tempo prática. Eu disse que a psicologia européia e ocidental, em geral, havia ignorado um fato de enorme importância, ou seja, que não nos lembramos de nós mesmos, que vivemos, agimos e raciocinamos num profundo sono, não metaforicamente, mas na realidade absoluta. E também que, ao mesmo tempo, podemos nos lembrar de nós se fizermos esforços suficientes, que podemos despertar. Fiquei impressionado com a diferença entre a compreensão das pessoas que pertenciam ao nosso grupo e das pessoas fora dele. As pessoas que pertenciam ao nosso grupo entendiam, embora não todos de uma vez, que havíamos entrado em contato com um "milagre", e que era algo "novo", algo que nunca existiu em nenhum lugar antes. As outras pessoas não entendiam isso, elas consideravam tudo de maneira muito leve e, às vezes até começavam a me provar que essas teorias tinham existido antes. A. L. Volinsky, que eu encontrava muitas vezes, com quem eu tinha falado muito desde 1909 e cujas opiniões eu valorizava muito, não achou na idéia da "lembrança de si" nada que não tivesse conhecido antes. "Isso é uma apercepção". Ele me disse: "Você já leu a Lógica de Wundt? Você vai encontrar lá sua mais recente definição de apercepção. É exatamente a mesma coisa que você fala. 'Simples observação', é percepção. Observação com a 'lembrança de si ', como você chama, é apercepção. Claro que Wundt sabia disso." Eu não queria discutir com Volinsky. Eu tinha lido Wundt. E é claro que o que Wundt havia escrito não era nada daquilo que eu tinha dito para Volinsky. Wundt havia chegado perto dessa idéia, mas outros tinham chegado igualmente perto e depois tinham ido em uma direção diferente. Ele não tinha visto a magnitude da idéia que estava escondida por trás de seus pensamentos sobre as diferentes formas de percepção. E não tendo visto a magnitude da idéia ele naturalmente não podia ver a posição central que a idéia da ausência de consciência e a idéia da possibilidade da criação voluntária dessa consciência deveria ocupar em nosso pensamento. Apenas pareceu-me estranho que Volinsky não pôde ver isso mesmo quando apontei para ele. Depois, eu me convenci de que essa idéia estava escondida por um véu impenetrável para muitas pessoas de outra maneira muito inteligentes, e ainda mais tarde, vi porque isso era assim.